Em abril de 2016, Mark Zuckerberg divulgou as metas do Facebook, na 58 Developer Conference, na qual anunciou o desejo da companhia de “dar a todos o poder de compartilhar qualquer coisa com qualquer pessoa”. No entanto, após as revelações de uso não autorizado da base de dados dos usuários, na última semana, com uma possível influência nos resultados das últimas eleições presidenciais dos EUA, é justo presumir que o CEO do Facebook agora espere que as pessoas não tenham levado seus comentários ao pé da letra.
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É difícil compreender como uma empresa com reputação de ser administrada pelos melhores profissionais da tecnologia pode ter sido tão ingênua a ponto de não reconhecer os riscos de dar a desenvolvedores externos acesso à base de dados dos usuários. A empresa falhou em garantir que as informações seriam destruídas antes de serem usadas como arma ao caírem nas mãos erradas, além de ser relutante em avisar os usuários de que seus dados pessoais circularam, e ainda circulam, no ciberespaço.
O que torna as revelações recentes sobre o uso ilícito de dados do Facebook tão incômoda são as respostas atrasadas e por vezes falsas da rede social. Somente após cinco dias da denúncia pelo “New York Times” e pelo “Observer”, período no qual o Facebook aumentou em US$ 50 bilhões seu valor de mercado, é que dois grandes executivos da empresa finalmente reconheceram que o silêncio era uma postura inadequada.
Se outros executivos sênior se manifestaram, no Twitter e no Facebook, foi para negar a culpa: “Isso não foi, inequivocamente, uma violação de dados. As pessoas optaram por compartilhar seus dados com aplicativos de terceiros e, se esses apps não seguiram os contratos de dados conosco e com os usuários, então, é uma violação. Nenhum sistema foi infiltrado, nenhuma senha ou informação foi roubada ou hackeada”.
A explicação pouco confortou os usuários, que raramente lêem os termos de serviço e que esperam que o Facebook proteja seus dados do uso prejudicial e não autorizado, como Zuckerberg finalmente reconheceu em seu aguardado pronunciamento: “Temos a responsabilidade de proteger os dados dos usuários e, se não pudermos fazer isso, não merecemos servi-los”.
Após a inadequada resposta inicial, um porta-voz do Facebook disse ao “The Daily Beast”: “Toda a empresa está indignada por termos sido enganados. Temos o compromisso de aplicar vigorosamente nossas políticas para proteger as informações das pessoas e tomaremos todas as providências necessárias para que isso aconteça”. Mas o descontentamento da empresa foi pouco e muito demorado, já que a causa da quebra de confiança deveria ter sido reconhecida e solucionada há mais de três anos. Em 2014, um acadêmico da Universidade de Cambridge, Aleksandr Kogan, fez um discurso em Singapura no qual descreveu como conseguiu analisar uma amostra de mais de 50 milhões de usuários do Facebook, pela qual desenvolveu “a habilidade de prever qualquer característica virtualmente”. Kogan também se vangloriou de ter construído uma base de dados de todas as amizades feitas na rede de 2006 a 2012.
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Um ano depois, o “The Guardian” publicou um detalhado artigo sobre como a empresa de consultoria política Cambridge Analytica, que pagou para ter acesso às informações de Kogan, usava perfis detalhados psicologicamente na campanha de Ted Cruz, na eleição presidencial dos Estados Unidos. Como resposta, o Facebook pediu à Cambridge Analytica e a Kogan para garantir que haviam destruído os dados adquiridos de forma errada. Mas a empresa falhou ao se certificar de que essa potente fonte de informações tivesse sido realmente destruída.
No início de 2016, a campanha de Donald Trump contratou a Cambridge Analytica e pagou à empresa mais de US$ 6 milhões para que fosse fornecido uma ampla gama de serviços, incluindo análise de dados, perfis dos eleitores, identificação de nichos, desenvolvimento de mensagens em redes sociais, marketing digital e planejamento da campanha. Teria a empresa de consultoria continuado a usar os dados do Facebook para ajudar na campanha de Trump? Há evidências que certamente confirmam a teoria. Chris Wylie contou novamente que Steve Bannon, membro do conselho da Cambridge Analytica, havia estimulado os funcionários a usarem perfis psicológicos como arma em uma guerra cultural, que acontecia no campo de batalha eleitoral, para “ganhar a qualquer custo”.
