Primeira mulher a assumir a presidência da Fiocruz em 120 anos da existência da instituição, Nísia Trindade faz um balanço do trabalho da fundação no combate à epidemia de Covid-19.
“Não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz.” Em entrevista exclusiva ao jornal “O Estado de S. Paulo”, a socióloga diz que a pandemia é o evento histórico que inaugura o século 21.
O relatório que vocês encaminharam quarta-feira (6) ao Ministério Público recomenda o lockdown para o Rio. Essa é a única forma de impedir o colapso do sistema de saúde?
O isolamento é a melhor medida que temos disponível para frear a disseminação da doença e esse isolamento mais rigoroso é o que pode evitar um longo período de falta de leitos, médicos e equipamentos. Como sabemos, os efeitos das atitudes que tomamos hoje serão sentidos em uma ou duas semanas, que é o tempo entre o contágio e a evolução do quadro da doença. Então, é muito importante agirmos agora. Outro aspecto fundamental é que as medidas restritivas devem vir acompanhadas de apoio às populações vulneráveis para que possam cumprir o isolamento, particularmente aqueles que dependem de trabalho informal ou precário, bem como suporte a pequenas empresas que geram empregos e podem sofrer grande impacto da pandemia.
A Fiocruz foi denominada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) o laboratório de referência para Covid-19 na América Latina. É um reconhecimento importante desse papel histórico?
Sim, é um importante reconhecimento, sobretudo para o nosso laboratório de vírus respiratórios e sarampo, que se ergueu no fim dos anos 1970, durante a epidemia de meningite. Significa o reconhecimento ao nosso trabalho de formação de pesquisadores, treinamento para diagnóstico e identificação do vírus Sars-Cov-2 e o papel central nas pesquisas sobre a mutação do vírus em territórios brasileiro e latino-americanos, que é importante para o desenvolvimento de vacinas, além de orientar protocolos e padrões de trabalho para os laboratórios de toda a região. A Fiocruz também é responsável pela criação de um pensamento integrado na pandemia, de juntar todas as peças de todos os trabalhos. Isso não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz.
Ao mesmo tempo, muitos pesquisadores estão sendo duramente atacados…
O trabalho da ciência voltado para a saúde sempre gera conflitos. Há muitas incompreensões, muitos interesses envolvidos. Mas toda a nossa argumentação está baseada em dois pilares, excelência da pesquisa e ética.
A senhora tem comparado o momento atual ao da gripe espanhola de 1918. A situação só é comparável à dessa outra epidemia, de um século atrás?
É mais um paralelo que uma comparação; são mundos muito diferentes, a atividade científica é diferente. Mas fiz o paralelo pensando no impacto social, econômico e na vida das pessoas de uma pandemia de grande letalidade. Há vários estudos mostrando que, na gripe espanhola, houve medidas de isolamento, fechamento de atividades de serviço, e também muita controvérsia. A gripe espanhola é uma grande referência para os virologistas, ela matou mais do que a guerra, e tem uma importância crucial para os grandes movimentos da sociedade e possíveis mudanças. Como a gripe espanhola, a Covid-19 é uma doença nova, que se dissemina em alta velocidade e para a qual não temos vacina nem medicamentos. Mas temos hoje algo importante que não tínhamos no passado: um sistema universal de saúde e instituições mais robustas, como a Fiocruz, institutos de pesquisa, universidades.
Qual a perspectiva para o fim da epidemia?
Enquanto não tivermos uma vacina ou um porcentual alto de imunidade da população – lembrando que ter anticorpos não implica necessariamente imunidade -, e com o comportamento que vem sendo observado na nossa população, tudo aponta para um problema de saúde pública de longa duração.
Quanto tempo a senhora estima para termos uma vacina, uma vez que a própria Fiocruz participa dos esforços mundiais pelo desenvolvimento de uma?
De 18 a 24 meses. Mas a vacina precisará ser acessível a todos, ou não resolverá o problema. Não adianta termos uma vacina caríssima.
O vírus Sars-Cov19 já sofreu mutações no Brasil? Quais as implicações dessas mudanças?
Nossos estudos já apontam mutações – que é uma característica dos vírus. Mas ainda estamos estabelecendo correlações entre essas mutações e o tipo de manifestação clínica relacionada. Não quero causar pânico, mas esse vírus ainda é um grande desconhecido, um estrangeiro.
A senhora mencionou que as pandemias, historicamente, têm um papel fundamental nas mudanças sociais. Qual seria o dessa pandemia?
(O historiador Eric) Hobsbawm falava que os grandes marcos dos séculos não seriam os marcos de cronologia imediata, mas grandes eventos que marcam esses séculos. Não tenho dúvida que essa epidemia é o grande marco do século 21, que inaugura o século 21. E ela nos mostra a vulnerabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, da globalização sem cuidado às populações, do turismo intenso. Mas ainda não é possível pensar, como seria desejável, que teremos um mundo mais solidário. Nos deparamos com a fragilidade da civilização, mesmo no caso de nações mais ricas e sobretudo no caso de um país tão desigual como o nosso. (Com Agência Estado)
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