Saiu no “The Wall Street Journal”: Koh Seng Tian, 61 anos, motorista da Uber, tinha acabado de deixar um passageiro em um bairro residencial em Singapura quando sentiu cheiro de fumaça em seu veículo utilitário esportivo Honda, modelo Vezel (HR-V no Brasil). Surgiram chamas no painel de instrumentos, que derreteram a parte interna e criaram um buraco do tamanho de uma bola de futebol no para-brisa.
LEIA MAIS: Uber é processado por falta de carros para cadeirantes em Nova York
O motorista conseguiu sair do carro e escapar ileso, de acordo com o relatório do acidente registrado junto às autoridades. Mas o incêndio, ocorrido em janeiro, causou pânico na Uber Technologies Inc. A empresa de caronas pagas havia alugado o Vezel a Koh mesmo após a Honda ter convocado um recall do modelo em abril de 2016 devido a um componente elétrico que poderia sofrer um superaquecimento e pegar fogo.
A Uber teria assegurado aos motoristas que os carros alugados por eles por intermédio da LCR estavam em "perfeitas condições de funcionamento", de acordo com um contrato de locação de 2016Os gestores da Uber em Singapura estavam cientes do recall quando compraram mais de 1.000 veículos Vezel com defeito e os alugaram sem os consertos necessários, segundo e-mails internos e documentos da empresa analisados pelo “The Wall Street Journal” e entrevistas com pessoas que conhecem as operações da companhia na região.
Segundo os e-mails e informações de antigos gestores da Uber na Ásia, três dias após o incêndio, executivos da sede da empresa em São Francisco receberam instruções sobre um plano de resposta ao incidente. O plano dizia que a Uber iria desativar os dispositivos defeituosos e deixaria os carros rodando enquanto esperava pelas peças de reposição. A ideia era que a empresa buscasse a aprovação das autoridades de Singapura e a consultoria de especialistas na área de consertos automotivos.
Após o incidente, “rapidamente, adotamos medidas para resolver o problema, em estreita colaboração com a Autoridade de Transporte Terrestre de Singapura e com peritos técnicos,” disse um porta-voz da Uber. “No entanto, reconhecemos que poderíamos ter feito mais, e agora fizemos.”
Os e-mails não indicam se os executivos de San Francisco sabiam sobre o recall de segurança do modelo Vezel antes do carro e Koh pegar fogo. O motorista não quis comentar o assunto.
O incidente em Singapura se une a uma crescente lista de crises ocorridas na Uber sob a supervisão do ex-presidente-executivo Travis Kalanick, que insistia em administrar a empresa como uma startup sem estrutura, embora tenha se tornado uma grande operação globalizada.
VEJA TAMBÉM: Travis Kalanick, CEO do Uber, renuncia ao cargo
Em apenas oito anos, a empresa se espalhou para mais de 70 países. O feito foi conseguido, parcialmente, porque a Uber deu autonomia às equipes regionais para que pudessem se adaptar aos mercados locais e se expandir com rapidez. Além disso, a empresa não utiliza os mesmos sistemas e burocracia normalmente usados por multinacionais. O principal executivo de segurança global deixou a empresa no ano passado e a função foi absorvida pelo chefe da área de seguros da Uber.
Em busca da expansão, a Uber frequentemente desrespeita leis locais. Já foi constatado que o aplicativo violou regras relativas a transporte na Coreia do Sul e na França. Nos Estados Unidos, a Uber desafiou órgãos reguladores da Califórnia e colocou em circulação no ano passado, nas ruas de São Francisco, carros sem motorista e sem as autorizações apropriadas. Além disso, a empresa enfrenta uma longa lista de processos jurídicos e uma cultura corporativa atacada por acusações de assédio sexual.
Enquanto isso, a Uber perdeu mais de US$ 3 bilhões no ano passado. Ela se retirou de batalhas dispendiosas contra outros aplicativos de caronas pagas em dois grandes mercados, China e Rússia, e encerrou suas operações em Macau devido à pressão dos órgãos reguladores locais.
Em Singapura, o plano autorizado por Kalanick para comprar e alugar carros saiu pela culatra, e a reação lenta da Uber ao recall parece ter colocado em perigo a segurança dos motoristas e passageiros. Um porta-voz de Kalanick, que deixou a direção da empresa em junho, disse que o ex-CEO se recusou a comentar o assunto.
