Sentada em um banco de madeira em um vilarejo remoto em Ruanda, uma mulher de 47 anos chamada Esther, mãe de três filhos, explica como irá gastar mais de 850.000 francos ruandeses, aproximadamente US$ 850 (R$ 4,6 mil) – equivalente a mais de um ano de salário.
Essa quantia, que muda uma vida, foi em forma de uma doação paga em dois meses pela GiveDirectly, organização sem fins lucrativos com sede em Nova York.
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“Ela vai comprar uma fazenda”, diz um tradutor a um pequeno grupo de doadores e jornalistas durante uma videochamada no início de junho para mostrar os resultados das operações da GiveDirectly no país.
Com isso, Esther pretende cultivar alimentos para ela e sua família. Como a grande maioria das 100 pessoas em sua aldeia, ela sobrevive da agricultura. Um funcionário da organização entrega um maço de instruções sobre o que ela pode fazer para receber o pagamento pelo celular.
Fundada em 2009, a GiveDirectly tem como objetivo inscrever todas as famílias da vila de Esther em seu programa de transferência direta de dinheiro, alcançando as pessoas que normalmente vivem com menos de US$ 2,00 (R$ 10,94) por dia. Os valores geralmente são distribuídos em duas parcelas mensais.
Essa ação de doar dinheiro para pessoas em situação de extrema pobreza ganhou destaque nos últimos dois anos, com contribuições de um grupo de filantropos bilionários do setor de tecnologia e também da comunidade de criptoativos.
Entre os ricos que contribuem com GiveDirectly estão MacKenzie Scott, ex-esposa do fundador da Amazon, Jeff Bezos, que doou US$ 125 milhões (R$ 681,4 milhões) desde 2020; o bilionário fundador da FTX Sam Bankman-Fried, de 30 anos; O CEO da Tesla e a pessoa mais rica do mundo, Elon Musk, e o ex-CEO do Twitter Jack Dorsey, também bilionário.
Em grande parte como resultado dessa generosidade, as doações para a organização saltaram de US$ 42 milhões (R$ 228,9 milhões) em 2019 para US$ 303 milhões (R$ 1,6 bilhões) em 2020, um aumento de mais de 600%. Isso fez da GiveDirectly, segundo seus cálculos, a organização sem fins lucrativos que mais cresceu no mundo em 2020.
Para a entidade, dar dinheiro aos pobres os capacita a atender suas próprias necessidades específicas, mantendo sua dignidade intacta. Com outros tipos de ajuda, “todo mundo recebe a mesma coisa”, disse o presidente e cofundador da GiveDirectly, Michael Faye, à Forbes.
“E a realidade é que as pessoas não são as mesmas. Acabei de voltar do Malawi e em uma aldeia uma família decidiu alimentar seus filhos recém-nascidos e outra escolheu colocar um teto sobre suas cabeças. Suas necessidades são realmente diferentes”, explica ele.
A organização sem fins lucrativos opera em sete países africanos: Quênia, Uganda, Ruanda, Libéria, Malawi, República Democrática do Congo e Marrocos. Todos têm grandes populações vivendo em extrema pobreza.
Como muitas aldeias rurais não têm telefones celulares, a GiveDirectly fornece telefones celulares muito simples, que normalmente custam US$ 14 (R$ 76) e são deduzidos de sua doação em dinheiro. No total, a entidade diz que distribuiu mais de US$ 550 milhões (R$ 2,9 bilhões) em dinheiro para mais de 1,25 milhão de famílias que vivem na pobreza desde 2009.
A GiveDirectly também administra programas menores de dinheiro direto fora da África. No Iêmen, onde a guerra civil contribuiu para uma crise humanitária catastrófica e níveis terríveis de fome, a organização está arrecadando dinheiro para iniciar um programa de transferência de dinheiro para pelo menos 4.200 famílias a partir de agosto.
No Quênia, a organização sem fins lucrativos está experimentando a renda básica universal (UBI), fornecendo transferências mensais aos beneficiários ao longo de cinco anos.
Nos Estados Unidos, a GiveDirectly iniciou as operações em 2017 para os texanos afetados pelo furacão Harvey. Agora, está atuando em um programa UBI na Geórgia (US$ 850 [R$ 4,6 mil] mensais para 650 mulheres ao longo de dois anos) e foi selecionada no início deste ano para administrar o piloto de renda básica de Chicago, que é financiado por uma subvenção federal. Ela começou a distribuir pagamentos mensais de US$ 500 (R$ 2,7 mil) para 5 mil habitantes de baixa renda de Chicago no mês passado.
Grande parte do aumento nas doações está ligada à pandemia de Covid-19, quando a filantropia saiu de uma intervenção relativamente desconhecida para uma realidade.
Mais de 200 governos em todo o mundo implementaram programas de dinheiro em resposta à crise pandêmica, incluindo os EUA, que Faye diz legitimar o dinheiro de uma maneira nunca vista antes.
