Cozinhas e banheiros mal-ajambrados, paredes e janelas tortas, infiltração. Muitos moradores de comunidades carentes erguem suas casas com as próprias mãos ou em mutirões com amigos e familiares, bem longe das normas e condições técnicas ideais. O desconforto e o perigo são constantes. Nessa cena, onde muitos veem desalento, um “empreendedor social” – termo que vem ganhando peso no Brasil – viu oportunidade.
Depois de trabalhar em projetos de urbanização em favelas, o consultor Fernando Assad percebeu que havia ali uma lacuna não preenchida no mercado das habitações populares: o de reformas voltadas à população mais pobre. Com dois sócios, dedicou-se a criar um modelo de negócios que contemplasse as quatro principais demandas dos moradores – crédito, assistência técnica, mão de obra especializada e materiais de construção de boa qualidade, tudo isso em uma faixa de preço que coubesse no bolso de seu público-alvo. “As pessoas passam anos juntando dinheiro ou materiais de construção para fazer a sonhada reforma de suas casas. Mas acabam perdendo tudo porque falta eficiência: é a falta de planejamento, é um pedreiro que não aparece”, diz Assad.
O desafio é criar um novo produto ou serviço capaz de gerar transformação socialReformar casas em até cinco dias, com projetos de arquitetos e por um valor que não ultrapassasse R$ 5 mil passou a ser o business da Vivenda, startup social que abriu a primeira loja em 2015 no Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo. As reformas são comercializadas por meio de kits (para banheiro, cozinha, ventilação e antiumidade) e podem ser parceladas em até 12 vezes sem juros. O negócio chamou a atenção da clientela. E já permitiu à Vivenda realizar 600 reformas desde o início de suas atividades. Com um faturamento de R$ 1,2 milhão em 2016, já abriu sua segunda loja.
A trajetória de Assad ilustra o movimento que vem ganhando força nos últimos anos. O empreendedorismo social envolve a criação de negócios lucrativos que tenham o compromisso e o firme propósito de resolver demandas de pessoas que, por várias razões, não são atendidas pelo mercado convencional. De modo geral, essas empresas atuam em áreas com carências estruturais, como saúde, educação, habitação, tecnologias inclusivas e acesso a crédito. Os negócios sociais se diferenciam das ONGs pelo fato de gerar lucro – são empresas formalmente constituídas, que se sustentam com a venda de produtos ou prestação de serviços, e não por meio de doações ou captação de recursos.
É o caso da marca de sapatos americana Toms Shoes, que se diferenciou da concorrência graças a uma estratégia singular: para cada par de calçados comercializado, um é doado para uma criança pobre em países emergentes – iniciativa batizada de “one for one” (um por um). A ideia da empresa nasceu após uma viagem à Argentina feita por Blake Mycoskie, no início dos anos 2000. Ao ver que muitas crianças deixavam de ir à escola por falta de sapatos, o empreendedor decidiu que a melhor maneira de ajudar era não por meio de instituições de caridade convencionais, mas pela força de seu negócio. Em 2006, Mycoskie fundou a Toms e, desde então, já doou 75 milhões de pares. A força da iniciativa, que criou uma legião de clientes fiéis, levou a empresa a ir mais longe: angariou mais de 90 parceiros em 70 países e hoje tem projetos nas áreas de educação, acesso a água potável e saúde em comunidades rurais.
EMPREENDEDOR SERIAL
Ex-empresário do ramo de odontologia no Recife, Fábio Silva deixou para o irmão administrar a empresa da família, que fatura R$ 300 milhões por ano, para se dedicar a iniciativas de impacto social. Criou duas ONGs que são referência em voluntariado em Pernambuco, a Novo Jeito, que mobiliza pessoas para situações emergenciais (como as fortes chuvas que deixaram 50 mil desabrigados em maio deste ano no Nordeste), e o Transforma Recife, plataforma que conecta organizações e pessoas interessadas em ser voluntárias com o objetivo de melhorar a qualidade de vida na cidade. O trabalho realizado por Silva chamou a atenção do governo americano, que o convidou para uma captação nos EUA em 2013. Foi quando ele percebeu que o que fazia de forma intuitiva era empreendedorismo social. “Passei a entender que o social pode ser um negócio e, assim como um executivo de multinacional, o empreendedor social tem o direito de ser bem remunerado”, conta.
