No dia 13 de maio de 1888, data que marca a abolição da escravatura através da Lei Áurea, a família de Liliana Aufiero, diretora-presidente da Lupo, chegou ao Brasil. Seu avô, Henrique Lupo, tinha apenas 11 anos e estava acompanhado dos pais e irmãos na longa viagem entre a região de Trento, na Itália, e a América do Sul. “Na época, os imigrantes italianos estavam vindo para trabalhar nas lavouras. Havia uma recepção em Santos (SP), onde eles colocavam as pessoas nos trens e mandavam para as fazendas. Mas, não era esse o objetivo do meu bisavô”, conta a executiva. Artesão de joias e relógios, ele resolveu desenvolver seu ofício no país e se instalou em Araraquara, no interior de São Paulo.
“Eles abriram um pequeno ponto para cuidar de joias, que foi desenvolvido pela família até se tornar uma bonita ourivesaria e relojoaria na rua principal do comércio na cidade”, continua Liliana. Foi há alguns passos dali, na casa de seu avô – já casado e com nove filhos – que um segundo empreendimento familiar nasceu: a Lupo. “Um vendedor entrou em contato para falar de uma máquina de tear que estava vendendo. Meu avô e meus tios mais velhos, que já tinham mais de 17 anos, decidiram testar. Colocaram o mecanismo no meio da sala e começaram a produzir as primeiras meias da empresa”. A tintura era produzida na banheira da casa. A embalagem, na mesa de jantar. De forma caseira, nascia uma grande companhia que, no último mês, completou 100 anos.
Enquanto o negócio se expandia pela cidade, Liliana brincava no quintal da empresa e absorvia aprendizados ao acompanhar o trabalho dos familiares. A veia empreendedora surgiu pelos genes e pela vivência. “Eu me agarrei tanto a Lupo que parece que aqui é minha casa. Quando eu vou parar de trabalhar? Será que alguém vai me tirar daqui?”, diz com humor a empreendedora de 71 anos. À frente da companhia há cerca de três décadas, ela viveu a montanha russa dos negócios com emoção: de risco de falência a aquisições milionárias.
A gestão de Liliana
Formada em engenharia civil, Liliana morava em São Paulo e trabalhou na área por 18 anos, completamente afastada das dinâmicas da Lupo. Foi quando um de seus tios faleceu e a terceira geração começou a tomar o poder da empresa familiar. “Meu primo estava na direção temporária e me chamou para assumir. Larguei a vida na capital para começar do zero aos 36 anos”, relembra a empresária. “Minha mãe era uma das herdeiras, mas na época dela as mulheres não trabalhavam. Era uma estrutura bem machista. Eu fui a primeira figura feminina”. Em 1986, Liliana protagonizou esse marco e começou a comandar a empresa.
Nas mãos, ela tinha uma forte crise de gestão e diversos problemas financeiros. “O nome da marca já era forte, isso não se abalou”, conta a diretora-presidente. Por outro lado, as finanças tiravam noites completas de sono. “Eu mal havia chegado e já tive que fazer um plano de recuperação. Criei uma linha intocável, que servia para pagar as dívidas. Ninguém podia mexer ali, nem para comprar um parafuso”. Ela explica que, naquela época, as dívidas não eram com os fornecedores, mas sim com os bancos através dos empréstimos. “Uma hora, um dos empréstimos estourou e não tinha como quitar o valor. Aquele foi o pior momento. Tive que parar de pagar o governo para pagar o banco.”
A tensão durou três anos, até conseguirem saldar as dívidas com o governo. “Recomeçamos do zero. Ali, quase falimos”, destaca Liliana. Embora sua recepção na empresa tenha sido caótica, a partir desse momento a diretora ganhou muita força para guiar o negócio. “Não estudei teoria, mas a vontade e o amor eram o suficiente. Eu não acreditava que podia dar errado. Via aquilo desde criança e não podia deixar morrer”. Em 1994, aliviada pela turbulência que havia passado, ela começou a expandir a companhia.
