Ele viu a Vivo nascer e está vendo o telefone morrer – para dar lugar a assombros que saem da ficção para desembarcar no mundo real. “O mundo como o conhecemos hoje simplesmente não existia dez anos atrás, antes da chegada do iPhone, do smartphone. Pelo ritmo alucinante das inovações, é provável que daqui a dez anos o modo de vida atual também não exista mais”, profetiza o engenheiro metalúrgico Eduardo Navarro de Carvalho, de 54 anos, 18 deles vividos dentro de uma gigante das telecomunicações, a Vivo – uma das peças-chave da transformação digital do país.
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Navarro trabalhava havia dez anos em uma siderúrgica – “com capacete e tudo” – quando foi convidado pela consultoria McKinsey para ajudá-la no processo de privatização das grandes siderúrgicas do país, no início dos anos 1990. “Eu não tinha formação em negócios. Mas conhecia muito bem minha área”, diz. Parece ter sido o suficiente. Ele não só acompanhou toda a reestruturação do setor siderúrgico como também mergulhou no processo de privatização que se seguiu, o das telecomunicações. “Comecei a prestar consultoria para a Telefonica. Ela ganhou [a empresa espanhola arrematou a Telesp no leilão da Telebrás, em 1998] e continuei trabalhando como consultor para ela até ser convidado para fazer parte do time – do lado de dentro”, lembra. Aceitou. “Eu estava no lugar certo na hora certa.”
30 MILHÕES NA FILA
O primeiro e monumental desafio, lembra o executivo, foi enfrentar a fila de cerca de 30 milhões de pessoas que tinham comprado um telefone fixo pelo plano de expansão e ainda não haviam recebido a linha. Uma linha telefônica fixa chegava a custar cerca de US$ 5 mil. Durante a longa espera, muitos eram obrigados a alugar um número. “Enquanto era estatal, as pessoas esperavam anos e anos por sua vez. No dia que privatizou, todo mundo começou a exigir: ‘Quero meu telefone agora!’”, lembra o executivo. “Foi um esforço enorme, o nível de intervenção que fizemos na rede foi brutal. Mas já em 2001 conseguimos zerar a fila.”
EXPANSÃO
O segundo desafio foi modernizar o serviço. “Lançamos o Speedy, a banda larga, alguns serviços para celular. E lançamos a Vivo em sociedade com a Portugal Telecom (50% cada uma). Crescemos muito.” Mas ainda havia um problema. “Tínhamos a telefonia celular no Brasil todo, mas não tínhamos a telefonia fixa fora de São Paulo”, conta Navarro. “Alimentávamos um sonho antigo, que era comprar a GVT [operadora fundada em Curitiba em 2000 e controlada pela francesa Vivendi a partir de 2009]. Desde 2004, nós víamos a GVT crescer, crescer… Era impressionante. Até que, entre 2014 e 2015, nosso sonho se concretizou.” Ao custo de US$ 9,3 bilhões.
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INTEGRAÇÃO
Iniciou-se outro ciclo, o da integração das duas operadoras. O israelense Amos Genish, que tinha vindo ao Brasil fundar a GVT com a ajuda de fundos internacionais, foi chamado para conduzir o processo. “A escolha do Amos foi uma decisão acertadíssima. E assim passamos a ter presença em quase todo o país, tanto com celulares como na telefonia fixa”, diz Navarro. Essa fase terminou no ano passado, com as empresas “plenamente integradas”.
TRANSIÇÃO
E veio a fase seguinte, que o belo-horizontino Eduardo Navarro foi convidado a conduzir. “Minha missão é preparar esse novo conjunto de ativos para o mundo digital, fazer a transição de uma empresa que começou vendendo voz. Não faz mais sentido falar em ‘telefone’ [tele = longe, à distância + fone = som, voz] porque hoje você usa o celular para cada vez mais coisas e cada vez menos para falar. O ‘tele’ vai ficar, o ‘fone’ vai morrer”, analisa.