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Ao voltar da temporada de estudos e ciente de sua vocação, Silva criou mais uma iniciativa, a incubadora Porto Social, com o objetivo de apoiar outros empreendedores que estão na mesma pegada. Desta vez, quem quis conhecer suas propostas de perto foi o papa Francisco, que recebeu o brasileiro no Vaticano em abril para ouvir sugestões de como tornar seu papado mais produtivo em relação ao voluntariado.
Silva tem buscado novas formas de auferir receita – uma delas é por meio de projetos em parceria com grandes empresas, como Itaú e Neoenergia, que buscam investir em responsabilidade social. “O Porto Social coloca as ideias sérias em contato com as empresas. Não faltam recursos, faltam bons projetos.”
A BASE DA PIRÂMIDE
Parte do desafio do empreendedor social no Brasil é trazer ao mercado algum produto ou serviço que ainda não foi inventado, e por meio dele gerar transformação social. Essa foi a motivação de Bernardo Bonjean, ex-executivo do mercado financeiro, para criar a Avante, startup de microcrédito voltada a pequenos empreendedores de áreas carentes. Durante uma temporada de estudos em Harvard, Bonjean travou contato com o conceito do capitalismo consciente e, de volta ao Brasil, analisou o mercado de crédito local.
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Chegou à conclusão de que os bancos e financeiras não contemplavam o microempreendedor da base da pirâmide, e, junto com dois sócios, dedicou-se a criar um modelo para atender a esse universo, estimado em 30 milhões de pequenos negócios. Em 2012, fundou a Avante – que não tem agência bancária fixa, mas está presente em mais de cem cidades do Ceará, Maranhão e Pernambuco com agentes de crédito que visitam os empreendedores em periferias, áreas rurais e de difícil acesso. Com uma entrevista de 20 minutos e a análise de um software desenvolvido pela empresa, o agente consegue calcular, na hora, o risco de crédito do potencial cliente – em muitos casos, a pessoa tem seu perfil aprovado mesmo que tenha restrições na praça. “Nossa proposta é humanizar a oferta de serviços financeiros, o que supõe um novo olhar sobre a questão da restrição ao crédito”, diz. Embora o risco pareça alto, a taxa de inadimplência média é da ordem de 6%. Com essa estratégia, a Avante construiu uma carteira de crédito de R$ 117 milhões em cinco anos de operação, com um tíquete médio de R$ 2.500.
O termo “empreendedor social” foi cunhado pelo Nobel da Paz Muhammad Yunus, conhecido como “banqueiro dos pobres”, após fundar o Grameen Bank, em Bangladesh. Ele fez escola ao conceder microcrédito a mulheres pobres. Hoje empresta US$ 1,5 bilhão por ano e ampliou sua atuação para as áreas de alimentação, telefonia e energia solar.
Embora exista um chamado “ecossistema” de apoio aos negócios sociais no Brasil, formado por organizações internacionais, fundos de investimento específicos e aceleradoras – a Avante, por exemplo, recebeu aportes do fundo Vox Capital e da família Klein, das Casas Bahia, entre outros –, a maior parte dos empreendedores acaba recorrendo ao capital próprio.
O “Mapa de Impacto 2017” (www.pipe.social/mapa2017), feito pela consultoria Pipe, que se define como uma plataforma de visibilidade para startups sociais, traçou uma radiografia do setor no Brasil, identificando 579 empresas e startups com esse perfil, além de 40 organizações que atuam com essa proposta. A maior parte dos negócios sociais (79%) está em processo de captação de recursos. Entre os que já receberam aportes, 25% foram de família e amigos e 11%, de incubadoras ou aceleradoras. Investidores-anjos, editais públicos e financiamento coletivo aparecem como outras iniciativas que os empreendedores sociais buscam para viabilizar seus planos de negócios. “Tudo é muito novo, o conceito de negócios sociais está sendo construído, e as formas de financiamento dessas atividades também”, diz Marcus Nakagawa, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e especialista em empreendedorismo e terceiro setor.
