No outono de 2016, o mundo das criptomoedas estava agitado com a criação de um novo tipo de criptoativo, o zcash.
Ao contrário do bitcoin, que foi projetado para ser completamente transparente e rastreável, o zcash foi desenvolvido para ocultar todas as informações de uma transação financeira, incluindo não só os valores envolvidos, mas também as chaves públicas. Na prática, isso significa que olhos indiscretos não conseguem rastrear as criptomoedas quando elas trocam de mãos.
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Os desenvolvedores do zcash, da Zerocoin Electric Coin Company, sediada em Denver (no Colorado), usaram matemática de ponta que permitia a um indivíduo provar uma verdade, como a posse de uma determinada quantidade de criptomoedas, sem nem revelar qual era essa verdade – isso é chamado de prova de conhecimento zero. A matemática faria o trabalho, sem a necessidade de humanos.
No entanto, para iniciar o processo, essas provas precisavam de… humanos. A cerimônia de criação do zcash contou com seis indivíduos. Os participantes realizaram uma série de tarefas que deram origem a lascas da chave de criação privada, que, se unidas, permitiriam a impressão infinita de criptomoedas não rastreáveis.
Ao fim da cerimônia, que foi realizada em alguns locais ao redor do mundo em outubro de 2016, as chaves foram destruídas. Se apenas uma dessas seis pessoas destruísse sua parte da chave, a iniciativa já poderia se considerar bem-sucedida.
O que estava em jogo era um mundo onde os indivíduos pudessem gastar dinheiro de forma privada sem que os Estados ou grandes empresas os monitorassem – ou lucrassem com essas transações.
Logo após o chamado “bloco de gênese” que criou a blockchain de US$ 2,1 bilhões, cinco dos seis participantes da cerimônia revelaram suas identidades. Entre eles estavam Peter Van Valkenburgh, pesquisador do CoinCenter, e o desenvolvedor de bitcoin Peter Todd. Mas a sexta pessoa, usando o pseudônimo de John Dobbertin, permaneceu desconhecida até hoje, quando Edward Snowden confirmou seu papel em um pequeno vídeo compartilhado com a Forbes.
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“Quando olhamos para a criptomoeda”, disse Snowden na gravação, que foi feita para um documentário da Zcash Media sobre a história do projeto, “geralmente vemos suas propriedades criptográficas sendo usadas para garantir que seja um ledger (livro-razão onde ficam registrados os blockchains) justo, mas não que tenha sido usado para garantir a privacidade.”
“O bitcoin é famoso por ser um livro aberto. O problema disso é que você não pode ter um comércio verdadeiramente livre a menos que tenha que ser privado. E você não pode ter uma sociedade livre sem livre comércio.”
O interesse de Snowden pela tecnologia de proteção de privacidade chamou a atenção de Zooko Wilcox, cofundador e CEO da Electric Coin Company, que viu o ativista falar sobre o assunto em um evento virtual no Bard College.
Lá ele descreveu o papel da tecnologia de privacidade, como o navegador de internet TOR, que não releva identidades. Wilcox estava procurando pessoas que já tivessem práticas de privacidade rigorosas e diárias para participar da cerimônia de criação do zcash.
E quem melhor do que Snowden, o ex-funcionário da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) que vazou 9 mil documentos oficiais, grande parte deles com informações sobre os Estados Unidos espionando seus próprios cidadãos, antes de fugir em junho de 2013 e se refugiar em Moscou?
Wilcox procurou Marcia Hofmann, uma veterana de longa data da Electronic Frontier Foundation, o influente grupo de liberdades civis da internet, que conectou os dois.
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No outono de 2016, Wilcox instalou um computador em uma propriedade alugada no Colorado, onde podia personalizar os recursos de privacidade para garantir que não houvesse bisbilhoteiros na conversa.
Quando Snowden apareceu pela primeira vez na tela, Wilcox ficou impressionado. “As revelações de Ed foram realmente para as defesas e a infraestrutura segura que eu estava tentando construir para a sociedade”, diz Wilcox. “Suas revelações mostraram às pessoas que eu estava certo o tempo todo.”
Depois que Wilcox se recompôs e abordou algumas das preocupações de Snowden sobre a privacidade do zcash, os dois concordaram em trabalhar juntos. Wilcox deu a ele o pseudônimo de John Dobbertin como uma homenagem a Hans Dobbertin, o falecido criptógrafo alemão mais conhecido por encontrar erros em algoritmos criptográficos. Além dos pseudônimos, Wilcox exigiu que o hardware usado na cerimônia fosse “air-gapped”, o que significa que nunca foi conectado à internet.
