“Ainda sem uma visão clara da dimensão do impacto do novo coronavírus, começamos a discutir o assunto em janeiro, principalmente para tratar a China e o Japão, onde temos escritórios. A partir daí, a coisa foi seguindo em ondas: veio a discussão na Europa em fevereiro, pois temos operações lá, bem como nos Estados Unidos, para onde o vírus se alastrou um pouco depois.
Em março, chegou a vez do Brasil. De certa forma, já tínhamos estabelecido um bom protocolo em termos do que fazer e, por termos começado este processo um pouco antes, eu diria até que servimos de exemplo para boa parte dos nossos clientes. Dizíamos a eles: “Gente, preparem-se, pois este tsunami por aqui não vai ser simples’.
Em nosso comitê de enfrentamento da pandemia, decidimos que íamos trabalhar com duas, e somente duas, prioridades: a primeira e maior é a segurança das equipes e suas famílias, e a segunda é relacionada à continuidade dos negócios. Na primeira frente, tiramos as pessoas muito rápido dos escritórios e criamos condições para que elas pudessem trabalhar em casa. Transformamos vale refeição em vale alimentação, tornamos os horários mais flexíveis, oferecemos apoio psicológico. Percebemos muito rápido que, depois de algumas semanas em casa, as necessidades vão mudando, portanto as pessoas continuam sendo a nossa maior prioridade.
Precisávamos também continuar funcionando de forma remota e distribuída. Somos uma empresa de tecnologia e os processos, infra-estrutura e hábitos de trabalho e pessoal em diversos países já existiam, mas tivemos que elevar isso para um nível inacreditável. Afinal, 100% dos nossos colaboradores estavam trabalhando remotamente [a operação da CI&T na China está retomando as atividades gradualmente], discutindo com clientes como nossas iterações migrariam para serem também inteiramente virtuais e como daríamos sequência aos trabalhos.
Em uma situação como a nossa, também é necessário fazer leituras das diferentes culturas e geografias: a maneira como cada governo, não só em cada país mas como cada cidade está reagindo, faz parte da análise do que podemos ou não fazer e, além das recomendações das autoridades, adicionamos as nossas camadas de segurança. Sempre enfatizamos o work from home e queremos ser muito conservadores na volta. Não precisamos voltar rápido: nosso negócio está funcionando, trabalhamos de forma distribuída e eficiente, então a gente quer atrasar a volta o máximo possível, priorizando a saúde dos colaboradores e de suas famílias.
Com relação à operação na Ásia, a CI&T é uma empresa diferenciada por lá, tanto no Japão quanto na China. Temos um lado humano que nos caracteriza, mas empresas com uma atuação global acabam tendo práticas um pouco mais ousadas, e acho que estamos nessa categoria. Somos percebidos como uma empresa que coloca as pessoas no centro de suas estratégias, o que também está no cerne da nossa tese de transformação digital. O walk the talk é a nossa realidade: precisamos exalar essa paixão por digital focado no ser humano para fazer nosso trabalho.
Um lado menos recorrente e visível da discussão sobre transformação digital é que esta transição também significa uma mudança bastante radical no modelo de empresas tradicionais, que ainda são muito hierárquicas, baseadas em comando e controle – e esse modelo de operação, gestão e liderança não se traduz pra sociedade do século 21. Nesse cenário, a tecnologia sai exponencialmente na frente, em seguida vem a sociedade, que também muda numa velocidade bastante assustadora e depois vem as empresas, que são pegas de surpresa e começam a tentar se adaptar à nova realidade.
Esse já era o quadro pré pandemia, onde víamos a tecnologia avançando de maneira exponencial, a sociedade embarcando nessa mudança e as empresas vendo seus negócios e propósito sendo discutidos, ameaçados e tentando se reinventar em novos termos, com nova competição de origens mais digitais. De repente, acontece um evento que, de certa forma, acelera ainda mais as mudanças da sociedade, o nível de digitalização e essa discussão sobre o que importa, e a reflexão logo cai na palavra humanização.
A necessidade por negócios mais humanos vem dessa análise sobre as prioridades reais de cada um como um indivíduo e da sociedade como um todo, principalmente em uma crise de saúde sem precedentes que está gerando uma crise econômica também inédita. A sociedade pós- pandemia não vai esperar o tempo que essas organizações achavam que tinham para irem se reinventando.