O “Financial Times” reportou que o CEO da consultoria, Alexander Nix, ostentou o fato de ter usado “uma gigantesca base de dados sobre todos os adultos dos EUA” para ajudar na campanha bem-sucedida de Trump. Imediatamente depois da eleição, a Cambridge Analytica assumiu o crédito pela vitória e alegou que seus dados ajudaram a colocar anúncios onlines direcionados, que foram vistos 1,5 bilhão de vezes.
No seu mea-culpa, Zuckerberg admitiu que o Facebook “cometeu erros, que ainda há coisas para fazer e que precisa agir para solucioná-los”. O histórico de falhas sistemáticas na proteção da privacidade de usuários ou na prevenção do uso mal-intencionado de sua base de dados sugere que, se não fosse pela investigação do “New York Times”, “Observer” e “Channel 4 News”, provavelmente, não estaríamos em um debate público sobre o gerenciamento de falhas da rede social.
Mas por que o Facebook tem tido dificuldade em proteger as informações pessoais dos usuários e em prevenir explorações maliciosas na plataforma? A resposta mais comum para essa pergunta é que o modelo de negócio da rede social inevitavelmente causa a observação de comportamentos. Afinal, o sucesso do Facebook foi construído com a acumulação, ou vigilância, de informações sobre os hábitos de consumo dos usuários, o que permite a venda de anúncios direcionados e maior retorno financeiro. Esse efetivo modelo de negócios permitiu que o Facebook criasse uma empresa muito lucrativa, em números redondos: com receita de US$ 50 bilhões, crescimento de 50% por ano e margens operacionais de 50%. Portanto, não surpreende o fato de a companhia estar relutante em abandonar práticas tão bem-sucedidas.
A miopia de Zuckerberg
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Existe uma dinâmica mais profunda que explica a incapacidade crônica do Facebook de reconhecer o potencial risco social e de reputação que sua plataforma gerou. A miopia de Zuckerberg é o resultado da combinação de três mentalidades de liderança.
1) Visão arrogante e ambição de mudar o mundo para o melhor.
2) Excesso de confiança no poder da tecnologia para solucionar qualquer problema virtualmente.
3) Tendência de subestimar riscos não antecipados.
Apesar de essas ideias de gerenciamento não serem incomuns em Silicon Valley, quando aplicadas em uma empresa com a influência do Facebook, as consequências podem ser catastróficas.
Zuckerberg diz acreditar que a companhia que ele fundou há quase 15 anos cresceu para se tornar uma poderosa força global para o bem. Ele tem declarado frequentemente que a internet, assim como o sistema de saúde e a água potável, deveria ser considerada um direito humano. Zuckerberg considera as comunicações peer-to-peer um poderoso aliado na missão de “dar às pessoas o poder de construir comunidades e de aproximar o mundo”.
Guiado por essa visão altruísta, Zuckerberg impulsionou o rápido crescimento do Facebook com uma busca agressiva por mais dados, mídia, interações dentro e fora da plataforma, funcionalidade, engajamento e maior alcance global. No entanto, o grande erro da companhia foi a decisão do bilionário de compartilhar dados dos usuários com desenvolvedores externos, a partir de 2008, em troca de melhorar o funcionamento e a habilidade de rastrear os usuários fora da plataforma. Ao tomar essa decisão, a empresa confirmou sua preferência em adquirir mais dados e portabilidade em vez de proteger a privacidade dos clientes.
O Facebook certamente sempre esteve ciente dos “maus usuários” na plataforma: aqueles que praticam o bullying, postam fake news para lucrar ou promovem comércios fraudulentos. Mas Zuckerberg tem, constantemente, demonstrado confiança que seus algoritmos poderiam detectar e prevenir abusos maldosos na plataforma, apesar das evidências alarmantes de que esse problema tem piorado ao longo dos anos.
Zuckerberg ignorou os sinais de perigo por muitos motivos. No fim de 2017, o Facebook servia mais de 2 bilhões de usuários e mais de 5 milhões de anunciantes, o que beneficiava os acionistas (incluindo o próprio fundador, que possui a maior parte das ações), por fazer companhia ser avaliada em US$ 1,5 trilhão.
O sucesso excessivo provavelmente contribuiu para a miopia de Zuckerberg, que falhou no reconhecimento dos riscos de raros e possivelmente catastróficos abusos na rede. Nassim Taleb, acadêmico, escreveu extensivamente sobre a tendência humana de subestimar acontecimentos “cisne negro”, situações de baixa probabilidade, mas com altíssimo risco. Por exemplo, a miopia “cisne negro” contribuiu para a gestão de risco negligente que levou a uma série de desastres que poderiam ter sido evitados, incluindo a crise financeira de 2008.