O trabalho de espionagem de Snowden ajudou em uma pequena mas importante parte da cerimônia. Wilcox diz que Snowden o apresentou ao conceito da CIA de “compras aleatórias”, ou compra espontânea de hardware em locais que nem o comprador imaginaria usar. Wilcox levou o conselho tão a sério que exigiu que os participantes adquirissem os equipamentos dessa forma. Ele diz que Snowden também usou um disfarce simples, mas eficaz, ao comprar um computador novo para a cerimônia do zcash na Rússia.
“Quando ele sai pelas ruas de Moscou, se está de óculos, as pessoas o reconhecem”, diz Wilcox. “E se ele simplesmente tirar os óculos, ninguém sabe quem é. Então ele tirou os óculos para fazer uma compra aleatória em uma loja de informática.”
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O dinheiro parece estar fluindo para moedas de privacidade devido à guerra na Ucrânia e a uma votação do Parlamento Europeu que poderia fechar exchanges não regulamentadas e exigir verificação até de pequenas transações financeiras.
Desde 24 de fevereiro, quando Putin invadiu a Ucrânia, o zcash subiu 67%, para US$ 147, enquanto o bitcoin subiu apenas 9% no mesmo período. Ao todo, existem 90 criptomoedas voltadas para a proteção de privacidade – incluindo o monero, o principal concorrente do zcash, que tem um valor de mercado de US$ 4,1 bilhões. Ao todo, o mercado de criptomoedas de privacidade (“privacy coins”) vale cerca de US$ 11,3 bilhões, de acordo com a CoinMarketCap.
Antes do anúncio de hoje (28), Snowden já havia falado publicamente sobre as criptomoedas de privacidade. Em um tweet em setembro de 2017, ele chamou o zcash de “a alternativa mais interessante” ao bitcoin. Em outro post, de fevereiro de 2019, ele esclareceu que não foi pago para apoiar o zcash, algo que Wilcox reiterou.
Ainda neste mês, Snowden falou no evento de lançamento da moeda de privacidade Nym, em Paris, onde culpou muitos dos problemas de privacidade de hoje em decisões que foram tomadas em 1970 sobre como as redes globais de computadores são estruturadas.
“A privacidade do bitcoin ainda é um desastre. Todo mundo está ciente disso”, disse Snowden em um outro vídeo da conferência Nym, fornecido com exclusividade à Forbes. “Eu conversei com os principais desenvolvedores de exchanges, eles sabem disso. E há propostas de melhoria por aí. Mas isso está acontecendo lentamente. Eu penso que, neste momento, há um medo de consertar o problema, que é o principal do bitcoin hoje. Não há questão mais importante do que corrigir as fraquezas dos registros.”
Dois anos após a cerimônia original, Snowden usou a identidade Dobbertin novamente para participar de uma cerimônia muito mais detalhada – e mais segura – que envolveu 88 pessoas. Cada participante escolheu seus próprios protocolos de segurança. Snowden, profissionalmente cauteloso, optou por usar um pendrive separado para cada etapa do processo.
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“Quando eles viram que precisavam de muitas pessoas em muitos lugares, todos cooperando na esperança de que apenas um deles não fosse comprometido, e que isso era necessário para que a cerimônia fosse bem-sucedida, fiquei feliz em dizer com firmeza que iria ajudar”, disse Snowden, no vídeo do zcash. “Mas o melhor cenário seria remover completamente a necessidade de uma cerimônia.”
E foi exatamente isso que aconteceu. O momento da revelação de Snowden não foi escolhido ao acaso. Wilcox está lançando uma atualização de software chamada Halo, que, graças a um avanço matemático do engenheiro da Electric Coin Company, Sean Bowe, elimina completamente a necessidade dessas cerimônias.
Desde que ficasse claro que ele não tinha sido pago, Snowden pensou que era uma boa hora para revelar sua participação no projeto.
“A primeira geração da tecnologia precisava desse tipo de cerimônia de configuração e precisávamos torná-la segura para que hackers norte-coreanos ou de qualquer outro lugar não pudessem nos explorar”, diz Wilcox. “A partir do lançamento da próxima geração do zcash, superamos esse estágio da evolução humana.”