Uma dança tecnológica. Esta é a definição que a pensadora de futuros Ligia Zotini gosta de usar para descrever a forma que as tecnologias evoluem e, por sua vez, nos transformam. Com base em seus estudos, ela constata que esse processo, vivido pela humanidade desde a descoberta do fogo, tomou um rumo diferente desde o surgimento da internet, telas inteligentes e a prevalência destas tecnologias no ambiente de trabalho. Pois essas mudanças redefiniram a forma como trabalhamos e lidamos com a nossa saúde — e, é claro, trouxeram muitos desafios.
Siga a Forbes no WhatsApp e receba as principais notícias sobre negócios, carreira, tecnologia e estilo de vida
Segundo Zotini, que é fundadora do ecossistema de educação de futuros desejáveis Voicers e pesquisadora de cenários futuros na corretora digital de planos de saúde Piwi, os movimentos recentes desta dança de evolução tecnológica – como o fluxo constante de informações e estímulos trazidos pela era digital – têm afetado negativamente nossa saúde emocional. Neste turbilhão, podem surgir questões como ansiedade e outros transtornos, que por sua vez geram desdobramentos nefastos para o trabalho.
Leia também:
- Como o ChatGPT pode estimular a inovação no trabalho? 18 comandos para testar
- Rumo Futuro: Raj Seshadri, da Mastercard, discute a evolução da IA na indústria de pagamentos
- Entenda como funciona o AI Pin, dispositivo que pretende acabar com os celulares
“A exposição constante a conteúdos diversos e gatilhos emocionais tornou-se uma realidade com a presença permanente do trabalho em nossas vidas, graças à acessibilidade proporcionada pelas tecnologias móveis”, diz a pesquisadora. Zotini também ressalta que a voz e validação possibilitada por comunidades online, além do fortalecimento da nossa identidade e autoconhecimento, são processos mais complexos do que aparentam.
“Essa liberdade [de expressão online] também veio com uma responsabilidade: a necessidade de lidar com a exposição excessiva e encontrar um equilíbrio entre a vida digital e a vida real”, pontua a pesquisadora.
Ao comentar sobre como estes desdobramentos se manifestam no mundo corporativo, Zotini observa uma mudança significativa na maneira como a saúde mental é percebida. Segundo ela, as empresas começaram a reconhecer a importância do bem-estar de seus funcionários, ao mesmo tempo, essa mudança apresenta desafios para os líderes, que devem lidar com novas tecnologias e uma diversidade crescente de questões sociais e ambientais, além de cenários imprevisíveis, como pandemias.
No entanto, a especialista diz que é difícil encontrar respostas prontas em meio a desafios tão complexos do ponto de vista macroeconômico, demográfico e de saúde pública. “O último grande impacto que vivenciamos não estava previsto nos planos elaborados pelas grandes empresas, que costumam ter estratégias para diversas situações, incluindo cenários de dificuldades ou caos.”
“A Covid-19 evidenciou a imprevisibilidade do futuro e a demanda por adaptação rápida a situações inesperadas, bem como pensar trabalho e saúde de forma interligada”, comenta Zotini. Ademais, ela ressalta a necessidade de lideranças revisarem a forma como lidam com essas questões.
“A maioria desses empresários está preparada para administrar negócios, mas não tem a expertise para cuidar da saúde do time e, muitas vezes, acaba gerindo essa área de maneira superficial. Nesse cenário, vemos o poder e o potencial da tecnologia, que acelerou o crescimento de um setor que busca fazer essa ponte de cuidado que une trabalho e saúde, como é o caso da Piwi”, destaca.
Em entrevista a esta coluna, a pesquisadora falou sobre temas como a interseção do trabalho e da saúde, o papel da diversidade e do conhecimento ancestral na construção de futuros desejáveis, as competências do profissional de saúde do futuro, as mudanças de paradigma em áreas com expedientes flexíveis e o papel da tecnologia nestes cenários que já se apresentam.
Leia os melhores momentos da conversa:
Rumo Futuro: Como podemos garantir que o futuro do trabalho seja inclusivo e equitativo, especialmente no que diz respeito ao acesso a oportunidades viabilizadas pela tecnologia?