No caso do Facebook, a miopia “cisne negro” levou Zuckerberg a ignorar o risco à reputação colocado pelo mau uso de dados de usuários do Facebook antes, durante e depois das últimas eleições presidenciais dos EUA. Antes mesmo de a Cambridge Analytica começar a trabalhar para a campanha de Trump, o Facebook falhou em verificar se a consultoria realmente havia destruído o cachê de informações ilícito. Durante a campanha, a rede social continuou a ignorar o crescente número de acusações de que a equipe de Trump usava técnicas de perfil psicológico e de direcionamento a determinado grupo, ao divulgar fake news em alguns Estados norte-americanos.
Mesmo após a vitória de Trump, Zuckerberg continuou a proclamar que a noção de que fake news poderiam ter influenciado as eleições presidenciais era “uma ideia louca”, além de rejeitar a importância dada às bolhas e alegar que as fake news representam uma parte mínima do conteúdo total do Facebook.
A teimosia de Zuckerberg em reconhecer a capacidade da Cambridge Analytica e de outros operativos políticos estrangeiros de explorar os dados e a plataforma da rede social para influenciar o comportamento dos eleitores é contraditória, já que o diferencial que impulsiona o lucro da empresa é a possibilidade oferecida aos anunciantes de criarem propagandas específicas para determinados consumidores em potencial.
Zuckerberg não foi o único a cair na armadilha da miopia corporativa. Travis Kalanick, do Uber, e Elizabeth Holmes, da empresa de serviços de saúde-tecnologia e médico-laboratorial Theranos, também tinham visões arrogantes sobre mudar o mundo para o melhor, além de excesso de confiança nas suas tecnologias e a incapacidade de reconhecer riscos “cisne negro” que ameaçam suas companhias e grande parte do mundo. Kalanick foi forçado pelo conselho de diretores a deixar seu cargo no Uber e Holmes, recentemente, fez um acordo com a Comissão de Títulos e Câmbio dos Estados Unidos, que a forçou a renunciar o controle da Theranos.
Zuckerberg conseguirá solucionar a crise?
A resposta para responder a essa pergunta está na compreensão de qual problema Zuckerberg irá escolher: reprimir o alvoroço atual sobre o colapso da Cambridge Analytica ou abordar preocupações mais amplas e de longa data, como o poder global e sem precedentes do Facebook de controlar o acesso a informações escondidas por trás de suas práticas comerciais pouco transparentes.
Ao focar a atenção do Facebook na identificação de possíveis violações dos termos de serviços por milhares de desenvolvedores externos há muitos anos e na promessa de novos controles de acesso à plataforma, Zuckerberg concentrou o todo o problema na portabilidade de dados externos e ignorou o fato de que, por meio dessas interações, o Facebook também acumulou e reteve dados detalhados sobre o comportamento do usuário para fins comerciais próprios.
Preocupações relacionadas à quantidade de dados coletados rotineiramente pelo Facebook e a como essas informações são usadas surgiram novamente, quando veículos de mídia revelaram que a rede social tem guardado ligações telefônicas e mensagens de texto de usuários do Android por anos. Junto às preocupações iniciais sobre a expansiva captura de dados, o Facebook repetiu sua típica resposta: “Nós nunca vendemos os dados e confie que ter todas essas informações nos ajudam a fornecer uma melhor experiência para os usuários da nossa plataforma”.
No entanto, um grupo crescente de líderes políticos não confia mais nas desculpas que transferem a culpa e dão repetidas garantias da intenção altruísta do Facebook e, agora, pedem que o CEO da empresa seja testemunha no Congresso e fale sobre diversas preocupações relacionadas à privacidade de dados. A agência de proteção ao consumidor Federal Trade Comission também entrou na discussão e iniciou uma investigação para determinar se as práticas de negócio do Facebook tem violado um acordo de 2011, que estabelece encargos sobre as políticas de privacidade do usuário da empresa.
Considerados a mentalidade de gerenciamento de Zuckerberg e o histórico de crises, será necessária muita pressão do governo ou de outra importante instituição com interesse no negócio para que o Facebook vá além de poucos ajustes nas suas práticas de negócios. A realidade é que é improvável que as partes interessadas da rede social criem um desafio sério e constante ao status quo da empresa.