Em abril de 2020, quando a GiveDirectly lançou o Project 100+, seu programa de estímulo durante a Covid-19 financiado por doações privadas, o dinheiro começou a chegar. Quando a iniciativa terminou, lá em outubro de 2021, a entidade havia distribuído US$ 200 milhões (R$ 1 bilhão), distribuindo pagamentos de US$ 1 mil (R$ 5,49 mil) para quase 200 mil famílias nos EUA e Ruanda.
“Acho que a Covid basicamente nos forçou a perguntar: o que você quer? O que a pessoa que você vai ajudar quer? E muita gente chegou à conclusão de que gostaria de fazer suas próprias escolhas. Eles queriam dinheiro”, diz Faye.
Um número crescente de bilionários tem a mesma ideia. Desde 2020, Scott doou US$ 125 milhões (R$ 687 milhões) para o grupo de ajuda em vários presentes, sua quarta maior doação para uma única organização. Faz sentido que ele doasse seu dinheiro para a GiveDirectly, já que ela também faz doações sem compromisso.
O cofundador do Facebook, Dustin Moskovitz, autointitulado altruísta eficaz com valor estimado de US$ 10,5 bilhões (R$ 57,2 bilhões), doou US$ 58 milhões (R$ 316 milhões) à entidade desde 2012, por meio de sua fundação Good Ventures.
Os fundadores da startup de design gráfico Canva, Melanie Perkins e Cliff Obrecht, estão doando US$ 10 milhões (R$ 54,5 milhões) para lançar um projeto piloto para transferências de dinheiro no Malawi, o maior programa no país até o momento. O objetivo é dar US$ 50 (R$ 272) por mês a mais de 12 mil pessoas durante 12 meses e expandir o programa depois disso.
Doação de criptomoedas
No auge do boom das criptomoedas em fevereiro de 2021, Musk enviou à GiveDirectly US$ 10.000 (R$ 54,5 milhões) em Dogecoin. No estilo típico de Musk, ele anunciou a doação em uma resposta casual no Twitter.
“Acabei de enviar alguns”, respondeu Musk ao fundador da Ethereum, Vitalik Buterin, que também twittou que doou para a mesma entidade.
Um mês depois, Dorsey vendeu uma NFT de seu primeiro tweet e doou 100% dos lucros, no valor de US$ 2,8 milhões (R$ 15,2 milhões), para a GiveDirectly. Isso foi além de uma doação de US$ 10 milhões (R$ 54,5 milhões) para o Projeto 100+ feito um ano antes.
Nem Musk nem Dorsey responderam aos pedidos de comentários da Forbes sobre suas doações para a GiveDirectly.
O rei da criptomoeda Bankman-Fried, fundador da exchange FTX, doou US$ 500 mil (R$ 2,7 milhões) por meio da FTX Foundation. A organização se enquadra perfeitamente na abordagem do jovem bilionário de doar sua fortuna como um altruísmo eficaz, uma filosofia em que os adeptos usam dados e raciocínio para tentar maximizar os benefícios da filantropia.
“É uma das maneiras mais eficientes de melhorar a vida das pessoas”, diz Bankman-Fried em um email.
Fundação da GiveDirectly
Foi em 2009 que Faye fundou a GiveDirectly ao lado de seus amigos e colegas economistas Paul Niehaus, Rohit Wanchoo e Jeremy Shapiro. Faye e Wanchoo foram analistas de pesquisa nas Nações Unidas em 2002.
Depois disso, ele passou a estudar economia na pós-graduação da Universidade de Harvard, onde conheceu Niehaus e Shapiro, ambos também doutorandos na área.
Depois de ler estudos sobre a eficácia das transferências de dinheiro, os amigos queriam encontrar uma instituição de caridade que permitisse a qualquer pessoa dar seu dinheiro diretamente aos pobres.
Eles não conseguiram encontrar, então decidiram começar o seu próprio. A capacidade de enviar dinheiro às pessoas em seus telefones tornou a ideia viável.
“O que não existia era um canal de ponta a ponta para um doador transferir dinheiro para alguém que vive em extrema pobreza. E havíamos procurado por isso inicialmente”, diz Faye.
No entanto, a GiveDirectly não inventou essas transferências de dinheiro. Os governos do México e do Brasil fizeram experiências com eles na década de 1990, embora esses programas fossem diferentes, pois os beneficiários só recebiam o dinheiro se enviassem seus filhos para escolas e clínicas de saúde.
Os governos da América Latina, Ásia e África ainda replicam esse modelo, com muitos ainda mantendo algum tipo de condição. A GiveDirectly também não foi o primeiro grupo de ajuda humanitária a implementar dinheiro sem compromisso. Degan Ali, diretora executiva da Adeso, uma ONG sediada em Nairóbi, também iniciou um programa de transferência incondicional de dinheiro na Somália em 2003.
Primeiramente, ela fez a sugestão por conta do Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU estar distribuindo, na época, alimentos que não se alinhavam com a política local.