Ligia Zotini: Quando falamos sobre inclusão e equidade, é imperativo adicionar a palavra autonomia à equação. A inclusão verdadeira implica em trazer diversidade, em aceitar o diferente para que ele possa encontrar ambientes justos para se estabelecer. Isso significa criar um espaço que seja não apenas favorável e receptivo, mas também autônomo para aqueles que vêm de jornadas distintas.
No paradigma industrial anterior, tínhamos padrões rígidos de perfil, gênero, identidade e experiência de vida. No entanto, ao introduzir a diversidade, trazemos corpos físicos diversos e, consequentemente, jornadas emocionais diferentes. Isso implica em lidar com dores, vulnerabilidades e traumas variados, que podem se manifestar de maneiras diversas, inclusive de forma violenta em palavras e comportamentos. É fundamental que o ambiente se torne autônomo para acomodar essas realidades diversas desde o início.
Nesse contexto, a tecnologia desempenha um importante papel. É preciso garantir que os algoritmos não incorporem vieses, embora seja inevitável que os seres humanos tenham seus próprios preconceitos. A máquina, ainda não sendo dotada de consciência, é moldada pelos repertórios humanos que são inseridos em seus algoritmos. Portanto, é essencial ter cuidado para que padrões prejudiciais não sejam reproduzidos, desde macroviolências até detalhes sutis que possam afetar a participação em processos seletivos ou a permanência em uma empresa.
Isso requer um olhar atento para as diferenças não apenas no aspecto físico, mas também emocional, nas capacidades de percepção do mundo e no domínio de idiomas diferentes. Embora esses pontos pareçam óbvios quando discutimos diversidade, na prática dos negócios, eles exigem um esforço contínuo para serem verdadeiramente integrados.
RF: De que maneira as perspectivas de ancestralidade e conhecimentos tradicionais podem ser integrados nas inovações para a saúde do futuro, promovendo uma abordagem mais holística?
LZ: O exercício significativo de autoconhecimento e expansão não se limita apenas a avançar para o futuro, pois envolve uma expansão de consciência que abarca o passado, o presente e, especialmente, os cenários futuros. Ao trabalhar com estudos de cenários futuros, é preciso também considerar as práticas ancestrais e os conhecimentos tradicionais. Expandir para o passado é essencial para evitar a repetição de erros e aprender com abordagens anteriores, mas com novos ângulos, a fim de evitar os mesmos equívocos.
É fundamental integrar a saúde de forma holística, reconhecendo a diversidade de conhecimentos e práticas ancestrais em relação à saúde. Em diferentes sociedades, como na China altamente tecnológica, existe uma integração entre medicina tradicional chinesa, alimentação e outras práticas que impactam a saúde de maneira diferenciada. No entanto, sociedades ocidentais, incluindo os povos originários da América, perderam esses saberes ancestrais com a revolução industrial mesmo vindo às Américas e estando em contato com povos originários eles não absorveram ou se conectaram com esses saberes, pois enquanto sociedade ocidental organizada acabamos cortando isso.
Quando se trata de saúde no trabalho, é importante considerar a integralidade do ser humano, incluindo a compreensão dos ciclos femininos. Atualmente, cerca de metade da força de trabalho é composta por mulheres, mas muitas vezes não se reconhece a natureza cíclica desses corpos. As mulheres, por exemplo, passam por diferentes fases hormonais ao longo do mês, o que afeta suas emoções e comportamentos. É preciso resgatar essa consciência e integrá-la aos cuidados de saúde.
A medicina integral e integrativa desempenha um papel importante nesse contexto, pois reconhece a importância de trazer práticas ancestrais para o cenário atual. Isso não se trata apenas de incorporar antigas tradições na ciência moderna, mas de olhar para os saberes humanos até hoje e integrá-los aos avanços da inteligência artificial e da medicina de precisão.
Os profissionais de saúde do futuro serão aqueles que abordam os pacientes de forma integral, reconhecendo-os como seres bio-psico-energéticos e tratando-os com profundidade e compreensão. A entrega de uma saúde cada vez mais precisa vai além do estudo do genoma humano; ela exige uma compreensão profunda da integralidade humana e a aplicação desses conhecimentos na jornada de cura de cada indivíduo.
RF: Em sua visão, quais seriam as características de um futuro do trabalho e da saúde que honrasse tanto a igualdade de gênero quanto a diversidade cultural e ancestral?
