Sonho para alguns, pesadelo para muitos, ficar sozinho no meio do nada pode parecer assustador. Quanto mais viver oito meses isolado em um barco no mar congelado. Mas, para Tamara Klink, o feito foi mais um selo para a sua carreira. “Não é um sonho, é a minha profissão.”
Com apenas 27 anos, a velejadora se tornou a primeira mulher a completar o período de invernagem no Ártico em solitário. Temperaturas de -40ºC, perrengues de quase morte, companhia de animais e paisagens indescritíveis fizeram parte da viagem. Para o percurso, precisou de preparação mental, física e médica, além de uma equipe de mais de dez pessoas e patrocínio da NTT Data Brasil e do Magalu. “Apesar de todas as dificuldades que surgiram, a viagem foi muito mais rica e feliz do que eu sequer podia imaginar.”
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O texto antes do mar
Filha do premiado navegador Amyr Klink, Tamara foi exposta aos relatos de viagens e à carreira do pai desde pequena. “Conheci o mar através das histórias dele antes de poder ver o oceano, de fato”, conta a paulistana. “Tive o privilégio de poder sonhar com isso.”
Diplomada em arquitetura pela escola ENSA Nantes, na França, ela é autora de quatro livros, ilustradora, fotógrafa, filmmaker e palestrante, além de navegadora.
Começou a escrever seu primeiro livro aos 13 anos, muito antes de conseguir seu primeiro barco. “Navego graças aos textos e aos vídeos. As criações artísticas e as narrativas dos relatos de viagem em diferentes suportes me abriram a oportunidade de navegar.”
O começo da aventura
A viagem para o Ártico começou em julho de 2023, mas o preparo veio muitos anos antes. Em 2020, Tamara Klink fez a Travessia do Mar do Norte em solitário, da Noruega à França, e, em 2021, realizou a Travessia do Atlântico da França ao Brasil. “A invernagem é um projeto de longo prazo, então as outras navegações já foram um treinamento para isso.”
Em 2022, iniciou o preparo e a adaptação de um veleiro de aço de 1992, apelidado de Sardinha-2, para a invernagem. Depois de 15 meses, zarpou da França em direção à Baía Disko, na costa oeste da Groenlândia, onde ancorou em um fiorde inabitado e viveu por 8 meses em autonomia. Foram seis meses presa no gelo, quatro sem ver humanos e três sem a luz do sol.
O barco de 10 metros de comprimento virou a casa de Tamara. No espaço interno, parecido com uma kitnet, tinha uma cama, fogão a gás e aquecedor a diesel, mas não havia chuveiro ou água corrente. A energia elétrica veio de um gerador eólico e de painéis solares.
Durante os meses de isolamento, também precisou conviver com o próprio lixo. Com a comida planejada e calculada, até a escolha dos alimentos foi pensada em função das suas embalagens e da produção de resíduos. Além de grãos, féculas, sementes, frutas desidratadas e conservas de legumes, a pesca foi uma das aliadas da navegadora.
Passageira do tempo e dependente do clima
Entre dias de neblina, tempestade de neve e ventanias, Tamara Klink vivia em função do tempo. Enquanto muita gente prefere ficar debaixo do cobertor no frio, a autora tinha energia de sobra para andar e explorar o local em suas condições limitadas. “Eu queria ver as coisas, porque sabia que elas eram finitas. Tudo era muito novo e surpreendente.”
No inverno, Tamara lidava com o pouco tempo de penumbra, enquanto, no verão, precisava ser mais cautelosa com o gelo fino nas caminhadas. Entre os desafios vividos, caiu na água ao pisar no gelo e desenvolveu alergias ao frio, mas soube lidar com os perrengues de maneira assertiva. “Foi muito importante ter vivido isso para ter referências e entender quais eram os limites.”
Um dos momentos mais emocionantes da viagem para a autora foi o congelamento definitivo do mar. “Pensava: ‘foi para isso que eu vim’. Não podia comandar nada, era apenas passageira do tempo.”
Mudanças climáticas
Com o planeta aquecendo cada vez mais, Tamara Klink escolheu fazer a invernagem antes que as condições ficassem inviáveis. “Sabia que fazer essa viagem daqui dez anos seria muito mais difícil.”
No período, ela já pôde perceber os efeitos das mudanças climáticas, como as paisagens menos brancas, icebergs menores, o recuamento de geleiras e o aumento do nível do mar. “Muitas pessoas no Brasil preferem achar que os efeitos dessas mudanças estão distantes, mas aqui eles já são muito concretos e visíveis.”
Enquanto isso, no resto do planeta
Para se comunicar com o mundo exterior ao fiorde, Tamara Klink contava com um aparelho para enviar emails. Além de lenta, a comunicação era restrita à equipe técnica e contatos próximos. A navegadora enviava notas descritivas sobre seus dias na invernagem, que eram publicadas nas redes sociais por sua equipe junto com ilustrações de Maria Klabin, inspiradas em cada relato.
Ver esta publicação no Instagram
Apesar da sua “ausência”, seu perfil no Instagram foi crescendo em audiência e, hoje, chega a mais de 300 mil seguidores. Mas a autora afirma que não é apegada aos números: “Entendo que existem pessoas por trás.”
Em uma via de mão dupla, quem acompanha Tamara nas redes também aproveita as postagens para deixar seus próprios relatos. De pessoas que decidiram se tornar mães, fundar empresas, tatuar a Sardinha ou aprender a velejar, são muitas as que se identificam com o trabalho da navegadora. “Não é apenas entretenimento, é fonte de inspiração e motivação”, diz ela, que faz questão de acompanhar os comentários dos internautas quando está conectada.
Quase ficou lá
No fim do inverno, Tamara Klink chegou a se perguntar se deveria voltar para a terra firme. “Lá, o máximo que eu podia fazer era virar comida de animais”, diz. Pelos relatos que leu nas redes sociais, conclui que tomou a decisão certa. “Voltando, poderia tornar a vida de outros seres da minha espécie melhor.”
O fim da invernagem, e o que fica
Com mais consciência das suas capacidades e limites, Tamara Klink encerrou a viagem com um sentimento diferente de conquista. “Não foi um gesto grandioso. Não houve entrega de medalhas. Não tinha ninguém me esperando no porto com uma faixa para me abraçar e falar ‘parabéns’. Foi uma conquista pessoal e interna.”
Críticas e privilégios
Filha de Amyr Klink, Tamara reconhece os privilégios que sempre teve, mas acredita que não são motivo para invalidar sua trajetória. “Quando aparece uma mulher jovem que faz coisas que muita gente se considera incapaz de fazer, começam a questionar.”
Sem dinheiro ou mesmo conselhos de Amyr, Tamara Klink precisou desbravar seus próprios mares. Na verdade, foi só depois que começou seu canal no Youtube, em 2015, que conseguiu dinheiro emprestado de um amigo para comprar o Sardinha 1, seu primeiro barco, pelo valor de uma bicicleta.
Quem vê close certamente não vê os contratos com empresas, entregas, retornos, responsabilidades e organização que antecedem uma viagem como essa. “É mais fácil dizer que eu fiz isso porque sou filha de um cara famoso do que reconhecer em uma jovem todas as suas competências.”
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Novos ares (e mares)
Em um barco de pesca em Ilulissat, na Groenlândia, Tamara Klink aproveita o retorno do verão para celebrar um ano desde o início da viagem e preparar os próximos passos. A navegadora adianta que vai começar a trabalhar em um novo livro e um filme sobre sua invernagem. “A maneira que eu tenho de agradecer pela oportunidade é dividindo o que eu vivi e aprendi com as outras pessoas.”