A distinção entre a vida pública e privada das celebridades como Neymar – e as ações e consequências em cada uma delas – é algo sobre o qual se fala desde que o mundo é mundo. Na última década, no entanto, dois fatores entraram em cena para levar essa discussão a outro nível.
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Um deles passa pelas redes sociais, que disseminam, amplificam e viralizam as notícias, sejam elas verdadeiras ou falsas, em proporções e velocidades avassaladoras, criando um rastro incontrolável e impossível de ser apagado. Não há qualquer controle do que é divulgado, como é divulgado e de como a informação será recebida em razão da pluralidade dos meios de comunicação.
O outro está relacionado aos valores que algumas áreas – principalmente nos esportes de alta performance – movimentam e toda a engrenagem por trás disso, fazendo de pessoas físicas e jurídicas partes indissociáveis. “No caso de determinadas pessoas com vidas públicas, as duas coisas se misturam. Elas acham que são pessoas físicas, mas todos os demais as enxergam como pessoas jurídicas e cobram delas o comportamento dos personagens que interpretam”, explica Roberto Aylmer, professor internacional da Fundação Dom Cabral, consultor em gestão estratégica de pessoas e especialista em desenvolvimento de lideranças.
Se juntarmos, então, tudo isso em uma mesma pessoa, Neymar, considerada o 5º atleta mais bem pago do mundo no ano passado, com ganhos totais de US$ 90 milhões segundo a Forbes, e seguido por mais de 223 milhões de pessoas nas três principais redes sociais, as consequências podem ser explosivas. Prova disso é a montanha russa de acontecimentos negativos que invadiram a vida do atacante brasileiro nos últimos tempos, que vão de desempenho abaixo da média e contusões à briga com torcedores, passando pela recente acusação de agressão e estupro.
Não é possível fazer gestão de reputação
“É preciso deixar de lado a ideia de que a reputação é algo passível de gestão. Não é. Não podemos controlar o que as pessoas vão dizer de nós. É ingênuo achar que, se formos éticos, nada de ruim vai acontecer. Há uma grande diferença entre ter atitudes éticas e ser ético. Ninguém é ético o tempo todo, assim como ninguém é canalha em tempo integral. As pessoas têm ações éticas e ações canalhas”, explica o professor Luiz Peres-Neto, da área de comunicação e consumo, ética e contextos organizacionais da PPGCOM-ESPM, e autor do recém-lançado livro “Reputação – Um Eu Fora do Meu Alcance”, em parceria com Clóvis de Barros Filho, jornalista e professor livre-docente na área de ética da ECA-USP.
Mas, claro, é possível atenuar a maneira como as pessoas encaram determinados acontecimentos, uma vez que a expectativa delas também é formada pelo histórico de situações e do comportamento adotado nas mesmas.
“Neymar faz parte de uma geração de atletas de alto desempenho, que inclui também pilotos de Fórmula 1, que viraram produtos do entretenimento. Eles não se posicionam sobre assuntos complexos. Qualquer questão que exija uma reflexão mais profunda ou uma ação que escape ao papel de ‘ídolo’ é evitada. Eles não assumem responsabilidades. Possuem narrativas muito prontas, construídas, falta espontaneidade, naturalidade. Parece que tudo é feito para agradar a alguém”, continua Peres-Neto, sem conseguir evitar a comparação com Romário, que se aposentou do futebol brasileiro em 2008. “Ele resolvia seus próprios problemas e, quando era preciso, assumia o erro.”
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Para o especialista, o jovem jogador de 27 anos é parte do mecanismo de um sistema baseado no contexto de produtos culturais cada vez mais imateriais, pautados pela performance versus o entretenimento. “Eles precisam desempenhar com a mesma competência as duas funções.”
Por outro lado, Roberto Aylmer destaca outros comportamentos típicos e recorrentes de Neymar que atrapalham a percepção que as pessoas têm da sua moral. “Neymar é polêmico, faz questão de aparecer sempre com um cabelo ou uma tatuagem diferente, revida agressões, não consegue gerenciar muito bem seu temperamento. Ele é socialmente imaturo. Tem uma visibilidade gigantesca, mas uma habilidade social que compromete tanto seus patrocínios quanto seu desempenho no time”, diz, referindo-se à perda da posição de capitão da seleção brasileira e à recente declaração da Nike, que disse estar preocupada com as acusações contra o jogador e prometeu “continuar a monitorar de perto a situação”. “O sucesso dele depende da imagem”, resume.
Edson x Pelé
Ambos os especialistas relembram a trajetória de Pelé. Aos 78 anos, o maior jogador brasileiro de todos os tempos não escapou de episódios polêmicos: recusou-se a reconhecer a paternidade de uma das filhas, manteve laços com o regime militar, viu o filho ser preso por ligação com o tráfico de drogas e se aproximou de figuras que se mostraram controversas no futebol, como Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF. Mas, de forma intuitiva em uma época na qual as ferramentas de gestão de pessoas e de crise não eram tão abundantes, ele resolveu isso ao dissociar as duas figuras – e se referir a si mesmo em terceira pessoa – e foi capaz de manter seu status de ídolo até hoje.
“O Edson se coloca sempre do ponto de vista humano, enquanto o Pelé responde como atleta. Assim, ele conseguiu ser uma pessoa normal e um rei ao mesmo tempo”, diz Peres-Neto.