Ainda em 1988, a empresa deu o primeiro sinal de que gostaria de vender outras mercadorias além das famosas meias: mudou o nome de Meias Lupo para Lupo S.A. “Até hoje, algumas pessoas nos conhecem pelo primeiro nome”, diz Liliana entre risadas. No entanto, foi apenas após a crise que a marca conseguiu efetivamente lançar novos produtos, começando pela cueca e expandindo para lingerie e linha esporte. “Tínhamos nas mãos um ramo têxtil que precisava crescer em itens e público consumidor. Hoje, como meu tio costumava falar, vendemos para todas as idades: de mamando a caducando.”
Nesse período, as fábricas da marca começaram a aumentar em tamanho e produtividade. “Meu avô expandiu a empresa ao redor da casa dele e, com o tempo, abriu uma unidade de recepção e despacho às margens da rodovia de Araraquara. Quando passamos pela crise, conseguimos guiar um movimento ainda maior de crescimento no mesmo local – que hoje tem 90 mil metros quadrados -, além da primeira fábrica no Nordeste”, explica.
A primeira loja física da Lupo foi aberta em 1994 – grande ano para a empresa. “Até então, vendíamos apenas para lojistas. Então, o Shopping D surgiu em nossas vidas”. Com o projeto inicial focado em receber apenas unidades de fabricantes, com layout de depósito de fábricas e foco em sacoleiros, o centro de compras foi a primeira investida da Lupo no setor físico. “Os lojistas compravam as meias mais clássicas: beges e pretas. Quando abrimos a primeira loja, colocamos tudo que tínhamos, inclusive os modelos mais criativos. Isso foi muito bom. Atraiu novos consumidores e ajudou muito no processo de recuperação que estávamos passando.”
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Hoje, embora 65% das vendas ainda dependa dos lojistas, a empresa conta com 406 franquias próprias. Além disso, após a aquisição da Trifil, em dezembro de 2016, também controla 71 franquias da marca Scala e 49 da Trifil. Isso fez com que, no ano de 2019, a Lupo tenha alcançado um faturamento de R$ 1,08 bilhão. Em 2020, mesmo em ano de pandemia, a marca faturou R$ 886,9 milhões e teve um aumento de 6,5% no número de funcionários. Para 2021, Liliane espera alcançar a marca de R$ 1,2 bilhão.
O objetivo financeiro seria um grande presente de aniversário, mas para aproveitar o centenário antes do final do ano, o grupo já planejou um calendário especial para os próximos meses. Entre as novidades, estão o Espaço Lupo, uma espécie de museu interativo com a história da marca; o livro escrito pelo autor Ignácio de Loyola Brandão; e os itens comemorativos de 100 anos.
Para ela, a comemoração é consequência dos esforços constantes das últimas décadas. Seja com a crise financeira que vivenciou no início da gestão ou com as dificuldades da pandemia, Liliana tem uma forte bagagem de experiência no mundo turbulento dos negócios.
Confira, na galeria abaixo, cinco coisas que a diretora aprendeu comandando uma empresa familiar centenária:
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Divulgação Consolidar a imagem
Em meio à crise da terceira geração, Liliana reforça que a imagem da empresa não ficou abalada pela situação – diferente das finanças. Desde 1921 no mercado, as pessoas já conheciam a Meias Lupo como uma marca consolidada e confiável no mercado. “Essa fidelização que criamos é tão forte que até hoje algumas pessoas nos chamam pelo nome antigo”, destaca. De certa forma, a empresa acompanhou o avanço da moda, o que também ajudou na construção de uma relação próxima com os consumidores. Quando se cria um ambiente de confiança, é mais fácil passar por uma crise.
