Rachel Maia, de 48 anos, sempre sonhou em voar alto. Quando menina, ouvia as histórias que seu pai trazia da rotina na extinta Vasp e imaginava o dia em que daria suas primeiras instruções como comissária de voo. Trabalhar na aviação era um plano certo e traçado pela filha caçula de seu Antônio, que entrou como faxineiro e chegou ao cargo de supervisor da empresa, em uma carreira de 33 anos. Na adolescência, os primeiros sinais da determinação de Rachel surgiram quando tomou a decisão de procurar um emprego para custear os dois últimos anos do ensino médio em um colégio particular. Conseguiu um estágio no Banco do Brasil e, assim, pôde fazer o técnico contábil no Albert Einstein, escola na zona sul de São Paulo, região onde nasceu e foi criada, mais precisamente em Jordanópolis, ao lado dos seis irmãos. Eles cresceram com o hábito de ouvir muita música – de Adoniran Barbosa a BB King –, sentados em frente à vitrola, comendo biscoito de polvilho. O primogênito, contador, era outra de suas inspirações. “Sempre gostei de números, tinha muito prazer nas aulas de matemática”, relembra.
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Depois de formada, foi tratar de tirar sua licença de voo na Escola de Aviação Congonhas (Eacon), sem o consentimento do pai. Ao final do curso, havia sido aprovada para a bancada da Varig e de outra companhia aérea do Nordeste. “Mas ele queria que eu entrasse na faculdade de qualquer jeito. Ele dizia: ‘Caboclinha’ (como me chamava), ‘aqui em casa, filho meu faz o que peço: você vai estudar’.” Pronta para iniciar carreira na aviação, Rachel precisou arremeter voo, aos 21 anos. “Família sempre teve um peso muito grande para mim. Fui criada para respeitar meu pai.” Acatou o pedido contra sua vontade e passou no vestibular de Ciências Contábeis, na FMU. “Mas não fiz a inscrição, achava que ainda tinha chance de convencê-lo. Até que a faculdade ligou avisando sobre a última chamada. E quem atendeu o telefone? Meu pai. No dia seguinte, estava lá com ele me matriculando.”
Àquela altura, a executiva já cultivava o hábito de se mandar para fora do país com certa frequência e, dessa vez, foi passar um tempo em Miami com um dos irmãos, que se tornou piloto de avião, e em Nova York, onde concluiu seu primeiro aperfeiçoamento internacional (business executive). “Mas sempre fui muito namoradeira. Toda vez me dividia entre namoro e estudo”, revela. E emenda: “Pode colocar isso na matéria, tá? Não tem problema”, enfatiza Rachel, que está longe de se enquadrar no perfil de uma CEO inatingível. Durante a sessão de fotos para a Forbes, conversa com cada um da equipe, brinca, bebe energético, coloca música para tocar e, de repente, convida todos para o almoço. “O meu forte são pessoas”, explica ela, que, no alto de seu 1,83 metro olha nos olhos de seu interlocutor e fala com disposição sobre qualquer assunto.
PICADA PELO MERCADO DE LUXO
Quando retornou ao Brasil, sem dinheiro e atrás de um novo emprego, contratou um headhunter com o intuito de voltar para a Novartis ou ingressar no setor automotivo. “A indústria paga bem melhor que o varejo”, explica. O headhunter, no entanto, também a colocou numa concorrência da joalheria Tiffany & Co. “Ele precisava de uma mulher que falasse inglês entre os candidatos que apresentaria para a vaga de CFO da grife. Só que no Brasil, naquela época, não era fácil encontrar uma contadora, com experiência e que fosse bilíngue.” Rachel, no entanto, achava que não tinha ainda perfil para o cargo. “Ele me selecionou ‘para cumprir tabela’”, conta.
Estava enganada. A Tiffany se tornou sua casa por sete anos e meio. E mais: foi lá que fez a transição de CFO para o cargo de CEO. “Eu me apaixonei, fui picada pelo luxo. Tinha prazer em explorar esse universo e seduzir o consumidor, fazer com que ele comprasse o que eu queria”, explica. Clientes como Roberto Setubal e Antônio Ermírio de Moraes só entravam na Tiffany se fossem atendidos pela executiva. “Minha transição de carreira aconteceu ali. Na América Latina, colocar uma mulher na diretoria financeira, e representando a diversidade, era muito importante. Presidentes que são referências não só no Brasil queriam apenas ser atendidos por mim. Isso me empoderou, ver que as pessoas me reconheciam não só pela qualidade do atendimento, mas pela competência. Sou muito grata à marca por ter me introduzido nesse universo.”
