Um dos assuntos mais conversados e especulados desde a última semana tem sido a invasão da Ucrânia pela Rússia. E para além da tragédia humanitária imediata e óbvia, nós temos também efeitos bem negativos e que acabam influenciando a população global sobre o acesso à proteínas pelo crescimento dos custos de produção decorrentes desses problemas.
Para fazermos um breve resumo e começar a estabelecer uma análise sobre a situação, a gente pode dizer que após a aproximação entre Rússia e China, protagonizada pelos presidentes Putin e Xi Jinping no início de fevereiro, o país europeu começou a mobilizar mais de 100 mil soldados, tanques, veículos, infantaria, mísseis e outros para o extremo oeste para a fronteira com a Ucrânia.
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Além disso, a Rússia vinha executando treinamentos navais nos oceanos Atlântico e Pacífico, e também no mar arábico junto às forças chinesas. E tudo isso teve início após a sinalização positiva da Ucrânia junto à Otan. E aí, na última quarta-feira (23), deu-se início a um intenso ataque a pontos de interesse geopolíticos no território ucraniano que, apesar de historicamente ser uma zona de conflito, acabou chocando o mundo por deixar evidente o ressurgimento de conflitos armados no mundo ocidental.
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Além da tragédia humanitária, o conflito traz custos ocultos como o de aumento dos custos de produção de proteína, que eleva a dificuldade do acesso de populações com menor renda a esses produtos. Então, esse racional, já nos leva ao entendimento de que conflitos militares levam à insegurança alimentar, em maior ou em menor grau.
Como consequências óbvias para o mercado de carne, a gente destaca as seguintes:
- Redução ou interrupção do fluxo exportador brasileiro devido aos bloqueio de portos em decorrência dos ataques
- Redução da demanda; a perda de energia em decorrência de uma guerra militar é motivo suficiente para projetarmos uma queda do consumo de carne russo e de outros países europeus envolvidos ou que podem se envolver no conflito. É cedo ainda para dizer quanto isso afetará o consumo de carne bovina na região, mas a duração e os desdobramentos das ações nos responderão. Apenas para dar uma ideia de números, a UE importou 59 mil toneladas de carne bovina em 2021, enquanto a Rússia levou 28 mil toneladas. Isso equivale a 1% da produção de carne bovina brasileira. Caso a fatia precisasse ser redirecionada para o mercado doméstico, isso representaria um aumento de 1,3% de disponibilidade de carne bovina para o Brasileiro
Em resposta ao conflito armado, os países da Otan estão aplicando sanções sobre o sistema bancário russo, notadamente o bloqueio de bens e o acesso ao sistema financeiro ocidental, o que dificulta o fluxo de pagamentos para quem comercializa entre as regiões.
No entanto, caso a sanção chegue à exclusão total da Rússia do sistema bancário global, o Swift, os negócios com os russos também seriam muito mais dificultados. Sob esse prisma, o efeito do conflito armado seria limitado ao aumento de 1,3% na oferta de carne no mercado brasileiro que não iria mais para lá e teria que ser redirecionado, mas essa é só a ponta do iceberg. Por trás das consequências óbvias, a gente pode desenhar custos ocultos que pairam sobre a comercialização das commodities:
1 – Pode haver aumento do custo dos grãos
Então, de tudo que é comercializado no mundo, 34% do trigo e 15% do milho partem do mar negro, e por isso uma interrupção desse fluxo levariam os preços dos grãos a se valorizar globalmente. Elevando consigo o custo de produção de frangos, suínos e também bovinos. Outras commodities como soja e açúcar também teriam os seus preços elevados devido às pressões energéticas.
Devemos lembrar que 75% dos custos de produção do frango estão atrelados ao milho, enquanto suínos entre 60% e 70% e para a pecuária de corte entre 20% a 30%. Isso indica que a produção de frango seria a mais impactada pela redução do fluxo comercial global de milho e de insumos correlatos; considerando ainda que os produtores já vem de um período de impacto relevante e positivo com esses custos nutricionais.