Para as novas gerações, fazer uma ligação é visto como algo intrusivo – a pessoa do outro lado tem que parar o que está fazendo para atender a chamada. Por texto ou áudio gravado, ela vai responder quando achar melhor. “Hoje as pessoas, principalmente os mais jovens, estão sempre fazendo várias coisas ao mesmo tempo. Eu mesmo consigo conversar com você e ao mesmo tempo teclar, respondendo alguma coisa importante, sem interromper esta entrevista. Se tivessem me ligado, eu teria que parar, porque falar ao telefone requer um nível de atenção impossível de compartilhar com outras atividades.”
O acesso a um novo arsenal de ferramentas e de informações, mais o fato de poder fazer o que se quer na hora que se quer, no mundo digital, é uma forma de empoderamento, na visão do CEO. “Imagine como era planejar uma viagem a Paris 20 anos atrás. O normal era pedir aos amigos indicações de hotéis, de restaurantes, de passeios… Era um processo demorado e impreciso. A reserva só era confirmada depois de dias. Hoje, em questão de minutos, você tem todas as informações e resolve tudo na hora. Se alguém não te atender bem e rápido, você parte para outro.”
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Isso cria uma nova expectativa nos consumidores e muda a relação deles com as empresas. “Como uma empresa de telecomunicações, temos que nos adaptar mais do que ninguém. O ‘novo mundo’ só é possível porque as pessoas têm um celular e uma banda larga, e nós estamos no coração dessa revolução.”
Se por um lado usamos cada vez menos a voz para nos comunicarmos com pessoas distantes, por outro nunca precisamos tanto dos serviços de telecomunicações para uma infinidade de outras coisas – muitas das quais inimagináveis até poucos anos atrás.
“Uma pessoa que antes podia falar em um único telefone hoje pode ter dezenas de dispositivos conectados. A largura da conexão tem que ser cada vez maior. O tráfego de dados aumenta de tal forma que nossas redes precisam crescer num ritmo de 60% a 80% por ano. Significa que, em dez anos, o tráfego nas redes aumenta mil vezes. Só na rede de pré-pagos, em um único dia, nós usamos dez vezes mais dados do que a soma de todos os bancos do país. Temos que nos adaptar a isso”, afirma Navarro. E compara: “Imagine uma estrada projetada para passar um carro e que, dez anos depois, precisa comportar mil carros. Esse é nosso desafio”. Em números, esse desafio significa passar de 1,3 mil para 2 mil cidades com 4G e multiplicar por três a quantidade de fibras óticas instaladas no ano passado.
PARA SE MANTER VIVA
Perguntado sobre o risco de um novo modelo pulverizar seu negócio a qualquer momento, inutilizando todo esse esforço, Navarro diz, convicto, que a disrupção que poderia acontecer no setor já aconteceu – e cita Whatsapp e Skype, que mudaram o modo como as pessoas se comunicam. Ao contrário de tornar a Vivo e outras operadoras obsoletas, esses serviços (e outros considerados disruptivos, como Netflix) tornaram-nas ainda mais relevantes, pois geraram uma dependência ainda maior da rede, avalia. “No Whatsapp você não usa mais o serviço de voz da operadora, mas usa sua rede de dados. Se não estiver conectado, ele simplesmente não funciona.”
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Mesmo assim, ele sabe que é bom não descuidar – e que é impossível competir com o grau de dinamismo que tomou conta do mercado, com a proliferação de startups e pequenas empresas oferecendo novas soluções a cada minuto. “Estamos competindo com milhões de cabeças. Temos que estar perto delas, observando tudo o que surgir de relevante.” Por isso, a Vivo mantém incubadoras de startups em 18 cidades no Brasil e no mundo. “Temos demandas em várias áreas e vamos fazer acordos [com as startups] que beneficiem os dois lados.”
Outro ponto de atenção na empresa está ligado à forma de relacionamento com os clientes. Para ele, não faz sentido sua empresa capacitar bancos, companhias aéreas e várias outras grandes organizações, digitalizando sua relação com o cliente por meio do celular, enquanto a própria Vivo gasta tempo e dinheiro enviando 30 milhões de contas em papel todo mês. Além disso, um callcenter nos moldes tradicionais atende 20 milhões de chamadas mensais. “E se o cliente tiver um problema técnico na casa dele, vai chamar um técnico nosso, o técnico vai agendar a visita e o cliente terá que ficar esperando no dia e na hora combinados. Tudo isso devia funcionar no mundo digital: para começar, não tem que mandar carta para ninguém, pagamento tem que ser pelo aplicativo – para que ficar derrubando árvores?”, pergunta.