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CARREIRA COM MISSÃO
A despeito das dificuldades, como inovar em campos até então inexplorados em um cenário de economia instável como a nossa, nunca se ouviu falar tanto em negócios sociais no país. O empreendedor social no Brasil está abrindo seu caminho “na prática”. Para especialistas, trata-se de uma tendência sem volta, já que trabalhar com um negócio “com propósito” tem sido cada vez mais um desejo dos jovens que hoje saem das universidades, especialmente entre a chamada geração millennial (nascidos após 1982). “O jovem que está na universidade hoje, independentemente da classe social, sonha em empreender fazendo a diferença no mundo. É bem diferente da geração de nossos pais, que buscavam fazer carreira em uma empresa sólida”, diz Nakagawa.
Uma pesquisa de 2014 feita pela consultoria Deloitte com 7.800 pessoas em 29 países reforça essa percepção: para seis em cada dez millennials ouvidos, o propósito, ou a missão, faz parte dos motivos que os levaram a escolher a empresa em que trabalham.
EMPRESAS COM ‘B’ DE BENEFÍCIO
De 2013 para cá, o mundo dos negócios no Brasil tomou conhecimento da existência do Sistema B, ou B Corporation, movimento fundado há pouco mais de uma década nos Estados Unidos com o objetivo de redefinir o conceito de sucesso nos negócios e certificar as empresas que praticam uma gestão voltada a benefícios sociais – o “B” vem de benefit.
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Diferente das políticas de responsabilidade social comumente apregoadas pelas empresas, o Sistema B utiliza métricas e indicadores para que as companhias sejam a força propulsora de uma economia mais humanizada, ambientalmente sustentável e inclusiva. “Uma empresa B tem sua responsabilidade ampliada, pois agrega as externalidades sociais e ambientais ao seu modelo de negócios”, explica Marcel Fukayama, um dos responsáveis por trazer o sistema B para o Brasil.
Em todo o mundo, são 2.100 empresas certificadas como Sistema B, embora um universo muito maior, de 62 mil, utilize as ferramentas de gestão que o sistema propõe. Para se certificar, a empresa precisa passar por uma avaliação de impacto com 160 perguntas, que analisa aspectos como seleção de fornecedores, diferença na remuneração dos altos cargos em relação aos cargos da base, equidade de gênero, uso de energias renováveis, práticas de transparência e governança e a cultura de pertencimento dos funcionários. No Brasil, já são 85 empresas certificadas, desde gigantes como a Natura (a primeira empresa de capital aberto a receber o selo) até pequenos negócios sociais.
A Raízes Desenvolvimento Sustentável, negócio social criado para valorizar o turismo, o artesanato e a gastronomia regional brasileira, é um exemplo de negócio social certificado como Sistema B. Entre outros serviços, a empresa elabora roteiros de turismo sustentável e desenvolve projetos de geração de renda para comunidades vulneráveis, promovendo canais de escoamento de sua produção.
Com apenas cinco funcionários, a microempresa buscou a certificação, mas as sócias chegaram a ter dúvidas sobre as vantagens que teriam sendo uma empresa B certificada. “A certificação ajudou a reduzir a burocracia necessária para que a Raízes prestasse serviços para a ONU durante a Olimpíada em 2016”, conta a diretora Mariana Madureira. A empresa elaborou 18 roteiros para a campanha Passaporte Verde, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, com o objetivo de estimular o turismo regional sustentável durante o período dos Jogos Olímpicos. A certificação trouxe para a microempresa um novo olhar para sua gestão – além da oportunidade de novos negócios.
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Glossário
Negócio de impacto
Empreendimento capaz de gerar impacto socioambiental, ao mesmo tempo que gera resultado financeiro positivo de forma sustentável. Pode distribuir dividendos aos sócios
Empresa B
Movimento global iniciado nos EUA, segundo o qual empresas, independentemente do porte, devem gerar lucro e ao mesmo tempo oferecer benefícios para a sociedade por meio de seu modelo de negócios
Incubação
Tempo que a startup permanece dentro de uma estrutura maior (acadêmica, privada, governamental ou ligada ao terceiro setor), da qual aproveita o espaço e o auxílio na gestão, pesquisa e desenvolvimento
Aceleração
Processo que aumenta a velocidade dos ciclos de desenvolvimento dos produtos ou serviços de uma startup