Melinda Gates tem muitas perguntas urgentes que demandam atenção. “Por que mais mulheres não entram na área da ciência da computação?”. “Por que é tão difícil começar um negócio na África?”. “Por que mulheres que trabalham recebem muito mais apoio nos países nórdicos?”. “Um presidente que fala coisas depreciativas sobre mulheres e minorias representa os valores norte-americanos?”.
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Além das perguntas, ela tem muitas respostas. “Faltam caminhos”. “Não há acesso a crédito”. “Políticas antigas que equilibram vida pessoal e profissional”. “Ñão”. Respectivamente.
Nos últimos 18 anos, as questões sem resposta e as pessoas ignoradas, subvalorizadas e esquecidas do mundo guiaram Melinda Gates, seu marido e cofundador da Microsoft Bill Gates e a Bill & Melinda Gates Foundation, a maior fundação de benemerência privada do mundo, que administra um fundo de US$ 40 bilhões.
Na semana passada, o casal foi a Nova York para revelar sua carta anual de 2018, intitulada, adequadamente, “As 10 perguntas mais difíceis que recebemos”. Ao dar um passo mais à frente, eles apareceram no palco na Hunter College com o maestro Lin-Manuel Miranda, vencedor de prêmios Pulitzer, Grammy, Emmy e Tony, para receber perguntas de uma plateia cheia de estudantes e espectadores via Facebook Live. Entre os espectadores virtuais estava Mark Zuckerberg, que perguntou: “Se vocês pudessem voltar no tempo e dar um conselho a vocês mesmos, quando mais jovens, qual seria?”.
FORBES conversou com Melinda sobre o movimento #MeToo, Donald Trump e empreendedorismo feminino.
FORBES: Você tem sido, por mais de uma década, a defensora mais poderosa das mulheres e meninas de todo o mundo. O que você pensa sobre o movimento #MeToo?
Melinda: Acima de tudo, é triste ouvir essas histórias de partir o coração. É preciso levá-las em consideração, e isso é difícil. Mas a melhor parte de tudo isso é oferecer transparência a algo que as mulheres conhecem no mundo todo. Não há um vilarejo rural na Índia ou um prédio corporativo nos Estados Unidos onde eu não escute sobre assédio sexual – e, às vezes, até violência sexual.
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Nós sabemos que a única maneira de criar uma mudança social é exibir as coisas em público. Então, a fase da transparência que estamos vivendo agora, mesmo que dolorida, é muito boa.
As pessoas precisam decidir mudar e precisamos trabalhar nessa mudança. Uma das coisas que eu acho mais encorajadora no movimento #MeToo é que agora, nos Estados Unidos, 80 mulheres estão concorrendo para governadoras, mais de 400 para a Câmara dos Representantes dos EUA e outras 50 para o Senado. São mulheres com diferentes perspectivas, dos dois lados do espectro, e não apenas um tipo de candidato. Quando começarmos a ter esse número de mulheres na representação política, com muitos pontos de vista diferentes, poderemos dar início à mudança em todo o sistema.
FORBES: Toda a ideia do #MeToo vem de um sentimento de violação. Você sente isso? Você fica brava quando escuta essas histórias?
Melinda: Com certeza. Eu fico brava por todas as mulheres ao redor do mundo que passaram por isso. Essa raiva abastece meu trabalho. Eu não me escondo dela. Ao contrário: aprendo com ela. Eu penso que precisamos mudar o sistema. E, honestamente, quando eu comecei a falar sobre empoderar mulheres na África, foi essa raiva que me abasteceu. Eu escutava as coisas que aconteciam com mulheres de lá e não conseguia acreditar.
Eu também ouvia as minhas amigas relatando situações parecidas e sabia alguma coisa por causa da minha própria experiência na indústria de computadores. É ridículo pensar no número de mulheres que fica na defensiva porque sua carreira foi interrompida, porque não se sentia confiante ou porque foi vitimizada e machucada… No número de ideias deixadas para trás porque nós não financiamos negócios comandados por mulheres…
Estou animada porque esse movimento, por mais difícil que tenha sido, vai nos fazer criar uma força de trabalho do século 21 que tenha muitas mulheres na ativa nos Estados Unidos e no mundo todo.
FORBES: Como é uma força de trabalho do século 21?
Melinda: A força de trabalho já representa muitos tons de pele e muitos gêneros. Mas precisamos acordar para o devemos fazer para apoiar e fazer isso funcionar, para que deixemos esse modelo antigo, das décadas de 1950 e 1960, em que o homem trabalha e a mulher fica em casa com os filhos. Esse simplesmente não é o mundo em que vivemos hoje. As mulheres estão na força de trabalho. Seus filhos dizem: minha mãe e meu pai estão trabalhando.
