Quase todas as informações sobre o que realmente aconteceu no Consulado Saudita vem dos turcos. Isso é todo o conhecimento que temos. Isso é tudo o que achamos que sabemos. Uma coisa ao menos, e infelizmente, se pode afirmar com convicção: o jornalista saudita que residia nos EUA, Jamal Kashoggi, está morto. Os demais detalhes, inclusive o tempo que os carrascos levaram para matá-lo — sete minutos — são informações de fontes turcas. Agora pergunte a si mesmo: por que os turcos estão determinados a serem tão informativos? O regime em Ancara raramente é defensor dos direitos humanos para jornalistas. É difícil reconhecer um modelo de transparência altruísta em relação aos dissidentes.
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É surpreendente como a mídia global pode gerar enorme burburinho sobre um determinado assunto sem antes perguntar as questões mais óbvias e pertinentes. O que os turcos estão fazendo? Qual é o jogo aqui? Eles conseguiram tolerar anos de execuções de estrangeiros no país — de combatentes da resistência tchetchena a ativistas da oposição síria. Mas, de repente, se preocupam com o desaparecimento de um ativista dentro do que na verdade é um território saudita sob a lei internacional. Claro que eles — todos — devem se sentir indignados. Mas desenvolver um coração sensível de uma hora para outra também sugere outros cálculos em curso.
Dois vetores convergem nesses cálculos, talvez três. Kashoggi era um defensor da Irmandade Muçulmana. O presidente da turco, Erdogan, também. Os sauditas, nem tanto. Os princípios da comunidade islâmica se concentram em tomar o poder através de eleições — e depois dobrar a democracia para se perpetuar no poder. Os sauditas, originalmente islâmicos, consideram o sistema ímpio porque, no princípio da aurora do Islã, não existia tal método. Sem contar que o voto livre no Reino da Arábia Saudita (KSA, na sigla em inglês) pode um dia destronar a família Ibn Saud.
Os sauditas apoiam o Estado militarista do Egito justamente por reprimir a Irmandade Muçulmana. Erdogan odeia esse modelo de governo e teme o seu retorno na Turquia — os militares turcos são considerados inimigos tradicionais. Além disso, quando os estados do Golfo liderados pela KSA tentaram impor um bloqueio ao Qatar, os turcos intervieram para quebrá-lo e assinaram um acordo para abrigar uma base militar da Turquia no país.
Essencialmente, Ancara e Riad disputam a liderança do mundo muçulmano sunita. O presidente Erdogan, como neo-otomano, quer que o governo turco atue como fons et origo — expressão em latim que significa “origem e origem”, princípio de tudo — do legítimo islamismo do velho modo imperial.
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A KSA abriga suas próprias pretensões apoiadas pelos bilhões do petróleo. E os sauditas — junto com Israel e Donald Trump — estão focados em resistir à influência iraniana na região. A Turquia se recusa a parar de negociar com o Irã, especialmente na área petrolífica. Assim, os turcos têm amplas razões para usar a morte de Kashoggi como instrumento político no confronto com a Arábia Saudita.
E não para por aí. Os turcos têm uma razão ainda maior para propagandear a causa da morte de Kashoggi. Talvez este seja, aliás, o principal motivo de tudo. E tem a ver com os EUA.
Primeiro, acompanhe a versão mais simples da história e, se você for um verdadeiro nerd na estratégia geopolítica, poderá sacar os detalhes menores.
Em linhas gerais, quando Donald Trump impôs sanções à Turquia por deter o evangelista Andrew Brunson, a lira turca perdeu cerca de 40% do valor — perda acumulada até a data de hoje. Foi como se a Casa Branca mandasse um recado para Erdogan: temos vários métodos para alterar seu poder sobre a Turquia. Entre eles, podemos arruinar sua economia.
Então, os turcos libertaram Brunson, mas no mesmo dia começaram a vazar os detalhes do desaparecimento de Kashoggi. Foi a vez de Ancara disparar para a Casa Branca: também podemos arruinar sua economia, observe isso. O montante perdido, na estimativa do presidente Trump, seria de aproximadamente 100 bilhões, na moeda saudita — já que os EUA podem ser forçados a desinvestir o capital em petrodólares devido à revolta popular contra a brutalidade da KSA.
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Desde o primeiro dia, Ancara mantém controle sobre as informações a respeito da morte do jornalista, que são liberadas gota a gota. Com efeito, os turcos contra-atacaram a Casa Branca. A ameaça tem como alvo não apenas a economia norte-americana, quando Donald Trump luta como nunca por apoio, mas também a cotação global do dólar, moeda de reserva mundial, escorada pelo petrodólar.
Para os mais interessados no cenário, a história remonta à era de Obama, mais precisamente a março de 2016, quando autoridades norte-americanas prenderam o turco-iraniano Reza Zarrab por ajudar o Irã a contornar as sanções econômicas impostas por Washington por meio do Halkbank da Turquia, onde ele trabalhou no auge do regime de sanções.
Zarrab foi acusado de trabalhar para beneficiar ministros do círculo interno de governo de Erdogan e se declarou culpado em várias acusações — o que virou prova contra ele. Eu escrevi sobre isso quando o caso foi a julgamento em Nova York, já na era Trump. O juiz então permitiu que certos documentos fossem admitidos no registro. Eles foram considerados genuínos.
Os arquivos incluíam telefonemas de Erdogan, então primeiro-ministro, dizendo ao filho para guardar milhões de euros em casa. Essas gravações já vazaram na Turquia, mas o presidente alegou que eram falsas e venceu as várias eleições que disputou depois.
Em suma, os EUA têm exercido pressão sobre Erdogan de diversas maneiras há algum tempo, não apenas com evidências contra a corrupção em torno dele. Por fim, o caso Zarrab estabeleceu condições legais para sanções do tipo Magnitsky — o contador russo especializado em ações anticorrupção — contra os confidentes de Erdogan e seus familiares.
Os turcos se anteciparam e prenderam Andrew Brunson. Ele passou dois anos detido. Trump então impôs sanções para libertá-lo. Ankara rebateu a jogada, lançando a carta Kashoggi com a revelação de supostos detalhes da morte do jornalista no consulado saudita.
Uma vez que todos esses movimentos revelam um processo de planejamento cuidadoso de ambos os lados, é de se perguntar se os turcos sabiam de antemão sobre a pretendida visita de Kashoggi ao consulado e o que o aguardava lá.