O amor como meteorito, como a beleza que permanece, como dois leões roçando os focinhos a perceber que são um só. Também o amor como revólver, como campeonato de desapego, como matéria escorregadia — “isto é, manteiga, azeite, geleia e espanto”. O amor até como a entrada do fantasma de Platão no esqueleto de Aristóteles. Eis algumas das imagens criadas pela lusitana Matilde Campilho, em “Jóquei” (editora 34), o curto livro de estreia que a alçou a uma das escritoras mais celebradas da atualidade. A compilação de poemas foi lançada em 2014 em Portugal e no ano seguinte no Brasil, quando ela conquistou o público como autora convidada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Em tempos nos quais de tudo se demanda um rosto, o de Campilho encantou, assim como sua simpatia — mas mais ainda sua escrita, como deve ser: seu livro foi o mais vendido do evento naquele ano.
Com compasso carioca-lisboeta, os versos de “Jóquei” nasceram no período em que viveu no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013, época em que também publicava versos no jornal O Globo e compartilhava videopoemas na internet. Entre os de maior sucesso está “Fevereiro”, que se inicia assim: “Escute só, isto é muito sério, anda, escuta que isso é sério! O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos, o Leo me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi”. Sua voz também pode ser ouvida semanalmente no programa de rádio Pingue Pongue, que apresenta com o multiartista conterrâneo Tomás Cunha Ferreira.
Leia também: “Mulher” é eleita a palavra do ano pelo Dictionary.com
Depois do sucesso com seus poemas desconstruídos, apartados da tradição literária, a escritora lançou-se exclusivamente à prosa em seu segundo livro, “Flecha”, publicado em 2022 no Brasil, dois anos após o lançamento em Portugal. Há quem observe o mundo e o registre com minúcia descritiva, literal. Campilho leva a realidade a passear por curvas e contracurvas antes de transformá-la em palavra. Uma abelha rainha ou um vendedor de caixas de fósforos, um formigueiro ou um asteroide: na obra, a aparente banalidade diária é metamorfoseada em microcontos enternecedores.
Se nos poemas a oralidade e a cadência se destacam, na prosa são as imagens que guiam a leitura — algo evidenciado na edição brasileira de “Flecha”, que inclui, além de um glossário vocabular, também um imagético, com “pistas” para os textos na forma de pinturas e fotografias. Aparecem na curadoria da autora — que estudou literatura em Lisboa e história da arte em Milão — desde obras rupestres a cenas de filmes de Chaplin, passando por trabalhos de Da Vinci e Manet. A dança de cronologias é espelhada nos acenos ancestrais que perpassam as crônicas contemporâneas, em menções a figuras clássicas como Antígona, Júlio César e Gilgámesh.
No prefácio à edição brasileira de “Flecha”, a escritora explica a escolha do título: “[O livro é] um conjunto de histórias independentes, em raros instantes ligadas entre si por correlações, e sempre conectadas pela passagem da flecha que as atravessa”. Essa costura de temporalidades é também metáfora para o panorama literário luso-brasileiro no qual a autora se insere, ao lado de nomes como Valter Hugo Mãe e António Lobo Antunes, precedida por escritores como Padre Antonio Vieira, Gregório de Mattos e Tomás António Gonzaga (e, é claro, tantas mulheres não reconhecidas pela história). Vivendo hoje entre Lisboa e Rio, Campilho traduz como poucos o caldo intercultural que ebule de duas nações que, embora irmãs — ou talvez por isso mesmo — ainda por vezes se flechem.