Entre as diversas “heranças pop” deixadas por Barack Obama, uma das que será lembrada por mais tempo é a abertura da Casa Branca ao mundo do rap. Uma abertura física, mais do que ideológica: em abril de 2016, Obama convidou alguns dos rappers mais populares do momento, como Chance the Rapper, J. Cole, Ludacris e Nicki Minaj, para falar da reforma do sistema judiciário, acusado de ser “construído para oprimir e humilhar os negros” (as palavras são de Paul Butler, autor de “Chokehold: Policing Black Man”, ainda sem versão em português).
Não foi a primeira vez que os artistas do hip hop entraram na Casa Branca, mas, até então, eles haviam feito apenas aparições em situações mais ou menos oficiais, e nunca como interlocutores. A mudança aconteceu porque “muitos desses artistas encontraram um modo de se comprometer com temas como a reforma do sistema judiciário e o empoderamento dos jovens desfavorecidos no país”, como dizia uma nota oficial da Casa Branca. Apenas alguns meses mais tarde, Kendrick Lamar – que havia acabado de compor um álbum muito político, “How To Pimp a Butterfly” – foi convidado a uma reunião com o então presidente no salão oval.
Foi a catarse para um gênero que nasceu para dar voz a uma rebelião, para denunciar as condições difíceis que algumas escolhas políticas, como o Section 8, programa de moradia popular que, na verdade, contribuiu para a criação dos guetos, geraram ao longo dos anos. O descontentamento cantado pelo rap é, acima de tudo, político, e só depois social e econômico. Quatro décadas depois do nascimento do rap nos subúrbios de Nova York, Kendrick Lamar recebeu o Prêmio Pulitzer da Universidade Columbia por sua música, tornando-se o primeiro musicista não clássico a receber o reconhecimento. Um prêmio, porém, que, se em parte nasce como reconhecimento à extraordinária capacidade do artista, também representa uma significativa reação à atualidade sociopolítica.
Durante toda a sua vida, o rap andou lado a lado com a política. O governo de Ronald Reagan – marcado por uma relação difícil com a comunidade afro-americana (“eu tentei de tudo para ganhar a simpatia dos negros, mas não consegui. Continuaram a me criticar de maneira horrível”, disse uma vez o ex-presidente) – deu vida à mais potente revolução na história do gênero. Foi nesse período que nasceu o gangsta rap, quando os N.W.A. – célebre grupo de Los Angeles que marcou a história do hip hop – compuseram “Fuck The Police”, single que fez com que fossem censurados em todas as rádios do país e culminou em um notável encontro muito próximo com o FBI durante uma apresentação em Detroit, em 1989.
Se os oito anos de presidência de Reagan estão entre os mais ricos no que diz respeito à produção de conteúdo anti-presidencial (de “The Message”, de Grandmaster Flash, a “Rebel Without a Pause”, do Public Enemy), os sucessivos quatro anos de Bush não deixaram a desejar. A guerra do Golfo e, principalmente, os protestos de Los Angeles de 1992 – aqueles que sucederam a morte do jovem negro Rodney King pelas mãos da polícia local – marcaram de maneira permanente o rap, inserindo o nome do presidente na lista dos vilões.
Ao analisar as etapas da relação entre o rap e a Casa Branca, é possível perceber uma associação apenas aparentemente contraintuitiva: o gênero nasce na época republicana e começa a se expandir durante um período dominado pelo partido conservador norte-americano. Os oito anos do governo de George W. Bush, marcados pela guerra ao terrorismo e pelos ataques de 11 de setembro, pioraram ainda mais a relação difícil. Como escreve o jornalista Zach Schonfeld na “Newsweek”, a música anti-Bush pode quase ser definida como um gênero por si só. E o rap está, obviamente, na liderança, como demonstram letras como a de “A World Gone Mad”, dos Beastie Boys. Não há nada de surpreendente em tudo isso: a atitude anti-status quo sempre foi o motor de um gênero nascido na rua, dos afro-americanos para os afro-americanos (como dizia uma célebre marca das calças largas típicas da cultura hip hop FUBU, sigla em inglês para “Para nós por nós”) em guetos desfavorecidos. Assim nasceu o arquétipo do rapper questionador, o verdadeiro inimigo da guerra às drogas nascida com a administração de Nixon e mantida nas décadas seguintes.
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É igualmente interessante notar que um dos maiores incidentes diplomáticos da história do rap aconteceu durante o único governo democrata dos 30 anos em que o gênero explodiu: o de Bill Clinton. O acontecimento entrou na linguagem informal com a expressão “a Sister Souljah moment”, que indica uma situação em que um candidato político se distancia de uma associação incômoda com elementos que poderiam fazer com que ele perdesse os votos de uma classe oposta. O que aconteceu, de maneira breve, foi que, em 1992, a rapper e ativista política Sister Souljah declarou em uma transmissão televisiva que, a partir do momento em que a polícia mata um negro por dia, não teria problema nenhum que um branco fosse morto por semana. Clinton – desde sempre acusado de ser leve demais ao condenar as violências dos afro-americanos, seu eleitorado predileto – pensou ter controlado a situação ao declarar: “Troque de lugar as palavras ‘branco’ e ‘negro’ e você terá exatamente as declarações de um supremacista branco”.