Para Aylmer, as atitudes de Pelé construíram uma aura em torno dele de “cidadão do bem”, que fez com que as pessoas se colocassem em seu lugar cada vez que uma situação difícil o envolvia e gerava certa benevolência. Ele afirma, porém, que é preciso lembrar que os tempos eram outros, quando as mídias sociais ainda eram um sonho muito distante.
Invencibilidade
Um ponto no qual todos concordam é que, ao atingir determinado nível de sucesso, as pessoas perdem a noção do perigo. O sucesso traz uma sensação de que tudo é possível. “Isso não é verdade. Ao assumir uma posição pública, você assume compromissos com o mundo ao qual você serve”, diz Aylmer.
Como psiquiatra de formação, ele explica que a experiência é uma ótima professora, mas cobra um preço exorbitante. “Aprender com os erros dos outros, com profissionais especializados, ouvindo os demais seria muito mais produtivo. Mas o sucesso não deixa. E isso é neurológico. O nosso cérebro é baseado no custo-benefício. Então, quando ganhamos, achamos que vale a pena continuar daquele jeito.”
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No episódio envolvendo a modelo Najila Trindade Mendes de Souza, que atualmente acusa Neymar de estupro, como se não bastasse o imbróglio em si, ainda há a forma como o atleta conduziu sua defesa. “A impressão que dá é que ele age com base apenas no que pensa, sem nenhum tipo de orientação. Qualquer um sabe que não se deve expor outras pessoas na internet. Ele não pode se dar ao luxo de fazer o que bem entende. Ele representa um país, é uma pessoa pública mundialmente, tem contratos milionários, serve de exemplo para uma geração inteira. Tem compromissos. Ele não é dono do seu nariz – ele é apenas sócio.”
José Gomes Colhado Neto, advogado do escritório Vinhas e Redenschi Advogados, analisa a situação do ponto de vista jurídico. “Acho que ter se exposto nas redes sociais não foi um problema. A transparência, na minha opinião, é fundamental, até para demonstrar que ele se preocupa com a opinião pública. Mas ele não deveria ter divulgado as imagens e a conversa com a outra parte. Poderia ter dito apenas que tinha provas que corroborariam sua inocência e que, por uma questão de sigilo imposto pela lei e respeito à pessoa, não daria mais informações. Teria sido até mais elegante.” Segundo ele, esse tipo de material deveria ter sido reservado apenas para o processo.
E agora?
Reverter uma imagem arranhada dá muito mais trabalho do que criar uma ou mantê-la de forma eficiente ao longo do tempo. Mas, para Aylmer, isso ainda é possível no caso de Neymar. “No Brasil isso é menos difícil porque somos um povo que perdoa, que tende a se colocar no lugar do outro. Na Europa, as pessoas não têm muita flexibilidade moral, as cicatrizes ficam para sempre.”
A grande questão, na opinião do especialista, é: será que o atleta quer mudar essa imagem? Ele tem vontade de gerenciar a sua vida e não ser carreado pelos tsunamis que ele mesmo cria? “Existem inúmeros profissionais competentes especializados em gestão de crise, mas não basta tê-los na sua equipe. É preciso ouvi-los.”
Em seguida, Aylmer diz que é necessário um trabalho interno, que o faça entender que outras crises virão. “Esse é só mais um conflito de um padrão que tem ocorrido na vida dele. Se acontece uma vez, é acaso, duas, é coincidência, três vezes, é padrão. Ele tem um padrão de destruir a carreira, o nome dele. Neymar tem jogado para perder.”
O especialista vai além na interpretação do comportamento do craque. Todo o sucesso e o dinheiro conquistados por Neymar têm o seu preço. “Ele deixou de ter uma vida tranquila, perdeu aquela leveza de garoto, a inocência, as amizades desinteressadas, o direito de ir e vir. Um lado dele, nostálgico, sonha em voltar pra esse lugar, que embora muitos chamem de fracasso, provavelmente era mais verdadeiro. E isso acontece com várias pessoas que chegam lá.”
Esse trabalho, mais voltado para o lado psicológico, é fundamental na opinião de Aylmer. E deve ser contundente para religar o detector de perigo do atleta – atualmente quebrado – e compreender o padrão de crises. “Neymar precisa entender que não é caçador. Ele é caça. As armadilhas estão na frente dele o tempo todo.” Para o especialista, a humildade é fundamental para chegar a esse estágio e reconhecer suas vulnerabilidades.
Se a palavra dos últimos anos era resiliência, o termo agora é antifrágil. O conceito de Nassim Taleb, professor da Universidade de Nova York que previu o colapso financeiro de 2008, refere-se a tudo aquilo que melhora com o caos. “Esse conceito nos mostra que as crises podem ser uma oportunidade de mudança de perspectiva, de amadurecimento. Se Neymar sentir a crise, passar por um processo de reflexão profunda dos seus padrões destrutivos e, em seu interior, construir uma pessoa mais madura, é provável que ele não caia nas próximas armadilhas. Mas, se ele achar que escapou dessa sem entender que é ele mesmo quem cria essas situações, nada vai mudar. O padrão continuará até a hora em que ele perder tudo. Muita gente só melhora quando chega ao fundo do poço.”
Luis Sales, da ESPM, sugere um posicionamento menos construído do ponto de vista mercadológico e mais pautado naquilo que Neymar realmente é como pessoa. Um verdadeiro resgate da autenticidade do jogador. Tempo há. Mas só Neymar pode mudar essa história.