Base asiática
Em 2013, Singapura foi a primeira cidade asiática a usar o aplicativo Uber, sendo um ponto de partida para a expansão no continente. No entanto, documentos comprovam que a Uber enfrentou dificuldades para encontrar motoristas em número suficiente. O custo de possuir um carro em Singapura está entre os mais altos do mundo.
Para contornar a situação, em fevereiro de 2015, a Uber criou a Lion City Rentals Pte Ltd., ou LCR, uma unidade dedicada a alugar carros pertencentes à empresa por cerca de US$50 por dia a motoristas interessados. A aquisição de uma frota de carros era algo novo para a Uber, cujo modelo de negócio se baseia em não possuir ativos.
A Uber lotou estacionamentos com remessas de 200 carros usados por mês, segundo informações de uma ex-gerente e, no início de 2016, já havia esgotado grande parte da oferta local das revendedoras de veículos.
Kalanick, então, aprovou um plano para fazer um empréstimo de cerca de 800 milhões de dólares de Singapura (cerca de US$ 590 milhões) de vários bancos, incluindo o Goldman Sachs, com o intuito de comprar milhares de carros novos e alugá-los, segundo pessoas que tomaram conhecimento da estratégia.
No entanto, em vez de comprar veículos novos de revendedores autorizados da Honda e da Toyota, a unidade LCR da Uber comprou novos sedãs e SUVs de mais de uma dúzia de empresas importadoras de veículos, segundo mostram os e-mails. Esses pequenos revendedores operam no chamado mercado cinza, um canal legal fora das redes autorizadas dos fabricantes, onde é difícil impor normas de segurança, prestação de serviços e contratos legais. De acordo com os e-mails, a equipe de Singapura calculou que poderia comprar carros por um valor 12% inferior aos preços encontrados em concessionárias autorizadas da Honda.
A Uber processa uma dessas concessionárias, a Sunrita Pte Ltd., que é baseada em Singapura, e alega que tal concessionária não entregou uma remessa de carros no valor de mais de US$ 50 milhões. Em julho, um juiz indeferiu a solicitação para que a Sunrita fosse submetida à gestão judicial. Sivakumar Murugaiyan, advogado da concessionária, afirmou que seu cliente não estava contratualmente obrigado a entregar os carros seguindo um prazo determinado. “Como tal, a LCR não era nossa credora no que diz respeito aos carros não entregues”, declarou o advogado.
A Uber assegurou aos motoristas que os carros alugados por eles por intermédio da LCR estavam em “perfeitas condições de funcionamento”, de acordo com um contrato de locação de 2016 analisado pelo “The Wall Street Journal”.
Recall da Honda
Um documento interno revela que a empresa já havia comprado alguns Vezels novos quando a Honda anunciou o recall dos modelos movidos a gasolina em 4 de abril de 2016, aconselhando os proprietários para que levassem os automóveis para serem consertados o mais rápido possível. O problema era um componente elétrico, projetado para desligar o motor quando o carro estivesse parado, o que poderia causar o superaquecimento, segundo a Honda.
E MAIS: Uber demite 20 funcionários após investigação sobre assédios
Um relatório interno da Uber mostra que, dois dias após o anúncio do recall, a empresa comprou 100 Vezels da Sunrita. Os documentos demonstram que, em 5 de maio, a Sunrita enviou avisos sobre o recall à Uber, prevendo que iria substituir as peças afetadas até o final de agosto.
Durante os oito meses seguintes, a Uber comprou milhares de carros da Sunrita e de outras concessionárias, incluindo 1.065 novos Vezels com a parte elétrica defeituosa, conforme demonstram os e-mails. Os carros não foram consertados até janeiro de 2017, ainda segundo os e-mails.
Até o final de agosto de 2016, a Sunrita ainda não havia consertado os carros vendidos à Uber, alegando uma escassez de peças de reposição. Periodicamente, a Uber enviava e-mails pedindo à Sunrita para acelerar o processo. Os e-mails demonstram que a empresa continuou a alugar carros defeituosos para os motoristas. Uma porta-voz do aplicativo afirmou que a Sunrita não forneceu as peças de reposição necessárias.
O advogado da Sunrita afirmou que a unidade LCR da Uber “pediu à Sunrita para adquirir peças de reposição de seus fornecedores às suas próprias custas. A Sunrita atendeu à solicitação e forneceu as peças à LCR quando elas se tornaram disponíveis”.
