Um novo tipo de “magia financeira” usando Spacs (companhias com propósito específico de aquisição) foi alcançado nesta semana em um acordo que visa gerar bilhões de dólares quase inteiramente do nada.
Na manhã da última segunda-feira (12), uma Spac chamada Lionheart Acquisition Corp II revelou um acordo para tornar pública a MSP Recovery, uma empresa especializada em pagamentos do Medicare (sistema de seguros de saúde gerido pelo governo norte-americano), por um valor de US$ 32,6 bilhões. A Spac afirma que avalia a MSP em cerca de 10,5 vezes a receita esperada para 2023. Se o negócio for aprovado e o mercado concordar com a avaliação de Lionheart, a participação estimada de 70% do fundador e CEO, John Ruiz, valerá mais de US$ 20 bilhões, enquanto a participação estimada de 24% de seu sócio, Frank Quesada, será de cerca de US$ 7 bilhões – pelo menos na teoria.
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O modelo de negócios da MSP é baseado em comprar pedidos de pagamento de despesas médicas e identificar casos em que programas estatais de assistência à saúde pagaram esses valores, mas uma seguradora é quem deveria ter arcado com os custos. A MSP então cobra o valor integral pedido pelo prestador médico – normalmente há uma diferença enorme entre o que o governo paga e os preços praticados por hospitais e médicos – e demanda ainda indenização em dobro, dependendo da situação. A empresa afirma ter construído uma infraestrutura de big data exclusiva e usar análises do tipo Moneyball para filtrar milhões de pedidos em busca de casos valiosos. “O governo acaba pagando contas que não deveria pagar porque não existe um sistema para identificar quem é o real devedor”, disse Ruiz à Forbes. “Foi isso que revolucionamos nos Estados Unidos”.
A MSP opera sob a premissa de que 11% – ou cerca de US$ 177 bilhões – dos US$ 1,6 trilhão gastos por Medicare e Medicaid (outro programa estatal de assistência à saúde) a cada ano estão na verdade relacionados a acidentes e fraudes, o que significa que outra pessoa deveria ter pago a conta. Ele argumenta que os programas financiados pelo governo – Medicare para idosos e Medicaid para pessoas de baixa renda – acabam bancando tratamentos de saúde que deveriam ter sido pagos por outras seguradoras. Por exemplo, se uma pessoa for ferida em um acidente automobilístico ou no trabalho, essas contas não devem ser pagas pelo Medicare, mas por um seguro automobilístico ou pelo empregador.
A MSP afirma que possui quase US$ 50 bilhões em pedidos de pagamento de seus clientes, incluindo médicos, hospitais e seguradores da Medicare Advantage, e projeta que isso pode gerar um retorno de 12 vezes sobre a recuperação dos valores devidos, além de ganhos extras com juros e multas. Em uma apresentação para investidores, a MSP sugere que pode recuperar até US$ 27 bilhões de seu portfólio de pedidos. “Ao descobrir, quantificar e liquidar a lacuna entre o que é cobrado e o que é pago em uma escala financeira massiva, a MSP está posicionado para gerar uma receita anual substancial com margens de lucro elevadas”, afirma a empresa.
Mas aqui está o problema. É tudo projeções, esperanças e sonhos. O negócio da Spac depende de estimativas precipitadas de quanto vale a carteira de pedidos de pagamento de despesas médicas, e toda a sua demonstração de resultados é hipotética. Na verdade, a MSP vai gerar exatamente US$ 0 em receitas este ano, de acordo com suas próprias projeções.
Atualmente, a MSP é dona de uma carteira de pedidos que Ruiz diz ter custado quase US$ 1 bilhão na compra, incluindo os custos de construir a infraestrutura de dados, e mais US$ 1,4 bilhão em compromissos de investidores institucionais de adquirir mais pedidos. A MSP afirma que o valor a ser pago por essas indenizações potencialmente recuperáveis relacionadas a acidentes, antitruste ou riscos ao consumidor vale atualmente US$ 20 bilhões e aumentará para US$ 49 bilhões até 2026. Ele projeta uma taxa de recuperação de 51% sobre o valor de face de suas indenizações até 2026, gerando cerca de US$ 24 bilhões em receita bruta. Além disso, espera pagar mais de US$ 16 bilhões a advogados que judicializam esses pedidos. Portanto, sua margem de recuperação será de cerca de 30% e renderá US$ 7,2 bilhões em receitas líquidas para a MSP. Depois de despesas e impostos, isso resulta em US$ 5,2 bilhões em receita líquida até 2026.
A empresa foi criada em 2014 por Ruiz, um advogado do escritório Coral Gables, da Flórida, como uma empresa de advocacia especializada em reembolso médico. A sua fundação coincidiu com a chegada de uma indústria agora chamada de “financiamento de litígios”. Numerosos fundos de litígio surgiram nos últimos anos como uma forma de obter retornos não correlacionados com o mercado de ações – na última década, esses fundos geraram retornos de 15% na média anual.
