A indecisão sobre o teto de dívidas dos Estados Unidos tem inundado os noticiários nas últimas semanas, apontando para um risco de calote que poderia causar “danos irreparáveis” ao país, segundo a secretária do Tesouro, Janet Yellen. Apesar do tom alarmante, o impacto desse risco nos mercados financeiros ao redor do mundo tem sido controlado, com analistas apostando que o governo norte-americano chegará a um consenso antes do esgotamento de recursos.
Os Estados Unidos possuem um teto de dívidas estipulado em US$ 28,4 trilhões desde 1º de agosto de 2021. Até o final de julho, eram US$ 22 trilhões. Os gastos do governo, porém, estão chegando perto desse limite, com expectativas de que a meta seja ultrapassada a partir de 18 de outubro. Sem uma reavaliação desse teto, o país não conseguirá pagar mais os credores, iniciando um efeito cascata de proporções extremas.
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“Com certeza isso tem impactado os mercados e gerado uma certa apreensão e uma tendência de baixa, justamente porque muitas relações do mercado são construídas a partir de confiança”, diz Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da FGV. “Especialmente no Brasil, que já vem sofrendo com outras baixas constantes. O país ainda não conseguiu articular um modelo de retomada de crescimento econômico como se esperava à medida que a pandemia fosse arrefecendo. Então seja no Brasil, seja no exterior, a possibilidade desse eventual calote, mesmo que pequena, tem gerado algum nível de turbulência.”
Dada a importância dos Estados Unidos para a economia mundial, a preocupação é inevitável. Afinal, se consolidado, o calote afetaria não apenas os mercados financeiros em si, como a oferta de dinheiro, os contratos de clientes, os índices de capital dos bancos e a classificação de risco de crédito do país, como comenta Alberto Amparo, analista de investimentos da Suno Research.
“Isso levaria todas as premissas a serem questionadas, no mundo inteiro. O dólar poderia deixar de ser a reserva monetária. E quantos contratos ao redor do mundo não são feitos com denominação em dólar? É até difícil quantificar, porque seriam muitos efeitos de segunda, terceira ordem”, complementa.
Durante uma audiência no início deste ano, o CEO do JPMorgan Chase, Jamie Dimon, disse que o banco já gastou tempo e dinheiro para investigar o que um calote poderia significar para os Estados Unidos. “E eu não quero me lembrar disso”, disse ele ao Senado americano.
Impasses políticos
O governo dos Estados Unidos já sofreu duas paralisações na última década em decorrência de desacordos sobre o teto de gastos, que muitos consideram ser apenas um ato de “politicagem”. A primeira foi em 2011, durante o governo Obama; a segunda, em 2017, sob o governo Trump. Discussões sobre o risco de calote do país também são recorrentes, mas, nenhuma vez em sua história, a inadimplência realmente se concretizou.
“Essas discussões acontecem basicamente quase todo ano. São notícias corriqueiras”, afirma Brites. “Mas é interessante pensar sobre o papel dos veículos de comunicação nesse sentido. Como pesquisador da área, eu vejo que as notícias não têm sido muito alarmistas. Elas têm dado o retrato de como as negociações têm avançado, e das dificuldades, inclusive parlamentares, que o governo Biden vem enfrentando para poder flexibilizar o teto de gastos.”
As negociações sobre o tema têm sido perturbadas por outras questões do governo norte-americano que geram discórdias entre democratas e republicanos, como um pacote de gastos sociais de cerca de US$ 3,5 trilhões e um projeto de lei de infraestrutura de US$ 1 trilhão propostos por Biden, aos quais os republicanos se opõem. Embora o presidente já tenha garantido que o aumento do teto teria como objetivo pagar as dívidas já existentes do país, os republicanos ainda se recusam a votar no aumento do teto.
“O impasse em torno do teto da dívida é muito ilustrativo de como a lógica política permeia o andamento da economia”, aponta Leandro Lima, pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo). “Os senadores republicanos apoiaram a elevação do teto durante o governo Trump e a recusa no momento atual é parte da estratégia de dificultar a governabilidade de Biden e obter concessões da Casa Branca em outros temas-chave. É bem claro neste caso como o risco político é um elemento imprescindível para entender as dinâmicas que desestabilizam os mercados.”
Segundo o pesquisador, porém, o presidente dispõe de recursos que podem transpor esse impasse. Ao invés de seguir o processo decisório comum, que requer uma supermaioria com o apoio de senadores republicanos, o governo pode se valer da estratégia de “reconciliação”, que requer apenas uma maioria simples. Esse é um caminho mais factível, afirma Lima, dado que os democratas contam com a metade das cadeiras no Senado e com o voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris.
Na última quarta-feira (6), o líder do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell, ofereceu uma proposta de extensão do teto de gastos até dezembro, que ainda está sendo avaliada pelos democratas, embora não seja uma solução definitiva. “Mas, caso o calote realmente ocorra, Biden deve priorizar os pagamentos de dívida para mitigar o impacto nos mercados”, conclui o pesquisador.
Outras prioridades
Além das tendências de baixa das bolsas ao redor do mundo, Alberto Amparo, da Suno, destaca que as notícias também podem exercer impacto nas compras dos títulos norte-americanos, os chamados Treasuries, que já vinham apresentando um movimento de alta recentemente.
“Se o preço desses títulos caiu agora por conta dessas notícias, porque o mercado é pessimista, pode até ser mais atraente você se expor mais a eles do que evitá-los. Se o preço cai, o yield, que é o rendimento, sobe, e isso se torna vantajoso”, avalia.
Por outro lado, o analista reforça a perspectiva de que o cenário de calote é improvável e que, por essa razão, os impactos do seu risco no mercado financeiro foram controlados até agora. “O Warren Buffett, que é o maior nome do mundo dos investimentos, já disse que os Estados Unidos nunca vai dar calote na dívida justamente porque, em última instância, eles podem imprimir dinheiro na própria moeda para pagá-la. Claro que isso iria gerar outros problemas, como a desvalorização da moeda. Eu acho que a situação da China, referente à Evergrande, é muito mais impactante do que está acontecendo nos Estados Unidos agora.”