As semanas de expectativa pelo pacote fiscal terminaram em decepção para o mercado financeiro. Após o anúncio de algumas das medidas e a intenção de isentar quem recebe até R$ 5 mil do Imposto de Renda, o dólar à vista ultrapassou a casa dos R$ 6 em termos nominais e a curva de juros passou a projetar uma Selic próxima dos 15%.
Se antes o pacote fiscal representava a esperança de que a confiança nas contas públicas seria reconquistada — ancorando as expectativas de inflação e impedindo uma alta mais expressiva da Selic e do dólar —, agora parece que o problema é maior do que o inicial.
Para Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management, a pressão nos juros e no câmbio está longe de ser uma reação exagerada do mercado. Em entrevista à Forbes Brasil, a economista aponta que há uma crise de credibilidade em que a regra fiscal desenhada pelo arcabouço não se sustenta no médio prazo.
“O que deveria fazer o mercado melhorar é uma robustez maior das medidas, mas elas já foram anunciadas pelo governo. Não dá para esperar que o Congresso ‘aperte’ mais e nem acho que tenha espaço político para o Haddad anunciar uma segunda leva de projetos”, aponta.
Embora o governo prometa uma redução de gastos na casa dos R$ 70 bilhões nos próximos dois anos, Srour vê o número com ceticismo. Para a economista, quando se analisa o pacote ponto a ponto, as medidas não parecem compatíveis com o valor divulgado pelo governo.
Segundo cálculos do UBS Global Wealth Management, o valor final deve ficar entre 50% e 60% do total anunciado. Um número insuficiente para garantir que as contas públicas sigam uma trajetória sustentável no médio e longo prazo.
A possibilidade de que o total seja ainda menor não é descartada, já que o texto ainda deve ser aprovado pelo Congresso e corre o risco de sofrer desidratação ou ser apenas parcialmente contemplado.
Por dentro do pacote fiscal
Srour explica que havia grande expectativa que as medidas anunciadas pudessem, de fato, trazer mudanças estruturais para os gastos públicos, como mudanças no seguro-desemprego, uma alteração mais expressiva no abono salarial e a desindexação de parte dos gastos com saúde e educação.
Confira algumas das principais medidas anunciadas pelo governo:
- Isenção de imposto de renda para pessoas que recebem até R$ 5 mil mensais. Em contrapartida, o governo sugere um imposto mínimo de 10% para aqueles que ganham mais de R$ 50 mil mensais.
- O salário mínimo passará a ter um limite de reajuste de 2,5% acima da inflação. Antes, o cálculo era baseado no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)
- O pagamento do abono salarial deve ser restringido ao teto de R$ 2.640 — dois salários mínimos e meio. Atualmente, o benefício é destinado aos trabalhadores que possuem uma média salarial de até dois salários mínimos mensais, equivalente a R$ 2.824.
- Aumento no piso de renda para o Benefício de Prestação Continuada (BPC), voltado para pessoas com deficiência de baixa renda.
- Novas restrições para o pagamento do Bolsa Família, como biometria obrigatória e cruzamento de informações capazes de prevenir fraudes
- Reforma na previdência militar, com aumento da idade mínima para a reserva remunerada e fim de benefícios atualmente vigentes.
Os problemas do pacote fiscal
Para a economista, o pacote deixou a desejar em duas frentes principais: a falta de robustez das reformas e a sugestão de isenção de IR. Dois elementos que podem colocar em risco o arcabouço fiscal para além de 2026.
“A nova regra do salário mínimo ajuda e é melhor do que a regra atual, mas ainda é muito pouco. Já a mudança no abono salarial só vai ser efetiva de 2027 para frente, com uma mudança muito gradual. Ainda que o arcabouço fiscal se sustente até 2026 com as medidas anunciadas hoje, ele não se sustenta para além disso”, explica Srour.
Com relação ao IR, o cálculo do governo de que a medida custará cerca de R$ 35 bilhões contradiz os cálculos do mercado de que o custo para a isenção é de R$ 45 bilhões.
Ela aponta dois malefícios da proposta. A primeira é a possibilidade de que ela atrapalhe a tramitação no Congresso, já que os congressistas se mostram reticentes em aumentar a carga tributária e sinaliza que o governo “não está tão preocupado em trazer superávits primários para estabilizar a dívida”.
“Essa economia que o governo está esperando é considerando medidas administrativas que farão um pente fino em programas sociais, uma espécie de pente fino. Se a gente considerar que isso não vai ser tão efetivo, a economia fica em cerca de R$ 40 e poucos bilhões em 2 anos. Isso é um grande problema. Em algum momento a despesa discricionária vai clamar por ser mais alta e o arcabouço vai desmoronar”.
Outra cobrança é a falta de detalhamento sobre as contrapartidas fiscais para compensar a isenção. Até agora, o governo não detalhou completamente como funcionará a nova tabela do imposto de renda.
“Eu não consigo dizer se a proposta vai se pagar, mas o mercado desconfia que não. O Congresso é muito avesso a hoje aumentar a carga tributária. Muito provavelmente você pode ter uma perda de arrecadação pelos R$ 5 mil que não será contrabalanceado. É uma amostra de que a política está ganhando da economia”.
Para a economista do UBS, a crise de credibilidade mancha o trabalho da equipe econômica que, em muitos momentos, lutou pelo equilíbrio fiscal com mais afinco do que o Executivo. Um sinal de que Haddad pode ter perdido a guerra.
Apesar da decepção, Srour aponta que a nova regra imposta para o salário mínimo veio melhor do que o esperado pelo mercado, mas essa foi a única surpresa positiva do anúncio.
O pior já passou?
A superação da marca psicológica dos R$ 6 pode, para muitos, parecer como o “fundo do poço” da deterioração dos ativos brasileiros. Mas, enquanto a tramitação estiver andando no Congresso e não se souber ao certo o tamanho do pacote fiscal, pode ser que o dólar e os juros sigam mostrando sinais de cautela.
“Não sei se vai piorar mais, mas não vejo espaço para melhorar. É muito difícil dizer que a piora vai estancar hoje com o dólar a R$ 6. Tudo vai depender muito das notícias agora sobre a tramitação no Congresso, como a oposição vai receber isso, se eles vão atropelar ritos para votar isso o mais rápido possível ou não”, aponta.
A marca de R$ 6 pode até pressionar os congressistas a adotarem medidas mais austeras, mas ainda é cedo para medir a temperatura das discussões políticas que devem se desenrolar ao longo dos próximos meses.
Com a curva de juros precificando uma Selic perto da casa dos 15%, ela aponta que, se nada mudar, as expectativas de inflação devem seguir se deteriorando.
Apesar da possibilidade de que o câmbio se desvalorize ainda mais, Srour não acredita que seja tarefa do Banco Central estancar a sangria do Real, já que essa movimentação poderia aumentar a crise de credibilidade fiscal e monetária.
“Esse movimento é uma deterioração dos fundamentos econômicos. Intervir no mercado nessas situações não gera nenhum tipo de mudança de comportamento do câmbio. Ele vai continuar se depreciando e se o BC intervir, vai ficar parecendo que não está querendo subir juros”, conclui.