Em janeiro deste ano, todos os carros modelo Vezel da Uber, ainda com os problemas, estavam alugados para motoristas, como demonstram e-mails.
Em 11 janeiro, Koh apanhou um passageiro às 13h30 e dirigiu por 19 minutos, diz o relatório do acidente. “Ao chegar ao local,” segundo o motorista, “o passageiro desceu”. “Logo em seguida, senti um pouco de cheiro de fumaça dentro do carro.”
O relatório do acidente traz fotos do Vezel dirigido por Koh com o painel queimado e o para-brisa quebrado.
As notícias sobre o incêndio se espalharam pelo escritório da Uber em Singapura após a corretora de seguros declarar que não iria cobrir os danos porque o recall daquele modelo de carro era um fato conhecido. De acordo com os e-mails, dois dias depois, as informações chegaram aos executivos da empresa em São Francisco.
Ainda segundo os e-mails, os advogados da Uber em Singapura começaram a avaliar a responsabilidade jurídica no caso, incluindo a possibilidade de terem desrespeitado os contratos dos motoristas ao fornecer carros com problemas e ao deixar de informar imediatamente às autoridades competentes sobre os carros defeituosos. “Evidentemente, há um grande problema que envolve segurança, agente responsável, integridade da marca e relações públicas” para a Uber, diz um relatório interno.
Alguns dos gestores do aplicativo pediram que os carros defeituosos fossem tirados de circulação, um plano que Michael Brown, gerente geral da região Ásia-Pacífico, disse que iria ajudar a evitar “riscos desnecessários”, de acordo com um e-mail enviado a seus colegas em Singapura, em 13 de janeiro último.
Warren Tseng, gerente-geral da Uber em Singapura, respondeu em um e-mail que o plano custaria à empresa cerca de US$ 1 milhão por semana em salários para os motoristas, despesas com locação de veículos e custos de estacionamento. “Pedir aos motoristas que entreguem as chaves de seus carros sem apresentar a resolução do problema irá acionar um alarme de pânico em todo o mercado “, escreveu ele em um e-mail para Brown e outros destinatários.
Tseng e Brown se recusaram a falar com a reportagem, pedindo que as perguntas fossem enviadas ao departamento de relações públicas da Uber. O porta-voz da empresa se recusou a comentar os e-mails.
Chan Park, que também é gerente em Singapura, manifestou seu apoio a Tseng, dizendo em um e-mail que deixar os carros em circulação “parecia algo de baixo risco” já que “o recall aconteceu há nove meses “. Park não respondeu às perguntas. O porta-voz da Uber também se recusou a comentar esse e-mail.
E MAIS: Uber é proibida de oferecer corridas em carros autônomos em San Francisco
A Uber optou por deixar os carros nas ruas e esperar pelas peças de reposição, de acordo com documentos. Enquanto isso, pediu aos motoristas que levassem os carros para oficinas para desativar a peça avariada, uma medida paliativa descrita em e-mails como uma “estratégia” não autorizada pela Honda, mas que acreditavam que iria minimizar os riscos. A Uber também queria que seu plano de esforços de reparação fosse aprovado pelas autoridades locais.
Em 14 de janeiro, detalhes sobre o plano foram comunicados à cúpula da empresa em São Francisco, incluindo o diretor-jurídico, Salle Yoo, o chefe da área de seguros e assuntos regulatórios, Curtis Scott, e o diretor de compliance global, Joseph Spiegler, ainda segundo os e-mails e alguns dos antigos gestores. Os executivos não responderam às perguntas. A Uber afirmou que eles também não quiseram comentar o assunto.
O porta-voz da Uber disse que a empresa informou prontamente os motoristas afetados, pedindo que fizessem a desativação da peça, além do agendamento nas oficinas para que ela fosse substituída assim que a nova estivesse disponível.
Quatro dias após o incêndio, a Uber enviou uma mensagem de texto aos motoristas afetados dizendo que seus carros Honda Venzel precisavam de uma “manutenção preventiva imediata”, que deveria ser efetuada naquela semana, segundo as mensagens obtidas pelo “Wall Street Journal”. A Uber direcionou os motoristas para um site que os informava sobre o recall daquele modelo de veículo, mas não mencionava os perigos de superaquecimento e incêndio que haviam sido claramente especificados pela Honda.
