Em 2 de outubro de 1875, o presidente Ulysses Grant parou em Cheyenne, Wyoming, uma cidade que nem existia uma década antes, mas que estava se tornando um polo comercial florescente graças à recém-construída ferrovia Union Pacific. Como chegou pela manhã, Grant foi tomar o café da manhã no Inter-Ocean Hotel, um edifício imponente inaugurado havia pouco. Com três andares, o hotel tinha capacidade para 150 hóspedes e um salão de jantar que acomodava quase 200. O estabelecimento contava ainda com barbearia, salão de bilhar, bar e casa noturna.
O proprietário do Inter-Ocean, Barney L. Ford, serviu pessoalmente o desjejum do presidente e de sua comitiva em uma mesa que um jornal local descreveu como “repleta de todas as iguarias, não só da estação, mas do que a arte era capaz de agregar: tudo em grande abundância e preparado com primor”.
Na época, Ford era um dos homens mais ricos do Oeste, com um patrimônio líquido calculado em cerca de US$ 250 mil – ou mais de US$ 6 milhões em valor atual. Um quarto de século antes disso, ele não tinha nada, mas, à beira de um rio em Illinois, estava determinado a construir uma vida para si mesmo. Lá, ele se declarou livre da escravidão, dizendo a seu antigo proprietário, em uma carta: “Eu o deixei sem um dólar no meu bolso e, o que quer que aconteça, dependerei de meus próprios esforços para viver”.
Ele não sabia o quanto suas palavras eram proféticas.
Ao longo da vida, Barney Ford fez várias fortunas em mineração, restaurantes, barbearias, imóveis e outros investimentos. Também perdeu várias para vigaristas, incêndios, falências e guerra, mas sempre foi capaz de se recuperar e se reinventar. Sua busca implacável de riqueza e sucesso só era superada por sua ânsia por liberdade. Abolicionista e ativista dos direitos civis, Ford superou muitos obstáculos como homem negro e ajudou a derrubar muitos mais para os outros.
Nascido na Virgínia em 22 de janeiro de 1822, Ford era filho de uma escrava negra e de um homem branco, provavelmente dono dele, e foi criado em uma plantação na Carolina do Sul. Nunca recebeu nenhum tipo de educação formal, mas, em algum momento, aprendeu a ler, escrever e falar de maneira formal e eloquente. “Ele conseguia soar mais instruído do que era”, diz Steve Shepard, que é membro do conselho do Museu do Oeste Negro Americano e representa o papel de Barney Ford em reconstituições. “Isso o ajudou bastante mais à frente.”
Quando jovem, Ford trabalhava frequentemente fora da plantação e passou anos conduzindo porcos e mulas até por volta de 1843, quando foi comprado pelo coronel Nathaniel Garland Woods, um autodenominado “comerciante” que vivia em St. Louis.
Ford acompanhou Woods em várias de suas viagens, trabalhando como criado em um barco de algodão e depois em um barco de passageiros a vapor no rio Mississippi, sempre vivendo em condições miseráveis. Em uma carta na qual explicava por que fugiu da escravidão, posteriormente reimpressa em um jornal abolicionista, Ford criticou Woods por se recusar a fornecer-lhe roupas dignas e a deixá-lo dormir em uma cama. “Quando estou lendo minha Bíblia à noite, depois de esperá-lo e prepará-lo para dormir”, escreveu ele, “frequentemente você me faz interromper minha leitura e ir me deitar para que eu possa acordar cedo a fim de lhe servir”.
Foi quando, no outono de 1848, Woods levou-o em uma viagem fatídica para Illinois. Na cidade de Quincy, disseram a Ford que as leis do estado o libertariam da escravidão se lá permanecesse por mais de 10 dias. Então, ele deixou Woods para trás, dizendo: “Se posso ficar melhor por conta própria do que com você, sinto que tenho liberdade para fazê-lo, pois isso é comum a todos os homens livres”.
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De Quincy, ele seguiu para Chicago, onde conheceu Henry Wagoner, um negro livre, abolicionista e jornalista. Wagoner também era dono de uma estrebaria, onde Ford conseguiu seu primeiro emprego como homem livre. Nessa época, também começou a cortejar a cunhada de Wagoner, Julia Lyoni, filha nascida livre de um branco e uma negra, que estava cursando uma faculdade na cidade. Os dois se casaram em 1849. Porém, o coronel Woods estava de olho em Ford. Quando Woods morreu, em outubro de 1850, seu testamento determinou: “meu escravo Barney, hoje em Chicago, será emancipado”.
