Uma disputa entre grandes bancos está travando a implementação mais ampla de inovações no setor financeiro no Brasil com uso do blockchain, arquitetura que registra informações de uma rede de forma criptografada, verificável e compartilhada.
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Há pelo menos quatro anos em discussão na Febraban, entidade que representa o setor bancário, o blockchain (cadeia de blocos, no tradução literal do inglês) é visto como candidato a promover mudanças profundas no modelo de negócios de setores inteiros da economia.
Dadas as possibilidades inerentes ao blockchain, como de rastreabilidade e de que negócios entre duas partes ocorrerem sem necessidade de validação por terceiros, empresas tão distintas quanto fabricantes de bebidas e locadoras de veículos vêm fazendo investimentos crescentes no setor.
No segmento bancário, isso pode trazer ao cotidiano inovações como transferências bancárias a qualquer dia e hora ao custo de uma fração do atualmente pago nas TEDs e DOCs, ou a digitalização do real, tudo dentro de um período de implementação relativamente curto. Nada comparável com o governo de Singapura, que está na segunda fase de um projeto destinado a fazer todo seu sistema bancário rodar com base em blockchain, mas ainda assim profundas. “Daqui a alguns anos, qualquer troca ou liquidação financeira será feita por meio de blockchain”, diz o vice-presidente responsável por tecnologia do Bradesco, Maurício Minas.
Já se visualiza, por exemplo, cenário de redesenho ou de substituição da Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP), central responsável pela comunicação das transações entre os bancos, parte do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), diz Thiago Charnet, diretor de arquitetura da informação no Itaú Unibanco.
Mas isso depende de consenso entre as instituições sobre qual plataforma usar. Há dois grupos fazendo um cabo de guerra, cada qual tentando fazer prevalecer seu modelo, com Itaú Unibanco e Bradesco de um lado, e Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal do outro.
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Hoje, os bancos testam várias plataformas de blockchain simultaneamente, dependendo da aplicação desejada. “O mais provável é que daqui a alguns anos eles estejam usando várias plataformas, cada qual para uma aplicação diferente”, disse Guilherme Horn, chefe no Brasil da área de inovação da Accenture.
Para uso mais abrangente, as preferências têm se dividido. Santander, BB e Caixa têm desenvolvido testes conjuntos no Multichain e no Hyperledger Fabric, plataforma totalmente aberta tida como mais eficaz na interface dos bancos com empresas clientes, por exemplo.
Já Itaú e Bradesco preferiram aderir ao Corda, sistema desenhado para o setor financeiro pelo R3, consórcio global de 94 instituições financeiras do mundo, incluindo eles mesmos, além da B3, no Brasil.
Na semana passada, o Santander Brasil lançou um serviço de remessa internacional por meio do Repo, considerado o melhor para esta atividade. Itaú e Bradesco, com mais dois bancos, começaram mais cedo neste ano no país a usar blockchain nas transações entre eles com derivativos de balcão, com base no Corda.
Além das preferências tecnológicas, o embate envolve questões mais amplas, como o controle de como e quem pode ter acesso à informação, um tema sensível no setor financeiro, dada as implicações sobre sigilo e a sustentabilidade do negócio.
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Daí a preferência dessas instituições para fazerem parte de um consórcio fechado, o que lhes dá maior controle para impor determinados limites sobre a versão licenciada.
O Corda e o Hyper Ledger são conhecidos como Distributed Ledger Technologies (DLT), sistema parecido com o blockchain, mas que difere dele por ter controle mais centralizado. O Hyper Ledger, no entanto, é todo desenhado sobre plataforma aberta, enquanto o Corda tem duas versões. Na fechada, só os sócios têm acesso. “Mas outros usuários podem usar uma versão aberta, compatível”, diz o diretor-geral do R3 no Brasil, Keiji Sakai.
Oficialmente, os bancos dizem que as diferentes plataformas podem conviver e que os resultados de testes ao longo do tempo vão indicar quais as melhores para cada aplicação.
“Não achamos que seja um programa rival do Corda, embora algumas aplicações sejam parecidas”, disse Igor Regis Simões, gerente-executivo de tecnologia do Banco do Brasil, sobre o Hyper Ledger.
As declarações amistosas dos executivos, no entanto, contrastam com embate de bastidores entre os bancos para tentar fazer prevalecer sua preferência, e que traz consigo interesses de gigantes de tecnologia incluindo IBM, Oracle e SAP, e possíveis contratos de centenas de milhões de dólares.
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“Algumas discussões no âmbito do sistema financeiro sobre a escolha da melhor plataforma deixaram de ser técnicas”, disse uma fonte, que pediu para não ser identificada.
Com isso, algumas novidades previstas pela própria Febraban para 2018 com uso do blockchain foram adiadas. “Era para ser o ano da aplicação, mas isso atrasou”, disse a fonte. Procurada, a Febraban não comentou o assunto.
Uma das mais ambiciosas é a criação de uma versão digitalizada do real, que permitiria que pessoas fizessem, por exemplo, pagamentos por meio de uma carteira digital, um projeto que tem interesse direto do Banco Central.
Em vez disso, os bancos têm avançado mais rapidamente com o uso do blockchain para uso interno. O BB já tem uma moeda digital própria, o “flurbos”, usado para patrocinar projetos internos de inovação. O Bradesco está desenvolvendo algumas soluções que poderão ser vendidas para empresas ou para governos.
Alheio a essa disputa, o BC tem feito vários testes que o setor chama de provas de conceito e que podem chegar ao público nos próximos meses, incluindo um sistema de identificação digital para combater fraudes.