Uma votação no Senado Federal no último dia 20 do Projeto de Lei 1179/2020, que cria um regime jurídico especial, com regras transitórias para vigorar durante a pandemia do novo coronavírus, trouxe, junto, uma preocupação para o ecossistema de inovação do país.
Isso porque os artigos 17 e 18 do capítulo XI determinam que as empresas que atuam no transporte remunerado privado individual de passageiros, inclusive por aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede, reduzam sua porcentagem de retenção de valor das viagens em, pelo menos, 15%, garantindo o repasse dessa quantia ao motorista até 30 de outubro. O mesmo vale para os serviços de entrega (delivery), também intermediados por tecnologia, de alimentos, remédios e outros itens. Os artigos, que já haviam sido removidos na votação da Câmara dos Deputados, foram incluídos novamente por emenda parlamentar no documento, que agora segue para a sanção ou veto presidencial.
Para Vitor Magnani, presidente da ABO2O (Associação Brasileira Online To Offline) e presidente do Conselho de Comércio Eletrônico da Fecomércio SP, a medida, caso aprovada, tem o potencial de acabar com a inovação no país. “Justamente as pequenas e médias startups, que estão se desdobrando para sobreviver durante essa crise, tentando manter os empregos e ajudando o seu entorno com medidas de apoio aos restaurantes e bares, serão as mais impactadas. Elas correm o risco de não sobreviver.”
Magnani, que representa quase uma centena dessas empresas, tanto de mobilidade urbana, quanto de delivery e marketplaces, explica que, para concorrer com os grandes players e atuarem nas mais remotas regiões do país, essas startups de menor porte não serão capazes de operar com taxas tão baixas. Atualmente, diz ele, cada uma delas define sua própria remuneração. A entidade lançou, inclusive, um manifesto pedindo o veto parcial ao PL, com a retirada apenas do capítulo XI.
Embora preocupado com as startups de menor porte, Magnani diz que, no caso das empresas maiores e estabelecidas há mais tempo, a situação não é muito melhor. No caso do transporte de passageiros por aplicativo, por exemplo, como Uber, 99 e Cabify, a redução da demanda já chegou a 80% desde o início da crise em todo o país. O que significa que os ganhos pelo volume também não fazem parte de uma fórmula operacional válida em tempos de pandemia.
A medida é uma proposta do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que tem o objetivo de estabelecer uma melhor remuneração de motoristas e entregadores durante a pandemia. Ao propor a alteração, ele esclareceu que o custo dessa redução não poderia ser repassado pelas empresas ao consumidor final. “Neste momento de pandemia, as empresas têm o dever de dar a sua contribuição e ter a sensibilidade de olhar para aqueles que estão mais vulneráveis. O lucro não pode se sobrepor a um direito humano essencial, proteção e respeito que todo trabalhador merece”, disse.
O problema, segundo os representantes do setor, é que a conta não fecha. Tiago Albino, do Içougue, um sistema de delivery de carnes que atua nos 27 estados do país, explica a composição dos custos. “Temos 5% de taxas de adquirência (dos meios de pagamentos) e outros 15% de impostos. Ou seja, de cara, são 20% menos. Se eu for obrigado a repassar 15% para os motoristas, não sobra nem para pagar o custo do produto que eu entrego, nem minhas despesas operacionais”, explica. “Se estivéssemos falando de um imposto único, a coisa seria diferente. Mas o meu fornecedor também já recolheu o ICMS, o que causa um efeito cascata que vai comendo o lucro das partes envolvidas na operação.”
Isso significa que a tentativa de proteger um dos atores dessa cadeia pode, no fim, inviabilizá-la como um todo, criando um efeito rebote. Isso sem falar na dificuldade de fiscalizar esses repasses ao motorista. “Eu opero em 400 cidades, com duas ou três empresas de entregas em cada uma delas. É uma malha complexa, precisaria de um sistema muito eficiente de aferição.”
A advogada Ana Malard, sócia da Malard Advogados e do Marcelo Tostes Advogados e especialista em direito econômico e compliance, enxerga outros problemas na medida. Um deles é que, apesar de serem proibidas de repassar esse custo ao consumidor final, as empresas que se sentirem impedidas de continuar viáveis para operar acabarão encontrando modos de fazer isso para não morrerem. “Aumentar o preço do serviço vai diminuir a competitividade num momento crítico de demanda.”
Ana menciona, ainda, que a aplicação desse repasse de forma linear – a mesma taxa para qualquer empresa que atue como determinado nos artigos 17 e 18 – afeta ainda mais a concorrência, já que cada uma tem uma estrutura, um perfil e uma operação. “As diferenças entre elas é o que alimenta a competição. Isso é saudável.” Por fim, a especialista cita o desencorajamento que a iniciativa significa para novos players. “Se alguém estava pensando em entrar nesse mercado, certamente vai desistir diante dessa interferência na precificação. Uma medida que tem como objetivo oferecer segurança jurídica não tem nada de segura”, finaliza.
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