Por todas essas motivações, a chegada de Obama à presidência foi celebrada como o momento de abertura definitiva das instituições ao rap (que, no meio tempo, continuou a crescer, tornando-se por números e também por influência econômica o gênero mais popular do mundo). A amizade com Jay-Z e Beyoncé, o ar divertido do presidente, o amor por esportes “negros” como o basquete e a sua origem étnica fizeram com que a crítica e a imprensa definissem Obama como o primeiro “presidente hip hop”. Mas é realmente assim? Alguns tentaram explicar por que a amizade entre Obama e o rap deveria ser reconsiderada e redimensionada, até porque ele “falou menos de pobreza e raça do que qualquer outro presidente democrata”, notou Frederick Harris, professor de Ciências Políticas da Universidade Columbia. E se o rap realmente é, como Chuck D disse uma vez, “a CNN negra”, então os rappers podem nos contar o que eles veem ao seu redor.
O ponto, porém, é que talvez o que esteja por mudar seja a própria figura do rapper. Tanto que, em setembro do ano passado, Clarence Page escreveu nas páginas do “Chicago Tribune” que o primeiro “presidente hip hop” real da história norte-americana não é exatamente quem poderíamos imaginar: na verdade, ele se chama Donald Trump. A explicação de Page é bastante convincente: ele cita os índices de aprovação do atual presidente entre as minorias nos tempos de “O Aprendiz” (em particular a afro-americana) e o número de letras de hip hop que citavam Trump como um exemplo positivo – 266 ao todo -, segundo uma pesquisa. Todos os tipos de rappers o citaram, desde aqueles com uma atitude mais de rua, como Wu Tang Clan, a “rappers-executivos”, como Jay-Z e Sean Combs, e até o atual paladino do universo afro-americano: Kendrick Lamar.
Em seu artigo, Page tenta compreender a mudança de atitude dos rappers norte-americanos em relação ao presidente. Um texto de 1999, cantado no aniversário de P Diddy no restaurante Cipriani, em Nova York, descrevia Trump como a ponte entre o velho dinheiro branco e o novo dinheiro negro do hip hop, em um momento em que Diddy estava trazendo o rap para os Hamptons.
A mudança da figura do rapper no interior da sociedade naquele ponto já era dada, e o espaço para a resistência ao status quo havia diminuído, se não fechado completamente. Mas as chaves de leitura nunca são uma só, e a realidade sempre é muito mais estratificada do que se pode pensar. Nesse meio tempo, na verdade, estava acontecendo a revolução afro-americana, estimulada por produtos culturais da matriz hip hop: séries de televisão como “Atlanta” ou filmes como “Pantera Negra”, símbolos de um sentimento muito mais amplo e que envolve uma parcela cada vez maior da população. Trata-se de produtos “afrocentrados”, associados à ideologia nascida na década de 1960 que reivindicava uma perspectiva pan-africana da história.
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Esse fervor está alinhado a alguns dos novos artistas do rap, atentos à questão racial, e também com o subgênero trap, que prega o total desinteresse político de uma geração inteira que substitui o ideal da igualdade pelo da riqueza e da vingança social. Os trabalhos recentes de Kendrick Lamar, como “To Pimp a Butterfly” ou “DAMN.”, tiveram muita repercussão porque devolveram dignidade a um movimento que viveu também da reação à candidatura de Trump.
O tema voltou a ser urgentemente atual nos últimos dias, quando Kanye West – que acabou de voltar ao Twitter depois de um longo período de ausência social – começou a tuitar mensagens ambíguas em apoio a Trump. Primeiro, declarou apreciar o modo de pensar de Candace Owens – youtuber afro-americana e republicana muito crítica em relação ao movimento Black Lives Matter – e, depois, compartilhou um vídeo de Scott Adams, criador do personagem de quadrinhos Dilbert e apoiador ativo da ultra direita norte-americana. Kanye West parece ter rapidamente se tornado o paladino da direita alternativa, até que todo o clamor chegasse aos ouvidos do presidente em si, que não deixou escapar a oportunidade de retuitar Kanye e agradecê-lo pela “revolução cultural” que ele começou.
Nunca havia acontecido de um rapper – e muito menos um tão popular e mundialmente reconhecido – manifestar apoio de maneira tão teatral a Trump, a ponto de chegar a defini-lo como uma inspiração, e postar uma selfie com o famoso boné “Make America Great Again” autografado. Em se tratando de Kanye – que há apenas um ano passou por uma exaustão mental no meio de uma turnê (entre outras coisas, poucos dias antes do ocorrido havia admitido ter desejado votar em Trump) – a veracidade das afirmações é tudo menos sólida, mas o evento, de qualquer maneira, abriu uma caixa de Pandora que os primeiros anos de presidência de Trump pareciam ter fechado para sempre: um rapper tem obrigação de ser democrata?
A julgar pela última campanha eleitoral nos Estados Unidos, pareceria que sim: a lista de rappers que apoiaram abertamente Hillary Clinton é longa e vai de Jay-Z a Snoop Dogg e 50 Cent. Um deles até se alinhou com força a Bernie Sanders (Killer Mike, metade dos Run The Jewels). Chance de Rapper é filho de um democrata que militou por anos no gabinete de Obama, na época em que ele era governador do estado de Illinois. Um padrão, então, existe, e as reações às tiradas de Kanye (que por enquanto consistem em uma dose massiva de unfollows no Twitter, o que parece ser uma verdadeira arma política) de seus colegas, de Tyler The Creator a Rihanna, parecem confirmar isso. A história, porém, não está acabada, e promete reverter um paradigma que já se dava por garantido: é curioso que quem o faça seja aquele que, segundo os dados, é o presidente mais divisivo da história dos Estados Unidos.