Nos dois últimos anos em que esteve à frente da joalheria, Rachel conta que já havia sido sondada pela dinamarquesa Pandora, para tocar os negócios no Brasil. Declinou de três convites, um deles cara a cara com o presidente, Daniel Bensadon. Em 2010, recém-saída da Tiffany & Co., e após três meses fazendo um curso de negociação em Harvard, soube por seu headhunter que a posição ainda estava aberta. “Eu só pensava: ‘O Daniel não vai querer falar comigo, recusei o cargo na frente dele’”, relembra. Outro engano: Rachel se tornou diretora geral no mesmo dia da entrevista. Concorrendo com outros dois candidatos, ouviu do presidente: “O que me garante que você não vai me deixar na mão de novo?” Ela respondeu com toda a honestidade do mundo: “Preciso de dinheiro. Se acertar agora comigo, estou dentro”.
GRAVIDEZ IMPROVÁVEL
Oito meses depois, durante um almoço, tanto a executiva quanto o presidente tinham comunicados relevantes a fazer. “Na contratação, eu disse a ele que não poderia ter filhos porque tenho útero policístico, já estava até aguardando ser aprovada no processo de adoção. Mas acontece que fiquei grávida. Foi uma surpresa para nós dois”, relembra. Prestes a promovê-la a CEO, Bensadon disse: “Rachel, vida é bênção. Se você está feliz, eu estou feliz. Se quiser continuar comigo, quero continuar com você”. Ela já estava chorando quando ele perguntou: “Você vai continuar cuidando do meu negócio?” Rachel, então, deu sua palavra.
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A executiva costuma dizer que sua gravidez chegou como uma enxurrada. “Foi um choque. Eu tinha 40 anos, e tudo o que sabia até ali era que não podia ter filhos. Sempre quis ser mãe, mas estava preparada para adoção e não para uma gestação biológica”, conta. “Sempre fui muito organizada e planejada. E a gravidez, que seria a coisa mais importante da minha vida, não foi nada planejada”, lembra. Buscou, então, suporte na análise. O pai da filha, um amigo chileno com quem estava saindo, passava muito tempo fora. “Minha gravidez foi muito solitária”, diz. “Chegava em casa e chorava sozinha embaixo do chuveiro. Quando deitava na cama, faltava algo, queria um carinho na barriga. A terapia foi fundamental nessa fase. Precisei lidar com um turbilhão de sentimentos e com a responsabilidade de expandir a Pandora. Mas o show tinha que continuar.”
Vinte dias depois do nascimento de Sarah Maria, hoje com 8 anos, já estava de volta ao trabalho. Recebia a filha no escritório para amamentá-la. “Lembro de fazer reunião e meu peito começar a vazar. Pedia licença, tirava o leite e voltava. Naquele momento, eu era mãe da minha filha, mas também de um negócio que estava nascendo. O presidente tinha contratado uma mulher com o processo de adoção em andamento e que ficou grávida – e continuou me apoiando. Ele estava muito confortável comigo nesse quesito porque sabia que a minha dedicação estava sendo monstruosa. Aquela era minha retribuição.”
Em seus mais de oito anos presidindo a Pandora, Rachel transformou as duas primeiras lojas em mais de 108 pontos de vendas e, segundo ela, humanizou a marca. “Olhar e respeitar o próximo foi o ensinamento mais valioso que meus pais me deram, e levei isso para a minha vida profissional”, diz. Não à toa, o departamento de recursos humanos é o mais próximo da executiva. “Pessoas felizes fazem coisas felizes e conseguem reverberar. As infelizes não conseguem. Como CEO, é preciso prestar atenção no que acontece ao seu redor, saber quais são as informações genuínas e quais vão trazer transformação. Não podemos viver correndo. É importante parar, refletir, avaliar, escutar. Me classifico com uma boa maestra: saber as qualidades de cada um, misturar e fazer com que aquilo gere uma música harmônica.”
Rachel tem como mentora outra mulher poderosa: Luiza Trajano, do Magazine Luiza. Cinco anos atrás, ela fundou um grupo de CEOs mulheres – entre elas sua mentora, Fiamma Zarife, do Twitter, Paula Bellizia, da Microsoft, e Paula Paschoal, presidente da PayPal. Elas se encontram bimestralmente para tomar vinho e trocar ideias. “É muito importante conversar com pessoas de diferentes skills. A sororidade, de fato, existe e a praticamos no dia a dia.”