Chamar um técnico em casa, na opinião do executivo, deveria funcionar como no Uber – você faz o pedido, o app aciona o mais próximo disponível, informa quem vai, quanto tempo vai demorar, mostra em que lugar do mapa ele está. “Felizmente, estamos no caminho para fazer isso acontecer.”
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DE VOLTA AO FUTURO
Na hora de encerrarmos a conversa, Navarro retoma a questão semântico-etimológica para resumir seu recado: “Num futuro muito próximo, a palavra ‘telefonia’ vai desaparecer para dar lugar a outras. Vai ser tele-qualquer coisa: telessaúde, tele-educação, telesserviço, teletransporte…” Esse último vai demorar, comento. “Não sei, não”, ele responde. “Vendo o que aconteceu nestes últimos dez anos, não duvido de nada.”
A VIDA DIGITAL
A voz está morrendo como negócio? Sim, está morrendo. Mas está surgindo em seu lugar um mundo de possibilidades
muito maior do que tudo o que já houve antes. E com um poderoso efeito adicional: em breve, tudo estará conectado (a famosa IoT, internet das coisas) e nós estaremos conectados com tudo e com todos. Seu carro, sua geladeira, seu relógio, seu trabalho, os lugares que você frequenta estarão gerando informações 24 horas por dia sobre você (talvez você use sua voz para dar comandos aos gadgets). Onde foi, quanto tempo ficou, como dirigiu, o que comeu, quanto gastou… O uso correto dessas informações vai dar pistas precisas sobre sua saúde física e mental, seus hábitos, seus gastos e gostos, sua capacidade de trabalho. Não haverá mais divisão entre sua vida digital e sua vida física.
Ciente do potencial – para o bem e para o mal – desse poderoso e valioso big data personalizado, Navarro pergunta: “Como gerir toda essa informação? A quem ela pertence?” Ele mesmo responde: “Pertence ao próprio usuário. O que podemos e devemos fazer é ajudá-lo a organizá-la, a protegê-la. Nossa missão agora e no futuro é chegar à melhor forma de ajudar o cliente com esse arsenal de informação, da forma mais segura possível.”
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CONTRA A LEI
Uma grande briga das operadoras é com o marco regulatório do setor. “A lei de telecomunicações no Brasil é de 1997. Todo mundo atualizou suas leis, inclusive na América Latina. A nossa é de 20 anos atrás, quando não havia internet e os celulares eram incipientes. Por isso, nossa lei determina que o único serviço essencial para a população é a voz fixa – que hoje é praticamente inexistente”, reclama o CEO. “Isso coloca nas operadoras um conjunto de obrigações descabida. Por exemplo, tenho que ter praticamente um orelhão em cada esquina. Isso significa mais de 1 milhão de orelhões (não existe nada parecido no mundo), dos quais 35% não têm nenhuma chamada no mês e 95% têm menos de uma chamada por dia. Ninguém mais usa. Outra: temos que levar telefonia fixa a 20 mil localidades do Brasil – para qualquer aglomerado com mais de 300 pessoas, nós temos que levar um serviço de acesso fixo individual. Em 20% delas não temos nenhum cliente, mas somos obrigados a instalar. Em 40% temos menos de dez clientes. Mesmo assim, temos que montar toda a infraestrutura, com um custo enorme, fingindo que alguém vai usar.”
Se um morador pedir um telefone fixo, explica ele, o prazo máximo para entrega é de sete dias. Caso contrário,
a operadora é multada. O mesmo acontece caso a fiscalização da Anatel encontre um orelhão fora de funcionamento, mesmo que tenha sido depredado. “Tudo isso é impossível de atender – e olha que nossa obrigação é só no estado de São Paulo. Por isso meu desejo é ver uma regulamentação adequada ao século 21, em que a gente pare de falar sobre telefone público e passe a falar sobre banda larga nas escolas.”
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