Empresas no cenário atual têm três desafios, um mais visível e os outros, um pouco menos óbvios. O mais evidente é o tecnológico: empresas precisam deixar de ser empresas de produtos e virarem empresas de plataformas, de ecossistemas. É preciso se conectar de uma maneira radicalmente diferente com consumidores, e temos exemplos disso com Uber, Airbnb, Google, Apple, Amazon, que são empresas que viraram grandes plataformas de experiência de consumidor. Isso é óbvio, até porque a aceleração da digitalização da sociedade durante esses meses de crise é absurdamente visível.
O segundo ponto tem a ver com o que eu acredito ser a verdadeira mudança. Transformação só com tecnologia, no fundo, é como um batom no porco, não muda nada. A criação de equipes multifuncionais, menos departamentais, mais orientadas a propósito e com metodologias ágeis precisa ser rápida e agressiva na criação das esteiras digitais. É preciso refazer o sistema de gestão das empresas, que é baseado nas estruturas do século 20, com o poder muito centralizado e decisões sendo tomadas em níveis hierárquicos muito altos, com muito pouca autonomia de verdade na ponta.
Isso vai depender de uma terceira mudança, que é relacionada à liderança colaborativa, com menos chefes e mais tradutores de estratégia, mais propósito para que times possam encontrar soluções do que alguém que tem as respostas, que tenha comando, que dite a ordem do que tem que ser feito. Empresas que estão vencendo promovem a inteligência coletiva, co-criam mais sem a necessidade de respostas sólidas para tudo, são mais experimentais e aceitam o erro como parte importante do aprendizado. Em uma empresa clássica, isso é muito difícil, pois estão desenhadas para o acerto, e não para o erro e o aprendizado, o que é catastrófico.
As empresas clássicas são desumanas. Nesses ambientes, as pessoas não podem falar o que pensam, acabam criando um avatar corporativo e só são elas mesmas em casa. Acontece que tudo isso morreu, pois o ser humano é um só, e não dá para ter uma empresa desumana em uma sociedade que hoje reflete sobre a sua própria humanidade. Por outro lado, há uma grande oportunidade para incentivar jornadas pessoais de transformação.
Para reagirmos com a velocidade necessária ao que estava acontecendo em relação à pandemia, apostamos em alinhamento e autonomia, que as pessoas iam ver o que está acontecendo e resolveriam problemas de maneira inédita, além de colaborar ao invés de esperar a sala da justiça dizer o que tem que ser feito. Todo mundo leu, entendeu as prioridades e começou a agir, o que é maravilhoso do ponto de vista de reação.
Por outro lado, em empresas de setores cuja proposta de valor desapareceu, a liderança acostumada a dar muitas respostas teve dificuldade no enfrentamento da crise, pois ninguém viveu algo parecido com o que está acontecendo. A situação atual é o campo de batalha das soluções inéditas, do experimentalismo, mas isso não vai sair de uma estrutura sisuda de chefes que acham que têm as soluções para tudo. É também um ponto de partida para que estes líderes comecem sua jornada pessoal de desenvolvimento e mudem seus paradigmas internos.
Minha própria reflexão também é frequente. Venho de um processo de quase uma década me transformando como líder para fazer sentido em uma CI&T que mudou bem mais rápido e de forma bem mais virtuosa do que eu. Mas esse momento também me pegou sendo um líder de war time, o que é bem diferente de ser um líder em tempos de abundância.
No Brasil, percebo que temos uma certa vantagem em termos de como fabricamos crises o tempo todo. Pensando em como o mundo tomou um susto depois de uma década de abundância, no Brasil a coisa é diferente, estávamos tentando pôr o nariz para fora depois de uma sequência de crises políticas e econômicas e aí veio este tsunami. Mas o executivo e o empreendedor brasileiro está mais acostumado a perder o chão. Com base em realidades de clientes de empresas em diversos países, acho que o brasileiro “chaveia” do momento de paz e abundância para o momento de guerra muito rápido.
No nosso caso, muito cedo montamos uma farta estrutura de caixa para enfrentar essa travessia e viemos de um momento muito bom de mercado. Além disso, aceitamos que as empresas de tecnologia são parte da solução. Empresas têm que ser mais digitais, então a tese é que ao traduzir e adaptar as nossas ofertas e o nosso posicionamento, teremos grandes oportunidades nesse processo de reorganização dos nossos clientes.
Mesmo assim, o fator humano é um risco e isso pega a gente de uma perspectiva pessoal. Você tenta entender e ajudar num contexto corporativo mas, por outro lado, você também está preocupado com a sua família, seus entes queridos, principalmente as pessoas mais idosas e mais vulneráveis que você conhece e ama. Isso com todo mundo e inclusive comigo – e causou mais uma reinvenção, enquanto busquei entender os gaps para conseguir ser útil nesse “novo novo mundo” que começa a nascer.
