O texto a seguir foi retirado do livro “This Thing Called Life: Prince, Race, Sex, Religion, and Music” (Essa Coisa Chamada Vida: Prince, Raça, Sexo, Religião e Música, em tradução livre), da Bloomsbury Academic, lançado neste ano e ainda sem edição em português.
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Durante uma entrevista em 1997, no canal VH1, o comediante Chris Rock fez uma pergunta a Prince que ninguém havia feito antes. Pelo menos não tão francamente. “Essa coisa andrógina foi uma performance ou você procurava por sua identidade sexual?”, questionou. “Essa é uma boa pergunta”, respondeu Prince, com um sorriso tímido em seu rosto.
Com os olhos escondidos atrás de óculos escuros, o cantor faz uma breve pausa para organizar seus pensamentos. “Eu não acho que de fato procurava algo”, disse. “Acho que fui sendo quem eu era. Como o verdadeiro geminiano que sou. E há muitos lados nisso também.” Prince faz uma pausa novamente e sorriu, antes de reconhecer: “E havia uma pequena atuação que ocorria também”.
Embora breve, essa foi talvez a melhor, e mais honesta, explicação que Prince deu sobre o assunto. Sua persona andrógina era real (ele era quem ele era), mas também havia uma performance, uma decisão de marca pessoal calculada.
Esse paradoxo, é claro, nem sempre foi entendido pelo público norte-americano. Nos estágios iniciais de sua carreira, as pessoas frequentemente confundiam suas personalidade artística, identidade de gênero e identidade sexual. A premissa do final dos anos 70 e início dos anos 80 era de que Prince era gay. Em uma entrevista de 1983 para a revista “Musician”, ele foi perguntado sobre isso:
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MUSICIAN: Você acha que as pessoas pensam que você é gay?
PRINCE: Bem, há algo sobre mim, eu sei, que faz as pessoas pensarem isso. Deve ter origem no fato de que passei muito tempo com mulheres. Talvez eles vejam coisas que eu não vejo.
M: As pessoas sempre falam de uma sensibilidade feminina como se fosse algo negativo em um homem. Mas geralmente é muito atraente para a maioria das mulheres.
P: Eu não sei. É atraente para mim. Quero dizer, eu gostaria de ser uma pessoa mais amorosa e ser capaz de lidar com os problemas das outras pessoas um pouco melhor. Os homens são realmente fechados e frios, eu acho. Eles não gostam de chorar, em outras palavras. E acho que isso está errado, porque isso não é verdade.
Prince não se conformava com as expectativas de masculinidade norte-americana, que não permitiam vulnerabilidade e intimidade. As pessoas achavam que ele era gay, não por causa de qualquer evidência sobre sua vida sexual, mas porque gostava da companhia feminina; porque às vezes usava maquiagem, saltos e roupas extravagantes; porque sua imagem não significava “homem de verdade”. Entre os termos mais comuns para descrevê-lo, estavam os epítetos: “freak”, “pervertido” e “bicha”. Para seus fãs, é claro, sua diferença e disposição para transgredir fronteiras era uma grande parte de seu apelo. Já na América Central, Prince não era compreendido.
Quando o cantor e sua banda, Revolution, abriram para os Rolling Stones, em 1981, no Coliseum, em Los Angeles (EUA), seu estilo foi subitamente alvo de uma onda de raiva e intolerância. Prince subiu ao palco com sua marca registrada, biquíni preto e trenchcoat, à espera de uma reação entusiasmada, semelhante às recebidas em locais menores durante sua turnê. No entanto, foi rápido e aparente que a multidão predominantemente branca e fã de rock não estava de acordo. A música não era o problema principal, embora o novo funk wave-inflected do artista possa não ter feito sentido para o público mais velho. Foi a aparência andrógina do Prince o problema.
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A multidão começou a vaiar e gritar expressões racistas e homofóbicas. Prince tentou contornar e inseriu mais rock à performance. Mas, em pouco tempo, lixo, comida e garrafas foram atiradas no palco. O músico chegou a contar que se lembrava de, nesse dia, olhar para o público e se concentrar em um homem perto da frente do palco com “ódio por todo o rosto”.