Naquela época, Ford trabalhava em uma barbearia, aprendendo um ofício que lhe serviria muito bem nos anos seguintes. Foi lá que ele decidiu buscar sua próxima oportunidade – ouro na Califórnia.
Em 1851, ele foi até a Costa Leste, onde pegou um navio a vapor com destino à Califórnia. Isso foi muito antes do Canal do Panamá, então havia uma parada na costa leste da Nicarágua, antes de seguir para o oeste. Ford não foi tão longe. Ele adoeceu e, enquanto se recuperava, “seu tino comercial entrou em ação”, diz Shepard. “Ele viu que havia uma grande necessidade de um hotel.” Então, ele comprou e administrou o hotel United States, que atendia às centenas de norte-americanos que passavam por Greytown, o terminal leste da rota terrestre (hoje San Juan de Nicarágua), a caminho da Califórnia. As habilidades culinárias de Ford também ajudaram a atrair hóspedes ilustres ao salão de jantar do hotel, inclusive Cornelius Vanderbilt, cuja empresa detinha o monopólio do transporte na Nicarágua.
Passados alguns anos, a instabilidade política impossibilitou que ele continuasse morando na região. A Marinha dos Estados Unidos bombardeou Greytown em 1854, destruindo seu hotel, então Ford voltou a Chicago, onde foi membro fervoroso do Partido Republicano e permaneceria ativo nas causas da abolição e dos direitos civis por décadas.
Em 1860, Ford soube de uma nova corrida do ouro – agora, no Colorado. Nos anos que se seguiram, ele voltou àquilo que havia lhe servido bem na Nicarágua: ganhar a vida com hotéis e restaurantes. Dirigiu-se a Breckenridge, onde foi um dos administradores do hotel Bella Union. Existe até uma lenda de que ele teria tentado a sorte na mineração e talvez até conseguido encontrar um grande depósito de ouro, mas não há nenhuma prova nesse sentido.
No auge, o negócio de Ford estava rendendo quase US$ 250 por dia – ou quase US$ 2 milhões por ano em valor atual.
No entanto, Ford encontrou ouro metaforicamente em sua personalidade encantadora e sua devoção à operação de estabelecimentos de luxo – as ostras eram uma de suas marcas registradas – com excelente atendimento ao cliente. O Bella Union, por exemplo, foi objeto de uma carinhosa reminiscência escrita em 1898, descrito como “grande e espaçoso, e aquele pessoal sabia preparar boas refeições e tinha uísque de primeira categoria”.
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Depois de poucos anos, Ford, que não parava quieto, acabou voltando a Denver, onde abriu uma barbearia; esta logo lhe rendeu dinheiro suficiente para acrescentar um restaurante. No auge, o negócio estava faturando quase US$ 250 por dia, o equivalente a quase US$ 2 milhões por ano em valor atual. Contudo, o prédio pegou fogo em 1863, no Grande Incêndio de Denver, que destruiu cerca da metade do bairro comercial da cidade. Ford calculou sua perda em US$ 10 mil (ou US$ 210 mil hoje).
Nas ruínas carbonizadas do bairro comercial, um banqueiro chamado Luther Kountze começou a oferecer empréstimos ao pessoal local que havia perdido seu sustento, a uma taxa de juros alta, de 25%. Kountze era frequentador assíduo da barbearia, então Ford o abordou e pediu um empréstimo de US$ 1 mil para reconstruí-la. Kountze disse a Ford para sonhar mais alto e ofereceu um montante de US$ 9 mil (ou US$ 190 mil hoje), embora Ford não tivesse garantia.
Ford pegou o empréstimo e construiu um prédio alto de tijolos, que ainda hoje existe e leva seu nome, para abrir o People’s Restaurant. Este tinha uma barbearia no porão, uma taverna no segundo andar e um apartamento para a família Ford no último andar. Três meses depois da inauguração, Ford pagou o empréstimo integralmente. E, nos anos seguintes, aumentou sua riqueza comprando casas geminadas, que alugava. Ele logo ficou próspero a ponto de vender o negócio por US$ 23,4 mil (US$ 400 mil hoje) e alugar o prédio para o comprador.