“A comida que o PAM estava dando a essas pessoas estava sendo dada ao gado pelos destinatários”, diz ela. “Eles não estavam conseguindo comer porque estavam dando-lhes grãos, como milhos. E eles não comem isso. Eles comem arroz e macarrão.”
Ali acrescenta que a ajuda humanitária ocidental tem uma história feia e racista de demolir as necessidades locais em favor de soluções que, na verdade, não funcionam.
Eventualmente, ela diz que gostaria de ver os cidadãos prosperarem por conta própria, em vez de depender de organizações estrangeiras como a GiveDirectly. “Em algum momento, você precisa fazer a transição das transferências e descobrir como conseguir emprego de longo prazo para as pessoas”, diz ela.
Para doadores que priorizam a eficiência como o Bankman-Fried, a GiveDirectly é transparente sobre a proporção de cada dólar que vai diretamente para os destinatários — 94% em todos os seus programas.
Os programas de dinheiro contornam a burocracia do governo e o custo de administração é normalmente mais baixo do que outros tipos de programas de ajuda.
A GiveDirectly também tem custos indiretos mais baixos do que outras instituições de caridade de desenvolvimento internacional, como Save the Children e World Vision.
Além disso, o dólar norte-americano também vai mais longe na África. Os US$ 850 de Ether mal são suficientes para pagar aluguel mensal nos EUA, mas, em Ruanda, é o suficiente para comprar uma fazenda.
O que dizem os estudos
A totalidade dos estudos sobre transferências diretas de renda mostram que a ação é positiva. A GiveDirectly, inclusive, lista mais de 300 pesquisas como essa em um banco de dados disponível em seu site.
“A ideia de que os pobres são meio irresponsáveis e que, se receberem dinheiro, será desperdiçado ou bebido, foi derrubada”, ressalta Craig McIntosh, professor de economia da Universidade da Califórnia, em San Diego, que estuda o impacto dos programas de transferência de dinheiro.
Um estudo revisado por pares de coautoria de McIntosh, e publicado este mês no Journal of Development Economic, descobriu que as transferências incondicionais de dinheiro da GiveDirectly eram mais eficazes do que um programa de treinamento no local de trabalho da USAID para jovens ruandeses desempregados.
Outros estudos revisados por pares mostraram que as transferências de dinheiro melhoram o bem-estar e os resultados econômicos.
Pesquisas nos EUA, no entanto, mostraram resultados mais mistos. Pesquisadores da Universidade de Michigan publicaram dois artigos no início deste ano que descobriram que o programa de transferência de dinheiro pandêmico da GiveDirectly teve pouco ou nenhum impacto nos beneficiários de baixa renda.
Outro artigo publicado em junho por pesquisadores de Harvard descobriu que transferências em dinheiro de US$ 500 e US$ 2 mil não tiveram impacto nos destinatários 15 semanas depois.
Os pesquisadores até pensaram que conseguir algum dinheiro não seria suficiente para atender às suas necessidades, e na verdade fazia as pessoas se sentirem piores porque tornava seus problemas mais aparentes.
Tyler Hall, diretor de comunicações da GiveDirectly, diz que os resultados significam que os pesquisadores “têm que estudar sobre a melhor forma de projetar os programas dos EUA para ter o maior impacto”.
“A soma das pesquisas que vimos até agora sobre transferências de renda nos Estados Unidos ainda sugere que há impactos positivos significativos para as pessoas em situação de pobreza. Alguns resultados nulos ou negativos recentes dos Estados Unidos não significam que a ajuda em dinheiro seja ineficaz aqui”, acrescenta.
Porém, não há muita pesquisa sobre os impactos de longo prazo das transferências incondicionais de dinheiro em áreas pobres.
Existem vários estudos que documentam resultados duradouros de três a cinco anos após a transferência, mas não muito além disso. “Está claro que os efeitos se dissipam com o tempo, mas quão totalmente eles se dissipam, isso é algo sobre o qual ainda há discussão”, diz McIntosh.
“Acho que está claro que há poucas circunstâncias em que transferências de dinheiro únicas por si mesmas realmente permitem que as pessoas escapem da pobreza.”
Faye reconhece que pagamentos não são remédios para os pobres do mundo, e que a GiveDirectly não resolve diretamente questões estruturais que contribuem para a pobreza global, uma crítica comum às transferências de dinheiro.
“As transferências não devem ser a única coisa que alguém pode fazer”, diz Faye. “As transferências de dinheiro não teriam descoberto uma vacina contra a Covid. As transferências de dinheiro não constroem estradas nem protegem fronteiras e o que quer que você queira fazer em nível de governo público. Portanto, precisamos reconhecer as limitações do dinheiro.”
Ainda assim, Faye tem grandes ambições para a entidade. “A quantidade de dinheiro que seria necessária para acabar com a pobreza extrema é pequena e acho que devemos construir os canos para isso.”