A repressão de Pequim a uma das gigantes de tecnologia da China – a DiDi, ou “Uber chinês” – afeta mais do que apenas a própria empresa (e seus investidores). Suas consequências sinalizam uma escalada do que podemos começar a pensar agora como uma Guerra Fria entre a China e os Estados Unidos. Em disputa está a supremacia financeira global.
O que é a DiDi?
O nome DiDi Chuxing Technology Co. não era conhecido nos EUA e em outros países ocidentais até este mês. A DiDi é uma empresa de transporte por demanda, e muito mais. Ela oferece uma ampla gama de negócios, incluindo compartilhamento de bicicletas, serviços de entrega sob demanda, vendas de automóveis, locação, financiamento e manutenção, operação de frota, carregamento de veículos elétricos e desenvolvimento de veículos em parceria com montadoras.
A propósito, o seu fundador, Cheng Wei, é ex-aluno do Alibaba e Alipay, que se tornou o Ant Group, mais uma evidência da importância de Jack Ma para a ascensão do setor de tecnologia chinês.
Assim como a China, a DiDi é enorme. Na verdade, chamá-la de “Uber chinês” é subestimar o modelo de negócios que a DiDi promoveu aos investidores em seu IPO. A empresa teve uma receita de cerca de US$ 25 bilhões nos últimos 12 meses, contra cerca de US$ 11 bilhões da Uber. A companhia afirma que seus níveis de usuários e penetração de mercado são atualmente 4 a 6 vezes maiores do que os do Uber, e ainda afirma ter 15 milhões de motoristas ativos, enquanto a Uber tem cerca de 3,5 milhões.
A DiDi parece um caso clássico de “Fast Follower” (“seguidor rápido”, em tradução livre). A Uber provou ser um modelo satisfatório para consumidores e investidores, e a DiDi pôde aproveitar a clareza do mercado para se expandir rapidamente e ultrapassar a ex-líder. Como Fast Follower chinês, a Didi aproveitou o enorme mercado interno para crescer bastante, protegendo-se da concorrência estrangeira. Ela também se beneficia da cultura emergente de rápida inovação de serviços, que impulsionou a tecnologia chinesa a uma posição de destaque no mundo.
Em 30 de junho, a companhia chinesa levantou US$ 4 bilhões em seu IPO, que não ocorreu na China, mas sim na Bolsa de Valores de Nova York. Foi o maior IPO de uma empresa chinesa no mercado norte-americano em sete anos. As ações subiram 15% no primeiro dia, levando o valor de mercado da empresa para US$ 80 bilhões.
A empresa possui sólidas credenciais e apoiadores do ponto de vista financeiro. Na verdade, a própria Uber é acionista majoritária da companhia (com 12,8%, após ter vendido suas próprias operações na China para a DiDi há alguns anos). O maior investidor é o Softbank (21,5%, uma potência no mundo de venture capital, que também é o maior acionista do Alibaba). O IPO da DiDi foi conduzido por uma equipe dos sonhos de bancos de investimento, composta por Goldman Sachs, Morgan Stanley e JPMorgan.
Por quase 48 horas, essa foi mais uma história chinesa de sucesso.
O martelo foi batido
Mas parece que alguém em Pequim não ficou satisfeito. Em 2 de julho, o governo chinês suspendeu abruptamente os planos de desenvolvimento de negócios da DiDi. A empresa foi instruída a interromper a inscrição de novos clientes, enquanto aguarda sua “retificação”.
As ações recém-emitidas da DiDi caíram 30%. Os investidores norte-americanos ficaram inquietos pelo que parecia ser uma falha jurídica de primeira ordem, um fator de risco crítico que não havia sido divulgado, proveniente de um regime regulatório conhecido por medidas às vezes duras e inconstantes. A DiDi sabia que isso iria acontecer? Os relatórios são contraditórios e provavelmente serão discutidos na justiça.
De qualquer forma, a empresa foi informada pelas autoridades chinesas que estava em “violação grave” de… o quê exatamente? Algo a ver com segurança de dados… sendo ordenada a suspender seus negócios. Especificamente, além da suspensão do recrutamento de novos usuários, Pequim impôs as seguintes medidas:
- O app da DiDi foi removido das principais lojas e plataformas de aplicativos;
- Outros 25 aplicativos – incluindo os apps de carona, de finanças e para clientes corporativos – também foram excluídos;
- A empresa foi multada por violações antitruste (referentes a um assunto mais antigo, mas agora visto como uma medida adequada).
