“Qual é seu sonho?”, perguntei isso ao fim de uma ligação com a Valdirene, cozinheira que trabalha comigo há alguns anos e com quem meu marido e eu criamos uma relação de amizade.
Fiz a pergunta aleatoriamente, porque a ligação estava animada — a gente agradecendo e elogiando a comida dela (é incrível mesmo!), e ela contando o que havia usado e o que pretendia fazer na próxima semana. A alegria espontânea dela, uma característica marcante de sua personalidade, me fez refletir momentaneamente sobre seus objetivos de vida particulares, então fiz a pergunta.
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Val silenciou do outro lado da linha. Depois de alguns segundos repetiu a questão — “meu sonho?” —, ganhando tempo para pensar mais um pouquinho.
Mas para mim já estava respondido. Ela não tinha um grande sonho na ponta da língua para motivar seu trabalho diário, para justificar os esforços que fazem parte de sua rotina.
Então ela interrompeu meus pensamentos, verbalizando os seus: “Eu tinha o sonho de comprar a casa onde moro, mas isso já conquistei”.
Nada contra ter sonhos. Eles podem nos levar mais longe e serem fundamentais para nos inspirar durante o caminho, ainda mais se forem tão valorosos quanto a jornada. Mas a resposta da Val sintetiza minha definição de riqueza.
Não lhe falta nada, então ela está sempre no lucro. O que explica eu nunca tê-la visto desmotivada, desanimada ou sem propósito. Ao contrário. Ela está entre as pessoas mais de bem com a vida que eu conheço, com disposição para realizar, aprender, evoluir. Mas ela é assim e faz o que faz porque lhe sobra — e não porque lhe falta.
A resposta da Val fez tanto sentido para mim porque a verdade é que me identifico com ela. Tenho alguns desejos, objetivos, vontades, mas vou ter que pensar se me pedirem para listar sonhos.ue Conquistei mais do que fui capaz de prever. Vivo uma vida que me traz paz e alegria. E isso tem muito mais a ver com a maneira como me sinto e me relaciono com as pessoas e com as oportunidades do que com coisas que acumulei.
Foi com essa mentalidade que nasceu minha empresa, seis anos atrás. Eu nunca sonhei ser uma empresária, ter um negócio, ganhar muito dinheiro.
O que eu queria mesmo era encontrar uma forma de fazer o que mais gosto durante a maior parte dos meus dias, contribuir com o mundo e pagar as contas. Não pensava em ter equipe fixa, não sabia onde o Atelier de Conteúdo poderia chegar, não fiz contas para além dos seis meses seguintes. Coloquei de pé um projeto simples e sustentável nesse período. E se eu morresse no meio dele, morreria fazendo o que sinto que nasci para fazer, rodeada das pessoas que amo e com mais conforto do que preciso.
Nunca entendi bem essa estratégia de abrir mão do que importa hoje para ser feliz amanhã. E já conheci muita gente que chegou ao amanhã sem encontrar o que esperava, carregando uma bagagem pesada, mas com pouco valor. Tampouco acredito no contrário: cometer desperdícios, imprudências, entrar em negação.
Viver bem o hoje, para mim, passa por não dar passos maiores do que a perna, monitorar as contas com o respeito que os recursos merecem e ter sempre em mente que o jogo nunca está ganho, então melhor manter os pés firmes no chão do que sair fazendo loucura como se não houvesse consequências. O ponto é lembrar que a vida não se adia. Ela passa, e se o nosso tempo não reflete o que queremos no presente, o futuro também não o fará. Afinal, como me disse certa vez o cartunista Ziraldo, durante uma entrevista: “O que é o amanhã se não um monte de hojes?”.
Acredito que o futuro é resultado não do que guardamos, mas do que experimentamos. Do que apreendemos das situações que vivemos.
Riqueza, na minha opinião, tem a ver com a possibilidade de compartilhar, e não com a tentativa de “pegar só para mim”. Compartilhar o que amo fazer com pessoas que querem e precisam do que o Atelier tem para oferecer. Poder estar onde agregamos e somos relevantes, e não onde não queremos, mas precisamos porque criamos metas que (ilusoriamente) nos farão felizes amanhã.
Essa mentalidade ajuda a lidar com os altos e baixos que qualquer empresa passa. Com as inseguranças que inevitavelmente acompanham quem empreende, com a possibilidade de o negócio que construímos um dia perder o sentido por melhor que sejamos e por mais atentas ao mundo que estivermos. Fica mais leve viver os desafios do dia a dia quando nosso compromisso não é com o que virá — e sim com o que somos. O que busco é o que diz um quadro que pendurei na cozinha de casa: “Que estejamos sempre prontos para começar do zero. Só por hoje”. Esse é o sonho que Val e eu temos escolhido viver.
Ariane Abdallah é jornalista, autora do livro “De um gole só – a história da Ambev e a criação da maior cervejaria do mundo” e fundadora do Atelier de Conteúdo, empresa especializada na produção de livros, artigos e estudos de cultura organizacional.
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