2 – Possibilidade de elevação dos custos de energia
A Rússia fornece cerca de 40% do gás natural utilizado na fabricação de fertilizantes nitrogenados, para indústrias e residências do continente europeu. Então, a redução ou a interrupção do suprimento de gás natural à UE tem consequências diretas aos preços dos serviços e mercadorias que utilizam essa commodity como matéria-prima. Além do gás, o conflito também é refletido no petróleo e nos biocombustíveis.
3 – Impacto no preço e disponibilidade de fertilizantes
É um assunto muito comentado, porque o Brasil é altamente dependente. A Rússia é a segunda maior produtora de nitrogenados e potássicos e é a quarta maior de fosfatados, com share como a produção global de 10%, 19% e 9%, respectivamente.
Então, qualquer ação que impacte uma menor produção ou escoamento dessas matérias primas pode trazer a elevação dos preços e até mesmo a falta do adubo, o que seria um gargalo para a produção agrícola e pecuária em todas as regiões do planeta. E o Brasil depende muito; em 2021, importou 41 milhões de toneladas de fertilizantes com 22% sendo de origem russa.
4 – Aumento dos custos logísticos
Existem diversas rotas marítimas que são utilizadas para o comércio internacional de mercadorias. Quanto tem um conflito no mar Negro, como é o caso atual, algumas rotas precisam ser desviadas. Então, imagine que aquilo que levava mais ou menos 12 mil quilômetros para ser transportado agora leva 20 mil quilômetros.
Além disso, o petróleo, o gás natural e o dólar estão se valorizando, portanto o impacto sobre os combustíveis pode chegar facilmente ao Brasil dentro dos próximos dias. E isso certamente será repassado para empresas de transporte, para o processador, para o produtor e ao consumidor. É uma péssima hora para esse tipo de problema acontecer, afinal estamos saindo de uma crise.
5 – Volatilidade das moedas e temores sobre os pagamentos
Considerando que os principais membros da Otan anunciaram sanções à Rússia que podem implicar em prejuízo ao fluxo bancário com o ocidente, risco de solvência entra no radar. O que eleva sobremaneira a volatilidade das moedas globalmente e aumenta o risco operacional de comércio.
E isso, por sua vez, aumenta os custos com instrumentos de hedge, financiamentos e prejuízos cambiais. Isso aumenta os custos com insumos e, destacadamente, os fertilizantes.
6 – Acesso a crédito e seguro
Portanto, maior risco equivale a maior volatilidade que, por sua vez, equivale a custos mais altos com prêmios de seguro de preço. Além disso, os riscos armados costumam a reduzir a oferta de capital de risco, como crédito geralmente é condicionado a adesão de algum tipo de seguro, o conflito pode levar ao aumento das taxas de juro e dos prêmios dos seguro.
Por fim, a gente precisa considerar que o prolongamento do conflito, a intervenção de outros países, ocorrências envolvendo China e outros desdobramentos do conflito poderão agravar ainda mais os efeitos aqui citados. Para os pecuaristas especificamente, tem um ponto de alívio que é o fato de o mercado internacional ser mais dependente de maneira proporcional de grãos na produção de bois do que o Brasil que tem vastas áreas de pastagem.
Apesar destas áreas estarem reduzindo paulatinamente nos anos anteriores, o que a gente tem é um clima privilegiado, distribuição de água privilegiada e boas condições para produzir um boi mais competitivo em relação ao resto do mundo, que tem uma dependência maior dos grãos. Portanto, pode ser que isso traga uma maior competitividade ao boi brasileiro frente a seus concorrentes, apertando um pouquinho para cima a importação de carne bovina.
Lygia Pimentel é médica veterinária, economista e consultora para o mercado de commodities. Atualmente é CEO da AgriFatto. Desde 2007 atua no setor do agronegócio ocupando cargos como analista de mercado na Scot Consultoria, gerente de operação de commodities na XP Investimentos e chefe de análise de mercado de gado de corte na INTL FCStone.
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