Neste processo, busquei ser muito transparente, mostrar que eu também tinha muitos medos, que eu não tinha as respostas, que eu queria descobrir junto. Também tinha minhas ansiedades, que eram legítimas, mas consegui traduzir isso para o outro lado, e passar a mensagem de juntos somos muito poderosos. Temos exemplos maravilhosos disso, como a equipe do Japão indo comprar máscaras para os funcionários da China, quando esses produtos estavam em falta por lá, ou convertendo processos físicos para serem totalmente virtuais e, no geral, transformando limões em limonadas.
Mas a figura do CEO como pessoa pública e invulnerável, que passa a imagem de que está tudo certo e não tem suas próprias angústias, não funciona em tempos de guerra – no mínimo, é uma imagem que se torna artificial, portanto esta é uma ótima oportunidade para você se livrar dela. Isso vai conectar as pessoas, junto com sua experiência, sua capacidade de mobilizar e traduzir o que está acontecendo numa perspectiva positiva, o que faz muita diferença. Me coloquei nesse papel, como um grande tradutor e mobilizador para que nossa capacidade de resolver problemas gerasse o conforto de que a gente vai sair dessa, melhor e mais forte.
Pessoalmente, estou muito estoico e desprendido de coisas sobre as quais não tenho controle. Isso vale para o desafio corporativo e para a relação entre a sociedade e os líderes políticos. A liderança do “ou”, onde se diz ou fazemos isso ou aquilo, ou a gente fecha ou abre a economia, não serve em uma situação complexa e cheia de ambiguidades e incertezas como essa.
Este é um momento perfeito para a liderança do “e”: em uma situação inédita, muitas coisas infelizmente precisam ser testadas para vermos se funcionam. Não há respostas prontas, mas obviamente precisamos ter humildade, já que o Brasil tem a oportunidade de ver o que a Ásia, a Europa e até os Estados Unidos fizeram, e aprender com o que os outros tentaram. Honestidade intelectual e capacidade para ver os diferentes cenários é necessária, mas decisões definitivas sobre um caminho ou outro não vão funcionar.
O exercício da liderança é extremamente acelerado em tempos de guerra e a história nos mostra isso, tanto na trajetória das grandes batalhas humanas como das grandes corporações. Como CEO, tento contribuir de forma mais ampla. Participei da gênese do movimento Não Demita, pois se lideranças entrarem em pânico, o problema social será agravado e isso vai arrastar o problema para quem é mais frágil numa situação dessas. Com a Ambev, conseguimos criar um programa para gerar alguma receita para bares que estão fechados, ajudo organizações de líderes empresariais, principalmente de empresas mais estruturadas, falando sobre a necessidade de darmos o exemplo.
Em iniciativas como estas, consigo agir de verdade, sem ficar sofrendo sobre tudo em que não consigo ter influência, como a velocidade em que a vacina será disponibilizada. É óbvio que existem muitas coisas dolorosas acontecendo da perspectiva econômica e política, especialmente na percepção de que raio de decisão esses líderes estão tomando, ou mesmo sobre a percepção da quantidade de tragédias humanas envolvidas. Mas precisamos deslocar nossa capacidade criativa e o nosso foco para onde podemos agir.
Acho que vem por aí parâmetros não triviais com os quais teremos que lidar, como uma possível redução da globalização em vários aspectos. Ainda não sabemos como as cadeias globais dos países vão se organizar, mas isso pode ter impactos, principalmente para quem quer ter uma visão mais global de negócios. Isso também é parte da equação de um mundo mais digital, mas mais escasso, e talvez um pouco mais avesso a uma visão global.
A outra parte disso é a visão de uma sociedade que precisa ser re-entendida, uma radical mudança e uma inevitável aceleração de mudança de valores, comportamentos e consumo da sociedade. Isso terá desdobramentos positivos e negativos para diversas empresas, e essa busca por estratégias corporativas mais diversificadas para que as empresas se sintam mais prevenidas a fenômenos inesperados que vão continuar possivelmente surgindo, é essencial. Empresas estão sentindo, a duras penas, a necessidade da resiliência, adaptabilidade e reações rápidas. Junto com incerteza e mudança, acredito que estas são palavras-chave nesse horizonte do pós-crise.”
[Conforme relatado à Angelica Mari]
Angelica Mari é jornalista especializada em inovação há 18 anos, com uma década de experiência em redações no Reino Unido e Estados Unidos. Colabora em inglês e português para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros.
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