Enquanto o mundo entrava em isolamento há um ano, os funcionários da AstraZeneca receberam notícias que alguns consideraram decepcionantes. Com a crise global de saúde pública deflagrada em março de 2020, a gigante farmacêutica sueco-britânica emitiu um comunicado à imprensa anunciando que a doação de máscaras para apoiar os profissionais de saúde. Para alguns funcionários, que acreditavam trabalhar para uma das empresas mais dinâmicas do setor, o gesto da máscara parecia relativamente inconsequente em comparação com os esforços de pesquisa de vacinas de empresas como Pfizer e Moderna.
O que aconteceu a seguir não surpreendeu ninguém na AstraZeneca. Dentro de semanas, o CEO da empresa, Pascal Soriot, colocou a companhia na frente da corrida para fornecer uma vacina revolucionária. A AstraZeneca fechou um acordo com a Universidade de Oxford em abril de 2020 para desenvolver uma vacina de ponta, e Soriot se comprometeu a disponibilizar, sem lucro, três bilhões de doses ao mundo durante a pandemia.
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Um ano depois, a vacina Oxford-AstraZeneca enfrenta uma série de críticas. Líderes europeus culpam a farmacêutica por conduzir uma campanha de vacinação desleixada e lenta, e alguns suspenderam a administração da vacina devido ao temor de que ela cause coágulos sanguíneos e baixe a contagem de plaquetas. A publicidade negativa em torno do imunizante da AstraZeneca ameaça minar as esperanças da Europa, que segue os EUA e o Reino Unido nos esforços de vacinação, e atrapalha a até então impecável trajetória de Soriot no topo da AstraZeneca. A ministra da Indústria da França, Agnes Pannier-Runacher, foi direta: Soriot “está na berlinda e sabe disso”.
Na AstraZeneca, as controvérsias sobre a percepção pública de sua vacina causaram frustração crescente. Soriot tem trabalhado febrilmente para resolver esses problemas em sua base na Austrália, onde ele se instalou nos últimos meses. Em meio à polêmica, o homem encarregado de gerenciar a imagem e as relações da AstraZeneca com governos, o chefe de assuntos globais, Rich Buckley, está deixando a empresa após 16 anos. (Buckley disse à “Forbes” que sua saída não teve nada a ver com as questões em torno da vacina.)
Na última quinta-feira (18), a Agência Europeia de Medicamentos disse que uma análise de especialistas mostrou que a vacina AstraZeneca é segura e eficaz e não aumenta o risco de coágulos sanguíneos. Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal e Holanda disseram que retomariam a vacinação de suas populações.
“Com a vacina, acho que eles se complicaram. Eles provavelmente não perceberam a política por trás disso e não são uma empresa de vacinas”, diz Andrew Berens, analista biofarmacêutico do SVB Leerink. “Eles sentiram uma obrigação moral de ajudar Oxford-Reino Unido. Obviamente, isso se tornou um grande problema político e uma espécie de mancha de relações públicas para uma empresa com um histórico muito bom.”
Quando a pandemia começou no ano passado, Soriot, 61 anos, era o CEO mais admirado de uma grande indústria farmacêutica. Um francês que se formou como veterinário e cresceu em um bairro suburbano de Paris, Soriot presidiu uma reviravolta corporativa impressionante. Quando chegou à AstraZeneca como CEO em 2012, o propósito da empresa e suas ações estavam em baixa. Alguns de seus medicamentos mais importantes estavam para perder suas patentes e o zelo da empresa para desenvolver novas proteções havia diminuído. Para Soriot, parecia que a companhia estava sendo conduzida por planilhas e não por ciência.
A AstraZeneca literalmente engavetou o Lynparza, cancelando um investimento de US$ 285 milhões na terapia experimental para câncer de ovário, e o entusiasmo da empresa em passar rapidamente o medicamento para câncer de pulmão Tagrisso aos testes clínicos era morno.