“Operação secreta”
Alexander Yudhistira, um motorista de 31 anos que havia alugado um Vezel problemático da Uber, em abril de 2016, disse que a empresa não deixou claro por que o carro precisava de manutenção urgentemente. “O recall foi feito em uma espécie de operação secreta”, disse Yudhistira, que já não trabalha mais com o aplicativo. “Os motoristas não foram informados sobre o problema real com o Vezel.”
Nos e-mails analisados pelo The Wall Street Journal, a Honda disse à Uber não ser responsável pelos veículos adquiridos no mercado cinza e se recusou a ajudar a empresa com os reparos ou a reconhecer que a desativação da peça melhorava a segurança dos carros. Também em e-mails, a Uber admitiu que a Honda não tinha o dever legal de consertar os veículos.
Quando questionado sobre os veículos comprados pela Uber, um porta-voz da Honda disse que, “em Singapura, onde existe a importação paralela de carros, o importador precisa lidar com o recall”, referindo-se às concessionárias do mercado cinza. O porta-voz disse não poder comentar sobre as medidas adotadas pela Uber para desativar a peça defeituosa por não conhecer os detalhes técnicos.
De acordo com relatórios de progresso internos, os consertos dos carros da Uber, que começaram em janeiro, continuaram por vários meses. Tentando reduzir o impacto da publicidade negativa, a equipe de comunicação corporativa da empresa em Singapura preparou um pacote de informações, incluindo detalhes sobre recall e respostas para as perguntas da imprensa.
Uma das perguntas era: “O recall foi anunciado em abril de 2016. Por que a LCR só tomou conhecimento/adotou medidas agora?”. Analisando o pacote de informações, percebe-se que a Uber pretendia culpar os importadores, que não forneceram as peças de reposição.
Nos Estados Unidos, alugar carros com defeitos conhecidos de segurança é ilegal desde 2015. Mas em outros países, empresas dos EUA não estão sujeiras à legislação norte-americana referente à segurança automotiva.
De acordo com o porta-voz da Uber, após o incêndio, a empresa notificou a Autoridade de Transporte Terrestre (LTA, na sigla em inglês), que aprovou o plano para consertar os carros. Em um relatório interno, a Uber afirmou que a LTA não conseguiu manter, de forma adequada, uma lista de veículos recolhidos no recall para poder usá-la como base de verificação para os novos veículos que entram no país. A LTA não respondeu aos pedidos de comentário sobre o tema.
Após o incêndio no Vezel, a Uber disse que os gestores em Singapura aprimoraram o rastreamento de recalls feitos por montadoras de veículos, publicaram anúncios de empregos procurando especialistas na área de segurança automotiva e pararam de comprar carros de importadores não autorizados. “Estabelecemos protocolos sólidos e contratamos três especialistas exclusivos para trabalhar internamente na LCR, cujo único trabalho é assegurar que tenhamos reações rápidas aos recalls de segurança”, disse o porta-voz da Uber. “Desde o início do ano, já respondemos de forma proativa a seis recalls de veículos e continuaremos a agir dessa forma para proteger a segurança de todos que utilizam a Uber.”
Nos últimos dois anos, a Uber expandiu suas operações de aluguel de carros ao comprar uma pequena quantidade de veículos na Índia e no Vietnã, de acordo com pessoas que acompanharam tal expansão. A empresa também aluga carros para motoristas em 24 cidades nos Estados Unidos, mantendo seus títulos de propriedade em um fundo, e não no balanço patrimonial, como em Singapura.
No final do fevereiro, Aik Chuan Goh, um gerente-geral da Uber em Singapura, convidou a equipe para uma comemoração de agradecimento a todos que ajudaram a empresa a atravessar a “situação caótica do Vezel”. O convite por e-mail, que incluía um jantar, uma massagem e “outras travessuras “, ainda fazia piadas, dizendo que o transporte para a festa “poderia ser feita em um Vezel”. Segundo a Uber, Goh se recusou a comentar o assunto.
Na semana para a qual o jantar estava marcado, um gerente da Uber disse a seus colegas em um e-mail que mais de 65% dos Vezels defeituosos ainda não tinham feito a substituição das peças com problemas. O porta-voz da Uber afirmou que todos os Vezels já foram consertados.