Por mais de 20 anos, Camaçari — cidade baiana com cerca de 300 mil habitantes e o maior polo industrial do estado — foi casa para a Ford. E que casa! Não muito distante da Avenida Henry Ford, a planta com quase 5 milhões de metros quadrados era uma das principais fábricas da empresa no Brasil.
Em 2021, a decisão da Ford em sair do país trouxe impactos econômicos para a cidade. Cerca de 60 mil funcionários diretos e indiretos foram afetados pelo fechamento da fábrica e a arrecadação com impostos na cidade despencou em 10%. Após um ano do fechamento, cerca de R$ 20 milhões mensais deixaram de circular por ali, afetando toda a infraestrutura na região.
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Em 2023, a fabricante chinesa de carros elétricos BYD decidiu comprar a planta abandonada do governo da Bahia por R$ 288 milhões com a promessa de fazer do local mais do que uma mera montadora — o objetivo é transformar o local em um polo tecnológico e exportador para além-fronteiras. Sai a indústria tradicional e entra em cena o pujante mercado de carros elétricos.
No início do mês, a Forbes Brasil visitou a fábrica de Camaçari a convite da BYD. Dos maquinários e galpões anteriormente utilizados pela Ford, nada será reaproveitado. A justificativa da empresa chinesa é que a tecnologia empregada pela companhia não é compatível com a infraestrutura abandonada.
Os primeiros carros só começarão a ser produzidos em março de 2025, mas a companhia segue dobrando a sua aposta no Brasil. Em meio a um galpão de produção recém construído e ainda reluzente, Stella Li, CEO para Américas e Europa e vice-presidente executiva global da BYD, anunciou a meta de, até o fim de 2026, contratar 20 mil pessoas diretamente. A promessa de que “Camaçari se tornará o Vale do Silício brasileiro” também foi repetida diversas vezes ao longo de seu discurso.
Montadoras e o governo brasileiro costumam ter uma história de amor e ódio. Enquanto existem benefícios fiscais ou outros subsídios, as fábricas se instalam em diversas localidades e movimentam a economia local. Quando a fonte seca, o amor vira indiferença e os parques industriais — assim como o da Ford — são abandonados.
Em entrevista à Forbes, Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da BYD no Brasil e chefe comercial e marketing da BYD Auto, nega que a companhia seguirá por esse caminho. “ Nossa abordagem é diferente e profundamente enraizada no Brasil. Com um investimento de R$5,5 bilhões e a construção de um complexo fabril em Camaçari, estamos consolidando nossa presença de longo prazo. Diferentemente de outras marcas, nosso compromisso vai além da fabricação de veículos: somos uma greentech que investe em pesquisa, desenvolvimento e na cadeia de valor local”, declara o executivo, que foi ministro das Cidades no governo Michel Temer.
Não é tão fácil
O cenário global, no entanto, se mostra adverso — e desafiador para o setor. Enquanto regiões como a China, Europa e Estados Unidos vivem uma disputa acirrada pelo mercado consumidor, uma guerra de preços começa a se formar. Algumas montadoras tradicionais estão cortando custos devido à concorrência e falta de competitividade, e grandes nomes do mercado — como Nissan e Honda — até estudam uma eventual fusão.
No Brasil, a barreira a ser enfrentada é a da adoção. O país ainda possui pouca infraestrutura para carros elétricos e o preço segue sendo pouco convidativo para uma popularização em larga escala — com os modelos mais populares começando na casa dos R$ 100 mil. Isso assusta a BYD? Nem um pouco.
Baldy acredita que o cenário para veículos elétricos no Brasil e na América Latina é promissor, já que o país se destaca por uma maior conscientização ambiental e o interesse em tecnologias sustentáveis. Além disso, o executivo aponta que, com uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, o Brasil apresenta as condições ideais para a eletrificação de sua frota.
“Quando falamos em competição de mercado, acreditamos que a concorrência é essencial para acelerar essa transição. Nossa chegada ao Brasil marcou uma grande mudança, trazendo carros mais tecnológicos e acessíveis. Isso gera um impacto direto nos preços e na estratégia dos concorrentes, o que beneficia os consumidores”, declarou.
De olho na “falta” de mercado consumidor, o governo da Bahia e diversos outros estudam medidas de isenção de impostos para estimular o consumo.
Para atacar os pontos frágeis no momento, os executivos apontam que a BYD está “está comprometida em tornar a mobilidade elétrica acessível”, Com relação à falta de infraestrutura, a empresa fechou uma parceria com a Raízen para a instalação de 600 carregadores de alta velocidade em diversas cidades do país — é um começo, mas ainda pouco para um país de dimensões continentais onde a maior parte dessas estruturas estão localizadas em grandes capitais do Sudeste.
O vice-presidente sênior da BYD no Brasil afirmou que a companhia entende que a transição para veículos elétricos exige não apenas avanços tecnológicos, mas também políticas públicas que promovam a reindustrialização com foco em novas tecnologias e infraestrutura sustentável.
“Essa transição é mais do que uma mudança tecnológica; é a adoção de uma nova mentalidade e práticas que integram sustentabilidade e inovação ao cotidiano dos brasileiros. Cada carregador instalado e cada carro elétrico circulando pelas ruas simboliza um passo significativo rumo a um planeta mais habitável”, conclui
DNA brasileiro
A grande aposta da BYD para conquistar o público brasileiro, no entanto, está no primeiro motor híbrido-flex do mundo, apresentado no evento em Camaçari. O modelo combinará eletricidade com o etanol — um combustível com DNA brasileiro.
Em conversa com a Forbes, Stella Li aponta que a fábrica de Camaçari é “parte central da visão da BYD de transformar o Brasil em um hub de inovação, comparável ao Vale do Silício”, com fomento de pesquisa e conhecimento em solo nacional.
“Nossa primeira missão já foi cumprida, com o anúncio do nosso motor híbrido-flex que vai combinar eletricidade com o etanol, um combustível verde amplamente produzido no Brasil. Essa tecnologia, desenvolvida em parceria com engenheiros brasileiros e chineses, reflete nosso compromisso em adaptar soluções às necessidades locais”, aponta a executiva chinesa.
Questionado se o motor com características brasileiras seria um atestado do compromisso de longo prazo com o Brasil, Baldy concorda: “Mais do que um produto tecnológico, essa inovação reflete nossa visão de longo prazo, com foco no pertencimento ao país e no desenvolvimento sustentável”.
Inicialmente, o novo motor será utilizado no modelo BYD Song Pro. A expectativa é que, com o etanol se expandindo para outros mercados, a tecnologia possa ser empregada em outros países.
Para tornar o seu produto competitivo na América Latina, a BYD quer aproveitar os acordos comerciais do Brasil com outros países da região, como o Mercosul, para tornar a fábrica de Camaçari uma planta de exportações. Segundo Li, a fábrica será o ponto de partida para expandir a presença da marca, garantindo competitividade e sustentabilidade e sendo central para o fornecimento de energia limpa, carros e insumos.
Dentre outros projetos da empresa no Brasil estão ônibus, caminhões e sistemas ferroviários, como o SkyRail, monotrilho da linha 17-Ouro do metrô de São Paulo e a produção de módulos fotovoltaicos para energia solar.