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Soriot trouxe uma nova mentalidade para a AstraZeneca, com foco em fazer apostas em pesquisa e desenvolvimento, principalmente em oncologia. Ele interrompeu corte de gastos e recompra de ações da AstraZeneca e assumiu riscos calculados ao investir em novos candidatos a medicamentos. Soriot também lutou contra a tentativa de aquisição da AstraZeneca por US$ 118 bilhões pela Pfizer para manter a empresa independente.
Soriot reviveu o Lynparza e impulsionou o desenvolvimento clínico do Tagrisso em 2 anos e meia. No ano passado, a receita do Lynparza cresceu 49%, para US$ 1,8 bilhão, e o Tagrisso gerou US$ 4,3 bilhões. Soriot também investiu pesadamente na China, onde quase um quarto dos funcionários da AstraZeneca agora estão baseados. Soriot visitava regularmente a China, que se tornou um mercado-chave para drogas como o Tagrisso. No total, a AstraZeneca produziu US$ 5,4 bilhões de receita na China no ano passado.
Em 2018, o negócio geral da AstraZeneca estava crescendo novamente e a receita do ano passado aumentou 10% para US$ 26,6 bilhões. A disposição de Soriot de assumir riscos em negócios resultou no armário de remédios da AstraZeneca se enchendo de produtos de alto crescimento. Em 2016, Soriot comprou uma pequena empresa de biotecnologia, a Acerta Pharma, e seu único medicamento contra leucemia, por cerca de US$ 7 bilhões. Esse medicamento, o Calquence, foi aprovado nos EUA no final de 2019 para tratar leucemia linfocítica crônica e gerou US$ 522 milhões no ano passado. Neste ano, está se aproximando de 50% das novas prescrições dos EUA na leucemia mais comum em adultos, uma vez que desafia o Imbruvica, o titânico medicamento contra o câncer de sangue comercializado pela AbbVie e Johnson & Johnson.
Desde que Soriot assumiu o comando da AstraZeneca, as ações da empresa tiveram retorno de 13,8% ao ano, superando os 11,55% do índice MSCI World Pharmaceuticals and Biotechnology. A AstraZeneca é agora a segunda maior empresa da Grã-Bretanha em capitalização de mercado, com uma nova e vistosa sede de US$ 1,8 bilhão, em Cambridge, com inauguração total prevista para dezembro.
Mas os eventos do ano pandêmico colocaram uma nuvem sobre a história de sucesso de Soriot. A conexão entre a AstraZeneca e Oxford veio por meio de Mene Pangalos, o cavaleiro chefe de pesquisa biofarmacêutica da AstraZeneca. No início do ano passado, cientistas de Oxford fizeram grandes progressos no desenvolvimento de uma vacina para Covid-19 usando um vírus do resfriado que infecta chimpanzés, mas eles precisavam de recursos de fabricação, regulamentação e testes clínicos para distribuí-la ao mundo. A gigante farmacêutica norte-americana Merck negociou para ajudar a desenvolver a vacina, mas os cientistas de Oxford escolheram trabalhar com a AstraZeneca, em parte devido ao compromisso de Soriot de que a vacina seria amplamente distribuída nos países em desenvolvimento.
Embora reunir duas instituições britânicas fizesse sentido superficialmente, a AstraZeneca não tinha praticamente nenhuma experiência com o desenvolvimento de vacinas. Soriot interveio e ajudou a organizar a fabricação por meio de uma rede contratada, e, no final do último verão do hemisfério norte, parecia que o esforço Oxford-AstraZeneca estava liderando a corrida. O fato de que a AstraZeneca se comprometeu a fornecer a vacina sem lucro contribuiu para a sensação de bem-estar.