"Na América Latina, colocar uma mulher na diretoria financeira, e representando a diversidade, era muito importante"Rachel costuma recebê-las em casa, assim como outras turmas de amigos – ela é uma mulher de diversos grupos e está sempre rodeada de pessoas. Uma vez ao ano, porém, sai de cena para um retiro espiritual. Em 2019, foi para o centro de evangelização Canção Nova, onde lê a Bíblia. “É fundamental eu me recolher, me interiorizar.” No ano passado, foi a Fátima, em Portugal, e, em julho, esteve em Lourdes, na França, conhecido local de peregrinação católica. “Tudo o que é relacionado à fé e a Maria me renova”, diz Rachel, que é catequista de crisma há mais de 23 anos e vai todos os domingos à missa. “Costumo dizer que preciso esvaziar para encher de novo.”
MENINO A CAMINHO
Na última vez que fez uso desse recurso, pouco antes de entregar o plano de expansão da francesa Lacoste para o board global, teve êxito. Há dez meses no comando da marca no Brasil, Rachel tem a responsabilidade de fazer com que ela continue sendo desejada – e não só pelos homens, mas também pelas mulheres. “O target principal hoje é woman e footwear, que antes não eram nossos focos. É um mercado que tem muito potencial.” Além do sucesso na chegada, ela trouxe para seu lado uma head de RH, que era uma condição sine qua non da contratação. “Só ia conseguir essa virada tendo uma pessoa (no caso, uma mulher) que cuidasse exclusivamente de pessoas.”
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A entrada na Lacoste aconteceu em um momento de transição, depois da saída da Pandora e de um processo seletivo de quatro meses. “Meu perfil tende para o financeiro, então, estava fora do mindset. Mas quando meu atual chefe veio para o Brasil entrevistar os dois finalistas, a empresa insistiu para que ele me incluísse no processo.” Dois dias após a entrevista, ela foi informada de que iria a Paris com outro candidato. “Fiz uma nova entrevista com o presidente global, numa quarta. Na sexta, estava empregada. Mais uma vez, a vida provou que a gente tem que ter opinião naquilo que decide. E a minha decisão era continuar numa cadeira de comando, e no universo fashion. Em um momento estava out, e no momento seguinte, in, porque a minha postura na entrevista virou o jogo para mim.”
A conexão com os valores da marca foi imediata. “A Lacoste tem um histórico de criação e conteúdo. Não tem como não desejar trabalhar em uma empresa assim. O René Lacoste [1904-1996; tenista número um do mundo em 1927] criou a camisa polo, o lançador de bolinhas de tênis… Ele tem 23 invenções registradas. A Lacoste, em relação à polo, é a número um em brand awareness no Brasil.”
Em sua nova rotina, depois de levar a filha à escola às 7h45 e seguir de táxi para o escritório, Rachel organiza conversas individuais com os diretores, pelo menos uma vez por semana. “Acredito nessa forma de estar mais disponível. Por isso, é importante ter talentos trabalhando”, diz a CEO, que considera o respeito do mercado (que ainda está tentando entender a inclusão) sua maior conquista.
Rachel Maia continua sonhando em voar alto. Daqui a um ano, se tudo der certo, deve ganhar mais um admirador de sua história de inspiração. No ano passado, seu novo pedido de adoção foi aceito, e ela aguarda a ligação mais desejada de sua vida. “Agora estou esperando meu menino chegar.”
AJUDA À IRMÃ INSPIRA PROJETO SOCIAL
Tudo começou há cinco anos. Rachel decidiu construir uma casa para a irmã mais velha quando a “mana” passava por um momento difícil, após uma separação. “Vê-la feliz despertou em mim a vontade de ajudar mais gente, em um projeto maior”, diz Rachel.
A executiva pensou em um projeto que unisse educação e empregabilidade. Chamou a irmã pedagoga para ajudá-la a desenvolver o lado educacional; Rachel usaria seus contatos para garimpar vagas em empresas. Nascia, assim, em 2018, o Capacita-me, projeto que cria chances para homens e mulheres a partir dos 18 anos que vivem em situação de vulnerabilidade, desenvolvendo habilidades e preparando-os para o mercado de trabalho – 248 pessoas já foram atendidas. “O Capacita-me dá o direito de as pessoas voltarem a sonhar.”
PERSONAL HAIR STYLIST: SOLANGE DIAS | MAQUIAGEM: ISRAEL ESCOBAR
Reportagem publicada na edição 70, lançada em agosto de 2019
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