Depois de se submeter a esse tipo de violência por várias músicas, Prince chegou ao limite. Mick Jagger e outros tentaram persuadir o artista a tentar mais uma vez, e ele relutantemente voltou, mas novamente foi recebido com intensa hostilidade. Após o episódio, ele voou para Minneapolis e se recusou a abrir para os Stones novamente.
A experiência magoou Prince profundamente. Por outro lado, ele não se intimidou ou fez mudanças em seu visual. “As pessoas que não estão contentes com isso, espero que tratem de se alegrar”, disse. “Porque eu vou estar aqui por um bom tempo. Digamos que até que algo estranho aconteça, como um raio ou alguma coisa assim.”
Prince provou ser profético. Como um artista brilhante e comercial, ele reconheceu que a multidão no Coliseum representou o passado, enquanto ele e sua banda multirracial e multigênero representava o futuro.
Em vez de recuar na controvérsia sobre gênero e sexualidade, ele a abraçou. Seu álbum de 1981, apropriadamente intitulado “Controversy”, inclinou-se totalmente para os rumores e especulações sobre sua identidade. A faixa-título trazia perguntas provocativas (“Sou negro ou branco / sou hetero ou gay?), mas não respondia a nenhuma delas. Essa ambiguidade poderia incitar a animosidade, como ele aprendeu no Coliseum, mas também poderia ser usada a seu favor. Em “I Would Die 4 U”, o artista declara sua androginia como um distintivo de honra, ao cantar: “I’m not a woman. I’m not a man. I am something that you will never understand” (“Não sou mulher. Não sou homem. Sou algo que você nunca entenderá”, em tradução livre). Dessa forma, sua fluidez de gênero acentuava a mística. Ele iludia nossa capacidade de controlar ou compreender, o que deu a ele uma identidade quase trans-humana.
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Prince continuou a brincar com as expectativas de gênero ao longo da década. Em meio à ascensão do heavy metal e do hip hop, propensos ao misoginismo, no final dos anos 80, Prince lançou o álbum alternativo “Lovesexy”. A capa mostra o artista nu, uma figura pequena e andrógina, em flores brancas de lavanda. A pose de Prince é feminina, com a perna levantada para destacar sua forma (e esconder outras áreas); um braço esticado para trás, o outro logo abaixo do mamilo; uma juba de cabelos negros. Há traços masculinos também: o cabelo no peito e no estômago, o bigode mal passado; e um não tão sutil estame (órgão fertilizante masculino de uma flor) ereto, logo acima de sua virilha.
Mas talvez seu movimento mais controverso tenha sido a infame transformação do nome, em 1993, para o icônico Love Symbol (Símbolo do Amor). Mais uma vez, a decisão teve a ver com identidade e marca.
Por um lado, o Love Symbol é representativo por ser uma fusão dos dois gêneros. Macho e fêmea estão entrelaçados, fundidos pela alquimia. Foi assim que Prince escolheu se identificar: não como um homem no sentido tradicional, mas como um conceito andrógino que significava além das restrições dos rótulos ou mesmo da linguagem.
Foi também uma tentativa mais prática de se libertar do cativeiro contratual com sua gravadora, a Warner Bros. Eles poderiam ter a marca “Prince”, mas não poderiam ter o artista. Eles poderiam ficar com o nome. Ele seguiria em frente com o novo conceito.
A decisão foi amplamente criticada na época. No entanto, mais uma vez, a genialidade de Prince enquanto marca provou ser notável e voltada para o futuro. The Love Symbol agora era reconhecido internacionalmente e associado a Prince. Talvez nenhum outro artista na história da música tenha criado um logotipo tão marcante.
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Havia, é claro, muitos outros artistas antes de Prince que brincaram com os limites do gênero, como Little Richard e David Bowie. A década de 1980 ficou marcada por sua integração sem precedentes de flexão de gênero na cultura popular, de Michael Jackson a Annie Lennox e Boy George. Mas nenhum artista subverteu o binário de gênero de tantas maneiras quanto Prince.
Após sua morte, centenas de milhares de fãs escreveram tributos com elogios a Prince por esse pioneirismo, por mostrar às pessoas, independentemente de raça, sexo ou orientação sexual, que não havia problema em ser diferente. Não havia problema em resistir a rótulos. Não havia problema em marchar ao ritmo do seu próprio compasso.
Junto ao seu brilhante catálogo de músicas, a reinvenção de gênero do artista está entre seus maiores legados.