Eu falo muito sobre licença médica privada nos Estados Unidos exatamente por esse motivo. Essa lei foi aprovada há 25 anos, mas mesmo a comunidade que fez com que ela existisse achava que seria apenas um primeiro passo. Hoje, mais de duas décadas depois, nos perguntamos: “Não deveria ser uma lei de licença familiar remunerada?”.
FORBES: Seis semanas de licença familiar remunerada é uma das políticas rejeitadas pela administração de Trump. Vamos falar um pouco do atual presidente norte-americano, suas políticas e clima cultural…
Melinda: Como fundação, nós trabalhamos com sucesso com todas as administrações – democratas e republicanas – desde que começamos. Estamos tentando ativamente trabalhar com a administração de Trump. Mas algumas das políticas têm sido muito difíceis. Bill [Gates] e eu acreditamos totalmente em ajuda externa. Menos de 1% do orçamento do governo dos EUA vai para ajudar outros países e, ainda assim, esses dólares são o que cria paz e segurança ao redor do mundo.
Tem sido difícil lidar com a administração de Trump por esse motivo. Felizmente, o Congresso manteve o fundo porque sabe da importância do tema. Porém, isso significa que Bill e eu estamos passando muito mais tempo no Congresso e muito mais horas pendurados no telefone com seus integrantes. Felizmente, o presidente propõe e o Congresso se opõe.
FORBES: Você soa politicamente frustrada. Você é pessoalmente afetada pela Casa Branca de Trump?
Melinda: Eu acho desencorajador que o presidente dos Estados Unidos diga coisas depreciativas sobre mulheres e minorias. Isso me incomoda muito. Eu penso especialmente em nossos valores como nação. Quando eu viajo, me perguntam se esses são os valores norte-americanos. Eu digo: “Não, não são”. Eles não são o que eu vejo outros países ensinando aos seus filhos ou os professores ensinando aos seus alunos. Porém, eu espero que o presidente dos EUA seja um exemplo para nossas crianças. Eu conheço tantos meninos e meninas pequenos que dizem que querem ocupar essa posição um dia… É preciso pensar sobre o que ele está ensinando com seu exemplo. E eu acho que o que está sendo ensinado é perturbador.
FORBES: A filosofia de ensinar pelo exemplo também é verdadeira no âmbito doméstico?
<strong>Melinda:</strong> Bill lava a louça em nossa casa comigo e as crianças. As pessoas não acreditam. Ele as leva para a escola. Nós não fazemos isso para servir como exemplo, só parece certo para nós. Mas, quando nossa filha mais velha estava na pré-escola, ele começou a aparecer na sala de aula, já que entrava com ela na escola. Começou a surgir um burburinho entre as mães.
Eu perguntei o que estava acontecendo e elas disseram: “Nós estamos dizendo aos nossos maridos que, se Bill Gates pode levar sua filha para a escola, eles também podem”. Isso é ensinar pelo exemplo. Claro que ele iria levá-la para a escola – era ótimo para ele, para ela e para o relacionamento deles. E quer saber? Ele chegava na Microsoft 45 minutos atrasado nessas manhãs, e eu acho que o negócio continuava indo bem.
FORBES: Você também investe em negócios liderados por mulheres. Por que isso é importante?
Melinda: Eu acredito que mulheres empoderadas podem mudar a sociedade. Os dados nos dizem. Eu sei disso por viajar pelo mundo. Comecei a pensar: “Por que as mulheres não são mais empoderadas nessa comunidade? É porque esse é um lugar na África ou na Índia?”. Eu precisava voltar essas questões para mim mesma e perguntar: “Quão empoderadas nós mulheres somos nos Estados Unidos?”.
Eu percebi então que nós ainda precisamos avançar nos Estados Unidos. A minha voz na fundação é majoritariamente utilizada para mulheres no mundo em desenvolvimento, dando voz para seus problemas. Mas eu também faço certos trabalhos com meu escritório particular relacionados a problemas de mulheres nos EUA. Comecei a investir em fundos que garantem que negócios liderados ou fundados por mulheres sejam, de fato, financiados. Quando você vê que menos de 4% do capital de investimento vai para negócios liderados por mulheres, você sabe que nós temos um problema. Não é só que mulheres não estão tendo acesso a fundos, mas, se você olhar para a minoria de mulheres que têm acesso, é apenas 0,02% dos fundos de venture capital.
Enfim, é preciso mudar o sistema – e a única maneira de fazer isso é ter mais investimento fluindo na direção de mulheres. Se nós liderarmos pelo exemplo – o que a Aspect Ventures, fundada por duas mulheres, está fazendo -, outros irão começar a ver as oportunidades de negócios que estão sendo perdidas e perceberão que essas empresas, de fato, ganham dinheiro. Mas vai levar tempo. Nós precisamos de diversas vozes se quisermos que ótimas ideias, que realmente funcionem para toda a sociedade, avancem.
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