O horário pode ter sido tarde (a ligação de Pequim foi às 22h, supostamente). A justificativa pode não ter sido clara. Mas seu cumprimento era obrigatório.
Nenhuma das ordens trouxe qualquer detalhe sobre os dados e problemas de segurança específicos que despertaram as preocupações dos reguladores. Em um comunicado publicado após a meia-noite nas redes sociais chinesas, a Didi disse que “aceitaria e obedeceria categoricamente” às demandas.
A questão agora é: essa é uma ameaça fundamental ao modelo de negócios da DiDi ou uma medida temporária para marcar a autoridade de Pequim e que não está destinada a restringir permanentemente a empresa? Isso também não está claro.
O dano imediato não se limitou às ações da DiDi. O índice Nasdaq Golden Dragon, composto por 98 empresas chinesas negociadas em Nova York, caiu paralelamente, recuando 14% em uma semana, com perda de US$ 130 bilhões em valor.
Em Xangai, o mercado perdeu cerca de US$ 200 bilhões em 2 de julho, quando o anúncio da DiDi foi divulgado. A bolsa de Hong Kong – repleta de empresas com dupla listagem em Nova York – foi a mais atingida, perdendo algo em torno de US$ 500 bilhões ao longo da semana.
Três Interpretações
O que devemos pensar sobre tudo isso? Três leituras são sugeridas: trata-se de uma má decisão das autoridades chinesas motivada por preocupações políticas de poder; esta é uma política regulatória nacional, mas com problemas na execução ou; esse é um confronto calculado com os EUA.
1. Paranóias em Pequim
Talvez esse seja um equívoco de Pequim. De acordo com essa visão, atingir a DiDi é a última tentativa das autoridades chinesas de afirmar controle sobre uma florescente indústria de tecnologia empresarial. Nesse caso, seria um erro estratégico. Ao suprimir o setor mais dinâmico e inovador da economia chinesa, o governo tende a derrotar o propósito maior da China de alcançar a paridade tecnológica e econômica com o Ocidente. A China precisa dessas empresas fora da curva e hipercriativas, e do espírito empreendedor que as guia. Mas o governo parece não conseguir lidar bem com esse contexto, por isso as medidas em nome da “regulamentação financeira”, como o IPO interrompido do Ant Group e o agora prejudicado IPO da DiDi.
2. Boas políticas, péssima execução
Talvez devêssemos deixar de lado teorias e admitir que os objetivos de política regulatória são razoáveis. Restringir as regras sobre segurança de dados, fortalecer a privacidade do consumidor e controlar as práticas anticompetitivas das Big Techs são questões que também os Estados Unidos estão envolvidos. Os EUA têm apontado preocupações sobre o poder não regulado e tendências exageradas de grandes empresas de tecnologia, como a Amazon ou o Google. O Facebook foi criticado por pecados semelhantes às acusações levantadas contra a DiDi. Até mesmo o fechamento do IPO da Ant em novembro passado – por mais difícil que tenha sido – pode ser visto como uma resposta racional aos riscos significativos que existiam em torno de um negócio frenético. Em suma, Pequim pode ter feito a coisa certa – embora de maneira desajeitada.
Nessa interpretação mais otimista, a China assumiu a liderança no confronto com algumas complicações da rápida mudança tecnológica. Dentro de um sistema político mais autoritário, eles podem ser mais decisivos do que reguladores em outras economias.
“Os EUA e a China acabarão descobrindo que é do seu interesse cooperar para controlar as empresas que buscam acumular – e lucrar com – cada vez mais dados. China, EUA e outras economias irão se beneficiar com esses gigantes, mas também continuarão em confronto com eles”, disse oficial chinês de alto escalão. “Eles não podem lidar com o problema sozinhos. Esta é uma área importante para a cooperação.”
Talvez devêssemos admirar os reguladores chineses pela rapidez implacável com que abordam um problema, e rapidamente tomar as ações corretivas. Nessa visão, não é o resultado, mas a maneira às vezes brutal como a política é executada que podemos questionar. Depois que a poeira baixar, o resultado – podemos admitir – pode não ser tão ruim.
3. Uma Declaração de Guerra (Fria)
Tudo isso também pode ser visto como um passo calculado em direção ao confronto aberto com o sistema financeiro dos EUA e seus reguladores. Existem implicações nefastas para o sistema financeiro global que transcendem as diferenças de estilo ou julgamento.
A Guerra Fria Financeira, que já está se formando há algum tempo, foi declarada abertamente há alguns meses e não foi nem na China, nem em Nova York, mas sim em Washington D.C. quando o Congresso norte-americano aprovou por unanimidade a Lei de Responsabilidade de Empresas Estrangeiras.
