Prestes a recuperar seu posto de mais rico do mundo, uma vez que Jeff Bezos está em processo de divórcio e deve dividir sua fortuna, Bill Gates gosta de colocar em prática a lógica afiada e imparcial que fez dele um dos mais imbatíveis empresários do século passado, mesmo quando o tema se refere a ele ou a outros integrantes não tão populares do clube do bilhão.
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“Acho incrível que, pela primeira vez na vida, as pessoas estejam discutindo o recolhimento de impostos sobre a fortuna dos bilionários. Essa pode ser uma boa discussão”, diz.
Uma discussão que aconteceu há poucos dias a apenas um quarteirão da Trump Tower, casa do primeiro presidente bilionário dos EUA. “Minha opinião é que deveria haver um imposto imobiliário, talvez até maior do que o que temos hoje. Mas, entre os integrantes da lista FORBES 400, eu não acho que haveria um consenso sobre isso. [Warren] Buffett e eu estamos contra o interesse da maioria”, diz Gates. “Então, acho que há muito debate sobre como o capital deve ser tributado, como as propriedades devem ser tributadas.”
Mas Gates é muito claro: “A ideia de que não deveria haver bilionários pode fazer com que o salário que você poderia ganhar seja muito menor do que no cenário atual”.
Para entender a perspectiva do bilionário, é fundamental levar em consideração os milhões de dólares que ele e sua mulher, assim como o amigo e também bilionário Buffett, destinam à filantropia, por meio da fundação que leva o nome do casal. Gate diz acreditar, de forma acertada, que um sistema tributário que passa do progressivo para o confiscatório gera menos riqueza e inovação no geral. E ele e Melinda examinam o assunto de modo muito organizado. “É mais construtivo dizer que você está salvando uma vida do que dizer que está salvando um milhão delas”, afirma. “E acho isso estranho.”
Essa visão de mundo aparece na edição 2019 da carta anual dos Gates, divulgada na última terça-feira (12). O documento apresenta ostensivamente as observações e prioridades filantrópicas do casal, com foco em nove “surpresas” que inspiraram a família a agir. Na verdade, esse é um dos atrativos do poder do investimento filantrópico: a ideia de doar, não para suavizar os problemas, mas para resolvê-los.
Os Gates escrevem sobre o Becoming A Man (BAM), um programa de aconselhamento em grupo que ajuda adolescentes a permanecerem na escola por meio da canalização da raiva. Gates afirmou que teve uma “experiência tocante” ao participar de um desses grupos e falou sobre o que ouviu sobre os casos globais de pólio. E falou sobre o “Toilet Fair”, uma invenção de sua fundação projetada para acabar com os problemas de saneamento em Pequim, na China. Aficcionado pela África, Gates diz ainda acreditar que a população jovem do continente pode transformar a força de trabalho global.
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Todas essas iniciativas contam histórias parecidas. Elas tratam, basicamente, de “escolher novas ideias” ou “teorias comuns”, como diz Gates, e depois provar que os conceitos funcionam. “Você, primeiro, encontra uma solução. Depois, na hora de implementar e ampliar, o dinheiro vem, normalmente, do próprio governo”, diz.
Esse é um ponto crítico, uma vez que Washington não consegue aprovar nem mesmo as políticas mais óbvias em relação ao futuro. Veja a ajuda externa: consome menos de 1% do orçamento dos EUA e é uma despesa que, desde o Plano Marshall, tem consistentemente gerado retorno positivo sobre o investimento (ROI) em termos de criação de estabilidade, de mercados comerciais vitais e de combate a doenças mortais. Embora o Congresso tenha rejeitado os cortes propostos pelo presidente Donald Trump, Gates continua preocupado. “Isso não pode ser ignorado, dada a intensidade do debate político sobre questões domésticas, principalmente, quando você tem uma grande parte da população questionando esse tipo de ajuda.”
Essa tendência nacionalista míope é uma questão global. “Estamos muito preocupados por que, se o Brexit não terminar com uma solução a contento, durante um bom tempo o Reino Unido pode considerar que a ajuda externa não é uma prioridade”, diz Gates. “Será que a França continuará sendo um país generoso se as suas condições internas piorarem?”, questiona.
Na educação, Gates enfrentou dilemas semelhantes. “Você acaba tendo de entrar em questões políticas para alcançar seus objetivos. É complicado.” O exemplo mais óbvio: sua luta pelos padrões educacionais do Common Core (uma espécie de base nacional comum voltada para um núcleo central de standards em leitura e matemática), classificado como “clube dos meninos bilionários” por críticos como Diane Ravitch, historiadora da educação, analista de políticas educacionais e professora de pesquisa na Escola Steinhardt de Cultura, Educação e Desenvolvimento Humano da Universidade de Nova York.
Então, por que os bilionários devem escolher quais problemas vamos resolver?
“A filantropia está lá porque o governo não é muito inovador, não tenta iniciativas arriscadas e, principalmente, não dá espaço para pessoas com experiência no setor privado, e opta por grandes equipes para experimentar novas abordagens”, diz Gates. “A filantropia ocupa esse espaço.”
A filantropia, como praticada pelo casal Gates, também corre riscos no terreno existencial no qual os líderes políticos prefeririam enterrar suas cabeças. Gates ainda se preocupa com a proliferação nuclear, uma área que seu amigo Buffett defendeu. Ele tem sido o líder global no que diz respeito aos riscos de pandemias e, em menor grau, da mudança climática, onde seu fundo de US$ 1 bilhão, o Breakthrough Energy Ventures, faz grandes apostas.
A inteligência artificial surge no horizonte como a mais nova ameaça trazida pela inovação. “A longo prazo, a IA pode ser um problema difícil de lidar”, aposta o bilionário.
Por incrível que pareça, Gates não pensa dessa forma em relação às mídias sociais. O menino prodígio do século passado, que enfrentou o escrutínio pelo que o governo federal classificava como táticas monopolistas da Microsoft, tem clara empatia pelo garoto prodígio deste século, Marck Zuckerberg, que colocou o Facebook no centro da discussão sobre uma espécie de erosão da democracia, como recentemente esboçado pelo investidor Roger McNamee.
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“Acho que o que Roger afirmou é injusto”, diz Gates. “Eles estão culpando Mark por tudo. O que eu quero dizer é que Trump não foi eleito por causa do Facebook. Eles falam sobre a bolha de filtro… Toda essa polarização. Bom, sejamos claros: eu posso ler o que eu quiser, ouvir emissoras de rádio de direita, ouvir a Fox News. Você pode acabar com o Facebook, e as pessoas continuarão a viver em suas próprias bolhas de informação. Esses filtros não são apenas o feed do Facebook, então, não adianta achar que a culpa de as pessoas viverem em bolhas sociais é do Zuckerberg. Não existe uma solução prática para essa questão.”
Por último, Gates, cujo patrimônio líquido, mesmo depois de grandes doações para a fundação Bill & Melinda Gates, aproxima-se de US$ 100 bilhões, considera a filantropia como uma força vital para o bem. E diz acreditar que os críticos, mesmo um potencial primeiro-ministro britânico mal-humorado, chegarão à mesma conclusão.
“Quando me encontrei com Jeremy Corbyn pela primeira vez, será que ele me enxergou somente como um cara bilionário que tem mais dinheiro do que deveria? Ou será que ele me viu como um filantropo que está ajudando a melhorar a África e solucionando problemas de educação?”, questiona. “Felizmente, foi a segunda opção. Mas tenho certeza de que ele deve ter pensado: ‘Talvez esse cara não devesse ter nada disso’.”