Mas o primeiro teste em humanos foi planejado de forma pouco convencional e tornou difícil julgar a eficácia da vacina. O imunizante foi autorizado no Reino Unido no final de dezembro, mas alguns países europeus analisaram os dados clínicos e liberaram a vacina apenas para pessoas mais jovens. Em fevereiro, um estudo mostrou que uma única dose da vacina AstraZeneca oferecia 76% de proteção. Os dados mostraram que a administração de uma segunda dose seis meses depois aumentaria a proteção para 80%, muito mais do que quando a segunda dose foi administrada após seis semanas. Essa conclusão foi alcançada em parte devido à maneira pouco ortodoxa como os cientistas de Oxford projetaram seu ensaio. Eles fizeram muitas perguntas e obtiveram uma combinação de resultados.
O espaçamento em meses das doses da vacina não apenas aumentou a eficácia, mas também apresentou uma ferramenta de saúde pública ao permitir a vacinação de mais pessoas com uma primeira dose que conferia boa proteção. No Reino Unido, onde a vacina AstraZeneca tem sido amplamente usada, mais de 25 milhões de pessoas já tomaram sua primeira injeção e a vacina demonstrou reduzir as hospitalizações e a morte, inclusive em pessoas mais velhas.
Ainda assim, a AstraZeneca não conseguiu descobrir uma maneira de cumprir suas metas de fornecimento de vacinas de 300 milhões de doses para os 27 países do bloco da UE até o final de junho. Uma reação política se seguiu quando ficou claro que a AstraZeneca teria dificuldades para entregar até a metade desse montante. A Itália agiu no início deste mês para interromper a exportação de 250 mil doses da vacina da AstraZeneca para a Austrália. O calor político ferveu com as preocupações de segurança que surgiram na última semana.
No meio de tudo isso, Soriot decidiu comprar a Alexion, uma empresa de biotecnologia norte-americana especializada em doenças raras e medicamentos para imunologia, por US$ 39 bilhões. Soriot fechou o negócio em dezembro porque a AstraZeneca não estava produzindo dinheiro suficiente para alimentar sua máquina de crescimento. Ela até havia usado suas ações para atender ao pagamento de dividendos por meio da emissão de ações. Agora, Soriot usará principalmente as ações da AstraZeneca para comprar a Alexion, geradora de caixa. O negócio também expandirá o alcance da AstraZeneca em um novo segmento de doenças.
Em Wall Street, o negócio da Alexion complicou a história de crescimento da AstraZeneca. O medicamento mais vendido da Alexion, Soliris, começa a perder sua proteção de patente mais importante em 2026, representando o tipo de precipício de patentes que os investidores tendem a não gostar. A Alexion tem grandes esperanças para seu produto substituto, Ultomiris, mas a incerteza permanece.
“A Alexion foi recebida com análises conflitantes”, diz Tim Anderson, da Wolfe Research. “Há algum mérito na AstraZeneca ser capaz de levar os produtos da Alexion a novas geografias como a China, mas acho que foi uma questão de fluxo de caixa.”
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Por enquanto, Soriot precisa fazer a AstraZeneca superar a pandemia, atendendo à demanda de vacinas e comunicando resultados de dados clínicos complexos que, às vezes, não podem ser reduzidos a um único número. Há milhões de doses da vacina AstraZeneca nos Estados Unidos aguardando uma autorização de uso emergencial do FDA (Food and Drug Administration, na sigla em inglês), a agência reguladora de medicamentos nos EUA, que dependerá do ensaio clínico da empresa no país. Esse ensaio provavelmente mostrará uma eficácia menor porque os participantes dos Estados Unidos receberam uma segunda dose da vacina após apenas quatro semanas, em oposição ao esquema de dosagem mais longo ideal.
“Do ponto de vista dos acionistas, a AstraZeneca tem sido a grande história farmacêutica dos últimos anos e recentemente foi ofuscada pelas manchetes da vacina e da Alexion”, diz Berens, do SVB Leerink. “Mas é uma ótima história e, uma vez que as ações estão baixas por coisas que não são fundamentalmente relevantes, acho que é uma boa oportunidade para os investidores.”
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