Usuários
Um possível boicote dos usuários é a ameaça mais grave para o domínio de mercado do Facebook, o que explica por que Zuckerberg e Sheryl Sandberg têm se dedicado tanto aos pedidos de desculpa, na tentativa de restaurar a confiança de seu público. Os executivos estão cientes de que o Uber perdeu 15% de participação nos principais mercados metropolitanos dos EUA no ano passado, depois que a campanha “#deleteuber” surgiu por conta do boicote da empresa à paralisação dos taxistas, que protestavam contra a política migratória do presidente Trump. No caso do Uber, os consumidores tinham a alternativa de migrar para o concorrente, Lyft, que oferece um serviço semelhante.
A situação do Facebook é consideravelmente diferente. Casos isolados de #deletefacebook falharam na tentativa de ganhar engajamento, simplesmente porque a rede social está muito presente na vida de 2 bilhões de usuários. Consciente ou involuntariamente, a vasta maioria deles, aparentemente, aceitou a barganha de trocar todos os dados pessoais para ter acesso livre aos serviços do Facebook. Não espere que muitos usuários do Facebook ou do Instagram migrem para o Snapchat tão cedo.
Anunciantes
Enquanto os usuários continuarem engajados na plataforma, os anunciantes ficarão relutantes em excluir o Facebook do seu modelo de negócio. Nenhuma outra plataforma oferece tanto alcance no mercado, efetividade de direcionamento ou ferramentas de rastreamento de aderência como o Facebook.
Logo, por que esses 5 milhões de anunciantes estariam dispostos a ceder essas vantagens para seus competidores? Apesar de algumas companhias terem, de fato, anunciado uma suspensão temporária das propagandas no Facebook, a rede social provavelmente continuará sendo um canal dominante para publicidade.
Investidores e governo
Enquanto usuários e anunciantes continuarem na rede social, é provável muitos investidores façam o mesmo. A recente perda de valor de mercado reflete o nervosismo dos investidores atuais sobre a perspectiva de uma regulamentação governamental mais restritiva. Zuckerberg conseguiu acalmá-los ao demonstrar seu apoio a controles regulatórios apropriados.
Há razões para duvidar de que a ação do governo será rápida, abrangente ou excessivamente prejudicial ao modelo de negócios do Facebook. O presidente Trump, certamente, irá desencorajar o debate sobre um problema que questiona a legitimidade da eleição de 2016. Em Washington D.C., o Congresso já tem uma agenda lotada de desafios políticos e se prepara para o pleito de 2018. O anúncio de que a Federal Trade Comission deve abrir uma investigação sobre o Facebook dá a ao Congresso a chance de escapar do tema.
Diretoria
O Facebook tem um conselho distinto que, em circunstâncias normais, teria um forte controle sobre o gerenciamento operacional e de risco de reputação da empresa. Mas uma diretoria tem seu poder limitado quando o CEO controla 60% dos votos da quinta maior empresa de capital aberto do mundo. Zuckerberg continuará a ser o guia estratégico do Facebook.
Concorrência
Quem fará frente ao Facebook? A rede social tem demonstrado um apetite sem fim por adquirir ou replicar os serviços de concorrentes iniciantes. Embora seja verdade que o Facebook provavelmente será barrado de grandes aquisições, a empresa já criou uma vantagem aparentemente inabalável sobre a concorrência no âmbito de mídia social com publicidade. Mesmo que o Congresso aja para impor limites à terceirização e à portabilidade de dados de usuários no futuro, isso pode fortalecer a vantagem competitiva atual do Facebook, já que ele é o maior banco de dados de usuários da indústria.
Nos próximos meses, provavelmente, veremos uma série de melhorias incrementais nas práticas de negócios do Facebook, por meio de uma combinação de mudanças voluntárias na política da empresa e possíveis reformas regulatórias que sobre o fornecimento e uso permitido de dados pessoais:
– Maior transparência na identificação de patrocinadores e conteúdos de anúncios direcionados na plataforma, especialmente, aqueles que envolvem política.
– Controles mais rígidos sobre a portabilidade de dados dos usuários na internet.
– Protocolos mais rigorosos que exijam mais permissões dos usuários antes de coletar e guardar seus dados.
Essas mudanças não irão afetar completamente o modelo de negócios extraordinariamente bem-sucedido do Facebook e podem até ajudar Zuckerberg a superar a miopia que expôs a companhia a riscos de reputação que poderiam ter sido evitados. Estamos destinados a viver no mundo de mídias sociais, construído pelo Facebook com a nossa ajuda, por muitos anos.