“Nesses meses de reclusão [desde março], foi inevitável mergulhar em camadas do meu trabalho que, na pressa do cotidiano, não me dava conta. Refletir, rever, repensar, tudo isso não foi em vão. Resultou em uma série de conclusões. A principal descoberta foi perceber o quanto da ancestralidade indígena eu carrego comigo. Embora pareça mais europeu do que índio, a minha alma é ribeirinha, pertence à água, vem da floresta. Sempre foquei as pessoas invisíveis, a vida cabocla, sempre me encantei pelo ritmo ditado pelas águas, pelas cores.”
Paraense de Belém, o fotógrafo Luiz Braga, de 64 anos, fez seus primeiros cliques ainda moleque, aos 11 anos. “Meu pai era diretor de hospício, o hospital Juliano Moreira. Eu frequentava as dependências, participava dos jogos e de uma série de ações inspiradas na experiência que ele teve com a doutora Nise da Silveira [1905-1999; referência na humanização do tratamento psiquiátrico no Brasil]. Meu pai se interessava pelos desvalidos, por gente que não recebia afeto. Foi com ele que aprendi a importância de olhar para o outro. Essa é a origem do meu olhar.” O doutor Dorvalino Frazão Braga faleceu aos 97 anos, em maio, durante a pandemia. “O grande hábito que herdei dele foi a rede. Após a morte dele, notei que restituí o hábito de ter rede atada dentro do meu quarto.”
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Com fotos no acervo do Masp, da Pinacoteca do Estado de São Paulo, do MAM (SP), MAR (RJ), PAMM (Miami), Centro Português de Fotografia, entre outros, e mais de 200 exposições no Brasil e no exterior, Luiz ganhou as manchetes internacionais da arte em 2009, ao ser escolhido representante do Brasil na 53ª Bienal de Veneza, ao lado de Delson Uchôa, de Alagoas. “Nunca me preocupei com isso, então, foi uma grande surpresa quando o curador Ivo Mesquita me ligou falando da ideia de luz e cor, de florescência… Meu trabalho serviu como o sapato da Cinderela nessa proposta. Sete galerias me procuraram depois de Veneza, mas fiquei com a Leme, única a me chamar antes da Bienal.”
O começo da produção do paraense é em preto e branco – como a foto de abertura do livro “Luiz Braga” (Cobogó, 2014), organizado e editado por Eder Chiodetto, com design de Pinky Wainer: a imagem mostra internos do hospital indo a uma atividade em um igarapé. Mas foi a descoberta das cores da periferia de Belém que elevaram a fotografia de Luiz a outro patamar – “foi isso que me afirmou como autor”, como a Vendedor de balões (1990), foto da capa do mesmo livro.
“Saindo do bairro de Nazaré, no caminho da faculdade de arquitetura, percebi um colorido da periferia completamente diferente da Belém europeia. Aquilo foi um deslumbre para mim. Como um bom escorpiano, sempre me cobrei que tivesse uma marca, algo que pudesse ser reconhecido. Eu comecei a ter uma cara com a cor da visualidade popular da Amazônia. Isso era novo. Quase ninguém olhava tal realidade.”
O CHEIRO DA ÁGUA E DO VENTO
Quando resolveu voltar a fotografar em preto e branco, a lembrança é de uma dedicação extrema ao apuro das questões técnicas. “Eu vinha de uma série de fotografias em cores, me embrenhei no laboratório, fui atrás de tudo que havia de inovação e de material. Viajei para Nova York para estudar com o laboratorista George Tice, que fazia as cópias do Edward Steichen, um exímio laboratorista. Aprendi muito.” Tanto apuro desaguou na série À Margem do Olhar. “Foi a primeira abordagem que faço mais consistente do homem da Amazônia em seu ambiente, do dia a dia, na beira de rio, jogando roleta, nos portos, trapiches. O que amarra a série é a visão desses indivíduos, que vivem marginalizados. Afirmei meu olhar aos invisíveis pela primeira vez.” A série rendeu o prêmio Marc Ferrez, em 1998. “O tema do prêmio – a face negra da sociedade – era perfeito para meu trabalho, adequado”, analisa Luiz, que admira e tem como exemplo a trajetória de Mário Cravo Neto (1947-2009).
O terceiro pilar estético que sustenta o tripé profissional de Luiz Braga é o desenvolvimento de uma técnica de night vision a partir de 2004, ao lado do curador Paulo Herkenhoff. Insatisfeito com o resultado de fotos coloridas de uma nova câmera digital, Luiz passou a explorar o recurso de night shot, que deixa fotos noturnas esverdeadas. “Gostei do resultado granulado, da referência às imagens noturnas da Guerra do Golfo. Um belo dia, pensei em subverter o aparelho para algo que não foi feito – e fotografar com esse recurso durante o dia. Trabalho árduo de pesquisa, até a série Fé em Deus, feita no Maranhão, uma cena diurna que tem o mérito de trazer a floresta para minha obra.” Quinze anos mais tarde, em 2019, após a leitura de textos de João de Jesus Paes Loureiro, que reflete sobre os mitos da Amazônia, Luiz rebatizou a técnica para Mapa do Éden. “É uma fabulação, uma reconstrução de uma terra sem males, um conceito indígena, onde as pessoas vivem em harmonia consigo mesmo e com a natureza – um contraponto à violência crescente de Belém.”
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A curiosidade de saber como funciona uma máquina e inventar diferentes possibilidades de uso remetem a um início na fotografia nada comum em relação ao equipamento: uma Start B, da Rolleiflex, uma câmera nada apropriada para uma criança de 11 anos, idade que Luiz tinha ao ganhar a câmera de Raul Aguilera, um argentino amigo da família. “Foi um pontapé inicial muito bom, pois tive que ir atrás de entender o funcionamento. Montei um laboratório no porão de casa, revelava as minhas fotos. É maravilhoso acompanhar a mágica da imagem surgindo no papel. Para uma criança, é mais fantástico ainda.”
Por mais que esse mergulho no passado e na origem do olhar seja fruto do período de quarentena, Luiz sente falta do que move seu trabalho e baliza seu legado. “Quero poder retomar o contato com as pessoas, a beleza de seus gestos, a maneira honrada que elas vivem. É disso que me abasteço. Sinto falta de estar diante dos rios e de cenários encantadores. Sinto muita falta do Marajó, do rio Tocantins, de ir a Tefé, conhecer a terra de meu pai. O cheiro da água, o cheiro do vento. Espero que tudo isso acabe logo para voltar a viver.”
Veja, na galeria de fotos a seguir, imagens do fotógrafo Luiz Braga:
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Luiz Braga Babá Patchouli (1986), feita na Ilha de Mosqueiro, onde Luiz passava férias na infância
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Luiz Braga Boi Tinga (2001), feita em Belém. Máscaras do bloco de 80 anos de tradição, procedente de São Caetano de Odivela (PA)
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Luiz Braga Chuva no cachorro quente, (1985). “Sempre foquei as pessoas invisíveis”, diz Luiz Braga
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Luiz Braga Homem búfalo (1999), clicada na Fazenda Sanharão, na Ilha do Marajó
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Luiz Braga Urubus Marajó (2013), lugar que o fotógrafo tem sentido muita falta durante a pandemia
Babá Patchouli (1986), feita na Ilha de Mosqueiro, onde Luiz passava férias na infância
Reportagem publicada na edição 79, lançada em agosto de 2020
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