Ruiz se baseou em uma lei de 1980 conhecida como Medicare Secondary Payer Act (daí o nome MSP), que o Congresso aprovou para transferir custos do governo para seguradoras privadas em algumas situações. Como o governo não tem os recursos para peneirar bilhões de pedidos e cobrar judicialmente o real responsável pelos reembolsos, Ruiz viu uma oportunidade para combinar conhecimento jurídico com algoritmos de mineração de dados.
“Estamos em um espaço que está praticamente desocupado”, diz ele. Em 2018, com um aporte de US$ 440 milhões do fundo de hedge Virage Capital Management, a MSP começou a cobrar de seguradoras o que agora corresponde a mais de US$ 50 bilhões em desembolsos – com o total de pedidos chegando a US$ 243 bilhões.
O fato de haver uma oportunidade de negócios lucrativa nessa área é um reflexo da fragmentação da estrutura de pagamento do sistema de saúde dos EUA. Tudo começa com o preço de tabela do hospital – pense nisso como se fosse o preço de um prato no menu – mas nenhum restaurante realmente paga a tarifa integral, e o governo paga apenas uma fração do que o hospital pede. O exemplo simplificado que a MSP usa na apresentação para investidores é: um hospital recebe um pagamento do Medicare de US$ 100 por um serviço, embora tenha cobrado US$ 600.
A MSP compra os direitos dos pedidos de pagamento de despesas médicas dos provedores de saúde (que receberiam do governo apenas uma fração do que cobram) ou concorda em representá-los na condição de que quaisquer receitas serão divididas meio a meio. Outro grupo de clientes são as seguradoras privadas que administram o programa Medicare Advantage – há casos em que elas pagaram indenizações que eram de responsabilidade de outra seguradora. A MSP então entra com ações judiciais contra essas outras seguradoras, e tenta cobrar o valor total ou, em certos casos, indenização em dobro.
“Imagine que você está prestando um serviço e, em vez de receber o valor que faturou, recebesse um valor menor porque é o governo que está pagando a você”, diz Ruiz. “Há uma diferença enorme entre os dois valores, e [os clientes] estão sendo coletivamente enganados e perdendo bilhões de dólares por causa disso.”
A confiança de Ruiz vem de sua experiência como advogado – ele obteve sentenças favoráveis em ações coletivas de consumidores contra empresas como a American Home Products, por causa de seus comprimidos dietéticos Fen Phen; a Merck Pharmaceuticals e o remédio antiinflamatório Vioxx; além de vitórias em processos contra Bayer, Shell, Toyota e ConAgra Foods.
Segundo Ruiz, um dos benefícios da MSP comprar os direitos sobre os pedidos é que ele “é nosso para sempre e nunca poderá ser removido. Ninguém pode cancelar nosso contrato”, diz. Semelhante a situações em que uma instituição financeira compra a obrigação de dívida de outra parte, a MSP detém o direito de cobrar os sinistros. Ruiz tem planos de expansão, incluindo um produto que ajudaria os clientes a identificar a seguradora responsável quando o paciente fosse ao consultório médico, além de um serviço de auditoria de pedidos.
Porém, desempenho passado no tribunal não garante resultados futuros – ou gera receita concreta. E o próprio negócio com a Spac traz uma série de riscos.
Em agosto de 2020, a Lionheart listou seu Spac na Nasdaq, levantando US$ 230 milhões para comprar uma participação em uma empresa e abrir o capital dela em fevereiro de 2022.
Com apenas sete meses para fechar um negócio ou devolver o dinheiro, a Lionheart está comprando uma participação microscópica de 0,7% na MSP. Os investidores da Spac agora precisam decidir se gostam do negócio e participam da fusão, ou se resgatam suas ações e recebem seu dinheiro de volta. Mas é quase irrelevante se muitos acionistas aprovam o negócio ou não, porque não há um limite mínimo de apoio necessário para que ele seja concluído.
Ainda mais surpreendente é o fato de que a Lionheart está oferecendo aos acionistas que não fizerem resgates um valor inédito de 35 bônus de subscrição por ação caso participem da fusão, com limite de cerca de um bilhão de bônus de subscrição. A MSP disse em uma nota de rodapé que o preço de exercício de seus bônus existentes pode ser reduzido para “até US$ 0,0001 por ação”, um sinal de alerta de que pode negociar mal no aftermarket.
Esses grandes incentivos fazem parecer que Lionheart quer fechar um negócio a qualquer custo. Se a companhia conseguir levar o plano adiante com a MSP, seus executivos ficarão ricos. Como patrocinadora, a Lionheart deve arrecadar US$ 64 milhões por seus esforços, além de uma uma atrativa parte desses bilhões de bônus de subscrição.
Ruiz, no entanto, discorda da ideia de que a avaliação de US$ 32,6 bilhões da MSP é fantasiosa, e chegou até a sugerir em uma entrevista por telefone que o número era ” conservador”, dados os US$ 3,6 trilhões em gastos com saúde nos EUA em 2018. Como os custos com saúde aumentam mais rápido que a inflação, as contas médicas são árvores que continuam gerando frutos.
“Não é um conjunto de ativos que é vendido ou liquidado e acaba por aí”, diz ele. “Esses problemas são perpétuos por natureza porque as pessoas continuam indo ao hospital. Este negócio abrange todos os americanos nos Estados Unidos que têm seguros de saúde.”
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