Com dinheiro na mão, Ford mudou-se com a família de volta para Chicago em 1865, onde esperavam viver confortavelmente pelo resto da vida com a renda dos aluguéis, e ele direcionou sua atenção à política. Defensor incansável do direito de voto, ele se juntou a uma iniciativa com outros ativistas negros, inclusive seu cunhado Wagoner e dois filhos de Frederick Douglass (todos os quais haviam se mudado para Denver), para pressionar o Congresso a invalidar a soberania do estado do Colorado até que a constituição deste consagrasse o direito dos negros de votar. Esses esforços ajudaram a atrasar a entrada do estado na União até 1876.
Em 1867, a aposentadoria precoce de Ford teve um fim abrupto quando ele ficou sabendo que seu agente comercial havia arruinado seus negócios em Denver, tendo vendido suas casas geminadas e fugido com o dinheiro. Sempre infatigável, Ford viu uma nova oportunidade no Wyoming, onde a ferrovia havia planejado um novo município chamado Cheyenne para ser uma parada importante. Assim, Ford rumou para o oeste novamente e construiu outro restaurante, que abriu menos de um mês antes da ferrovia.
Mais uma vez, Ford levou sua marca registrada de atendimento ao cliente e jantares finos a seu restaurante na nova cidade. Este tinha capacidade para centenas de pessoas, e Ford oferecia viagens de carruagem gratuitas entre o restaurante e a estação ferroviária para que os clientes pudessem jantar enquanto o trem estivesse parado.
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Na década de 1870, ele havia atingido o auge de sua riqueza. Em Denver, ele operava o Ford’s Hotel e, em 1873, gastou US$ 50 mil para construir o Inter-Ocean Hotel, uma das maiores e mais sofisticadas propriedades da região. (Também nessa época, Ford concorreu à legislatura territorial; embora tenha perdido, sua influência era tão grande, que vários obituários disseram que ele tinha vencido.)
Ele alugou o Inter-Ocean e, em 1875, construiu um segundo hotel de mesmo nome em Cheyenne. Ambos foram batizados em homenagem a um jornal de Chicago, um dos poucos periódicos pertencentes a brancos que defendiam os direitos civis dos negros. Entretanto, o custo de operar um grande hotel no meio de uma depressão (desencadeada pelo pânico de 1873) causou danos às finanças de Ford e, mais uma vez, ele foi obrigado a entregar quase tudo aos credores.
Depois de um breve período em São Francisco, ele voltou mais uma vez a Breckenridge, onde abriu outro restaurante novo e prosperou. Em 1882, ele pôde contratar um arquiteto para construir uma casa nova em estilo vitoriano, que hoje é um museu dedicado à sua vida. A localização era ideal, levando-se em conta o crescimento da cidade, que estava passando por um boom da prata. “O imóvel de Barney Ford deve valer cerca de US$ 5 milhões atualmente, só o terreno”, diz Larissa O’Neil, diretora executiva da Breckenridge Heritage Alliance. “É o imóvel da cidade, e ele sabia que o local era ótimo.”
Ele logo teve outros empreendimentos em Breckenridge, inclusive mais restaurantes e uma participação em mineração da qual se desfez em 1889 com um lucro de US$ 20 mil (ou mais de US$ 575 mil hoje). Ele e sua família voltaram a Denver no ano seguinte, onde passaram o resto da vida com a renda do aluguel de imóveis.
Laborioso até o fim, Ford faleceu em 1902, tendo sofrido um derrame, segundo um relato, ao limpar as calçadas em uma manhã de neve – mas sua memória continua viva mais de um século depois. Uma escola de ensino fundamental do Colorado leva seu nome, e há uma estátua dele em Breckenridge. Em 1981, a legislatura do Colorado encomendou um vitral que retrata Ford para ser instalado no Capitólio.
Porém, talvez o maior legado deixado por Barney Ford seja seu permanente exemplo de tenacidade, habilidade e perseverança. Apesar dos muitos triunfos e tragédias, ele acreditava fortemente nas oportunidades que o oeste norte-americano oferecia a homens negros como ele. “Aqui ele representa o que vale”, pregava Ford. “Aqui ele pode ocupar qualquer cargo para a qual a natureza e a educação o tenham preparado.”
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