Esta lei exige, entre outras coisas, que todas as empresas estrangeiras listadas nas bolsas de valores dos EUA precisam cumprir o processo de revisão de auditoria supervisionado pelo Conselho de Padrões de Contabilidade de Empresas Públicas (PCAOB). Esta agência foi criada pela Lei Sarbanes-Oxley de 2002, e todas as empresas públicas dos EUA são obrigadas a cumprir, assim como as empresas em quase todos os outros países que negociam em Nova York. A China disse que se recusará terminantemente a permitir que suas empresas cooperem. Eles são o único país do mundo a assumir essa posição.
O resultado final é que em menos de três anos os EUA provavelmente expulsarão do mercado de ações de Nova York centenas de empresas chinesas atualmente listadas por lá, com um valor de mercado combinado próximo de US$ 2 trilhões. Isso impõe uma penalidade financeira significativa a essas empresas, elevando seu custo de capital e negando-lhes o acesso a grandes segmentos do sistema financeiro global.
Um estudo antigo de empresas estrangeiras listadas em Nova York – de diferentes países – encontrou um prêmio de avaliação de quase 40% associado à listagem cruzada em uma bolsa norte-americana. O estudo antecede o surgimento da tendência de listagem cruzada da China e, portanto, se refere principalmente a empresas sediadas em mercados desenvolvidos.
Um estudo mais recente do efeito do não cumprimento do PCAOB sugere um corte de 5-7% na avaliação das empresas chinesas associadas a comunicados indicando atrasos ou falhas na cooperação com os reguladores dos EUA.
Em qualquer caso, o custo de capital para empresas chinesas é significativamente mais alto do que para empresas norte-americanas. Aumentar o fator “risco regulatório” na China ou a perda de acesso aos mercados de capitais norte-americanos certamente aumentaria a lacuna entre os países.
Pequim provavelmente está preparada para pagar esse preço (ou permitir que empresas e investidores chineses o paguem). O movimento contra a DiDi mostra que a China prefere desencorajar as empresas chinesas a listar suas ações em Nova York. Parece que Pequim decidiu por um ataque preventivo contra o PCAOB.
Este endurecimento de posições não será facilmente revertido. Apenas nesta semana, tornou-se pública a notícia de que a ByteDance (TikTok) – outra gigante da tecnologia chinesa com alcance global – se dobrou a Pequim e “adiou” os planos para uma listagem nos EUA. Em toda a vasta paisagem China-Tech, há um esfriamento geral dos espíritos animais. Muitos dos “fundadores” viram o que aconteceu com Jack Ma e estão se afastando, diminuindo sua visibilidade. As empresas chinesas de tecnologia entenderam a mensagem.
A questão lateral relacionada a DiDi é: onde estava a “devida diligência” neste negócio? Parece claro que os reguladores chineses informaram a empresa sobre sua insatisfação com uma listagem “prematura”. Os bancos de investimento deveriam ter previsto isso. Para os investidores, perder US$ 23 bilhões em valor antes dos “cheques serem compensados” (por assim dizer) é uma grande falta.
“Não divulgar o conhecimento prévio das decisões regulatórias que movimentam o mercado pode tornar a Didi e os bancos que organizaram a oferta pública inicial – Goldman Sachs, Morgan Stanley e JPMorgan Chase – vulneráveis a processos judiciais de investidores e problemas regulatórios nos Estados Unidos.”
Se o resultado dessa tendência for a desconexão substancial do setor privado da China com Wall Street – seja devido à aplicação das exigências regulatórias sob as leis norte-americanas ou de novas regulamentações chinesas que desencorajam as empresas a se listar em Nova York – o grande o perdedor será a China e as empresas do país. Isso aumentará seu custo de capital, diminuirá a liquidez, aumentará a volatilidade de suas ações e, provavelmente, aumentará o “desconto da China” em avaliações. Isso prejudicará as aspirações geopolíticas de Pequim de desempenhar um papel mais amplo no sistema financeiro global, que depende da disposição a cumprir regras internacionais.
Tudo isso tem ficado claro para o mercado. O Índice Golden Dragon caiu 37% nos últimos cinco meses, devido ao aumento da pressão regulatória. O índice S&P 500 subiu 10% nesse período – então o resultado líquido é que as ações chinesas em Nova York caíram pela metade em relação ao nível geral de Nova York – configurando definitivamente um mercado em baixa para as ações chinesas.
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