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Divulgação Aceitar um bom desafio
No início da vida adulta, Liliana foi para São Paulo estudar engenharia civil. Em uma época em que poucas mulheres estudavam e trabalhavam na área de exatas, vivenciou um grande aprendizado quando se viu sozinha em um curso repleto de homens – situação que levou com leveza e maestria. Quando foi chamada para ser diretora da Lupo, aos 36 anos, sentiu a mesma sede pelo desafio de quando era apenas uma estudante. “Era desafiador, mas eu acreditava que conseguiria”, diz com orgulho. “Quando estávamos na fase mais difícil, recebemos uma proposta de venda da empresa. O comprador assumiria todas as dívidas. Eu bati o pé e disse: ‘não vamos fazer isso. Não vamos desistir’”, relembra. Foi desse jeito que aprendeu a lidar com todas as situações difíceis: pensando que eram apenas desafios a serem superados.
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Divulgação Não ter medo de inovar
Em 1994, após o risco de falência, Liliana decidiu abrir a primeira loja física no Shopping D, em São Paulo. Para alguns, a decisão era uma manobra arriscada para uma empresa que precisava se estabilizar para alcançar a recuperação definitiva. Sem medo de inovar, a diretora largou a mão do conservadorismo e optou por investir na ideia. “Ainda bem que não voltei atrás. Foi maravilhoso. Tivemos que limitar o número de pessoas dentro da loja. Tinha até fila para entrar”, relembra.
Durante a pandemia, a empreendedora também precisou agir rápido para tentar salvar o lucro anual. Com franquias fechadas em todo o Brasil, começou a produzir máscaras próprias e vender online. “Foi um produto muito aceito. De certa forma, as máscaras ajudaram nosso faturamento em 2020”, ressalta. Pela sua própria experiência, empreender é não ter medo de inovar.
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Divulgação Ter consciência social
Assim como Liliana, que cresceu no quintal da empresa, alguns funcionários da Lupo protagonizam décadas de trabalho ao lado da companhia. Isso faz com que, ao menor sinal de dificuldade, o time realmente permaneça unido em prol da sobrevivência do negócio. “Temos um diretor que começou carregando caixas no depósito da empresa. Ele estudou e começou a se qualificar cada vez mais, até chegar no cargo atual”, conta a empresária. Para ela, essa atenção com o social e com o meio ambiente são essenciais – e, felizmente, pilares importantes da empresa.
Com sede em Araraquara, a marca cresceu ajudando a cidade no fortalecimento do atendimento médico e do transporte público local. “Doamos um terreno para a faculdade, financiamos 160 casas para nossos funcionários, pagamos ônibus para os enfermeiros transitarem durante a Covid-19. Essas questões sempre foram uma preocupação”, conta. Como consequência, Liliana diz ouvir muitos relatos de pessoas que já trabalharam na empresa e guardam boas memórias. “Todo ano, meu avô alugava um ônibus e levava os funcionários para passear em Santos. Outro dia, encontrei um rapaz que disse lembrar de uma dessas viagens. Ele tinha oito anos e acompanhava a mãe dele – nossa funcionária – na confraternização”, conta orgulhosa. “Era 8 de maio de 1945 e todos estavam comemorando o fim da Segunda Guerra Mundial.”
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Divulgação Ter amor ao trabalho
Para a diretora, a Lupo sempre foi bem mais do que uma fonte de renda. Nascida na sala de seu avô, é quase um membro da família. Dessa forma, ela explica que o amor e a vontade de vencer davam uma força ainda maior para lutar contra os desafios. “Prevaleceu a vontade de dar certo”, destaca ela. Quando se trata do mundo dos negócios, a empreendedora acredita que ter um propósito é essencial para seguir em frente com sucesso.
Consolidar a imagem
Em meio à crise da terceira geração, Liliana reforça que a imagem da empresa não ficou abalada pela situação – diferente das finanças. Desde 1921 no mercado, as pessoas já conheciam a Meias Lupo como uma marca consolidada e confiável no mercado. “Essa fidelização que criamos é tão forte que até hoje algumas pessoas nos chamam pelo nome antigo”, destaca. De certa forma, a empresa acompanhou o avanço da moda, o que também ajudou na construção de uma relação próxima com os consumidores. Quando se cria um ambiente de confiança, é mais fácil passar por uma crise.
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