LZ: No contexto do futuro do trabalho, a ideia de “trabalho do futuro” vai muito além de uma simples jogada de palavras. Na visão desse cenário, o trabalho do futuro se torna profundamente humano e diverso. Isso implica que os indivíduos que compõem uma organização, um negócio ou qualquer ambiente de trabalho se tornem protagonistas de sua própria jornada. Para que isso aconteça, é fundamental honrar a igualdade de gênero, a diversidade cultural e a ancestralidade.
Nesse novo paradigma, os seres humanos envolvidos em uma organização precisam estar preparados para realizar uma jornada de consciência plural. Isso significa sair da zona de conforto e dos vieses originários para experienciar outras situações. É uma jornada desafiadora que requer liderança e estratégias que permitam às pessoas vivenciar outras realidades, entendendo o que significa ser outro ser humano.
Acredita-se que nos próximos anos, as realidades imersivas terão um papel fundamental nesse processo. Essas tecnologias permitirão às pessoas se colocarem no lugar do outro de forma mais profunda e empática. Por meio de experiências imersivas, será possível sentir os desafios e as potencialidades da diversidade humana de maneira muito mais intensa. O conceito de “máquina de empatia” emerge, onde as futuras mídias sociais imersivas possibilitarão uma compreensão mais aprofundada dos outros grupos humanos.
A evolução dessas tecnologias nos levará a um novo entendimento da diversidade humana. A humanidade será dividida não mais em grupos universitários, mas em experiências individuais e únicas. Com a capacidade de habitar avatares de outros seres, os indivíduos poderão vivenciar as memórias e perspectivas dos outros de forma sintética e imersiva.
Dessa forma, o futuro do trabalho dependerá da capacidade das pessoas em entender e se conectar com a jornada do outro. Ao adentrar no espaço social de outra pessoa e viver suas experiências, será possível tomar decisões de negócios, liderança e construção de futuros de maneira mais informada e compassiva. O futuro do trabalho será moldado por essa capacidade de empatia e compreensão, permitindo uma colaboração mais rica e diversificada entre os seres humanos.
RF: Quais inovações tecnológicas você acredita que terão o maior impacto na saúde dos trabalhadores nos próximos dez anos?
LZ: A automatização está transformando várias áreas, especialmente na saúde, com diagnósticos e manipulações de medicamentos sendo realizados por inteligência artificial e robôs. Essa evolução tecnológica está liberando tempo para os profissionais humanos, permitindo que se concentrem em aspectos mais humanos e pessoais do cuidado e da cura.
Historicamente, o modelo de trabalho foi influenciado pelo padrão fabril estabelecido por [Henry] Ford, com jornadas fixas e escalas regulares. No entanto, há uma crescente tendência em direção a uma abordagem mais flexível. Empresas estão experimentando com semanas de trabalho de quatro dias e horários flexíveis, reconhecendo a importância de liberar tempo para os profissionais se desenvolverem pessoal e emocionalmente.
A liberação de tempo é essencial para que os profissionais possam se autoconhecer, se autocurar e expandir sua visão de mundo. Com máquinas assumindo tarefas mecânicas e repetitivas, os seres humanos têm a oportunidade de se concentrar em aspectos mais profundos de sua humanidade. A tecnologia está proporcionando essa liberação de performance, permitindo que os indivíduos se conheçam melhor e desenvolvam suas habilidades humanas.
No entanto, essa liberação de tempo não é apenas sobre melhorar a performance profissional. É sobre dar às pessoas a chance de se conectar com sua essência, desenvolver empatia, criatividade e intuição, aspectos intrinsecamente humanos que são essenciais em um mundo cada vez mais tecnológico. Sem esse tempo, os seres humanos correm o risco de perder para as máquinas, que podem aprender e absorver informações a uma velocidade inimaginável.
Portanto, nos próximos anos, a liberação de tempo terá um papel fundamental na área da saúde. Não se trata apenas de curar o físico, mas também de proporcionar jornadas de cura para o ser humano integral. Esse tempo liberado permitirá que as pessoas tragam à tona versões inéditas de si mesmas, em um processo contínuo de autodescoberta e desenvolvimento pessoal. Assim, a saúde do futuro será não apenas física, mas também profundamente humana e integral.