Aos 73 anos, a socióloga e empreendedora social Neca Setubal, filha do fundador do Itaú, Olavo Setubal, decidiu organizar suas ideias e registrar suas memórias. “As pessoas perguntam por que eu estou trabalhando se poderia estar viajando e fazendo compras”, diz a fundadora da Fundação Tide Setubal. Para responder a essas e outras perguntas, lançou nesta semana sua autobiografia, “Minha escolha pela ação social – Sobre legados, territórios e democracia” (Tinta-da-China Brasil). “Fui educada pelos meus pais para fazer a diferença para as pessoas. E acho que o meu livro responde a isso.”
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Na obra, Maria Alice Setubal narra sua história, reconhecendo os privilégios a que teve acesso e opinando sobre o papel que as elites brasileiras deveriam, em sua visão, desempenhar. “Tenho um dever com esse país”, diz a filantropa, explicando por que não se imagina vivendo em qualquer outro lugar. “Foi aqui que as empresas da minha família nasceram e prosperaram.”
Única mulher entre seis irmãos, Neca cultivou opiniões contrárias ao restante da família e cursou ciências sociais na USP (Universidade de São Paulo). “Meu pai me admirava e sempre me respeitou. Ele gostava de ter pessoas que pensavam diferente ao redor dele.”
Ao longo da sua trajetória na educação, ela tentou manter vivo o legado da família, ao mesmo tempo em que se afastava da visão patriarcal. Em 1987, fundou o Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e, em 2006, a Fundação Tide Setubal, em homenagem à sua mãe – “uma cabeça muito à frente do seu tempo”.
Hoje, está à frente do conselho da Fundação, que tem ações pela justiça social e desenvolvimento de periferias de São Paulo. Também integra diversos outros conselhos, entre eles da Fundação Padre Anchieta e da Fundação Itaú, do Instituto Itaúsa e do Unicef.
Confira, abaixo, destaques da entrevista com a filantropa Neca Setubal
Forbes: O que te motivou a escrever sua autobiografia?
Neca Setubal: Uma das principais motivações foi responder às pessoas que sempre questionam por que eu estou aqui, aos 73 anos, trabalhando. Mas eu tinha que estar aqui, porque eu fui educada tanto pelo meu pai como pela minha mãe entendendo que o trabalho era um valor muito importante e constitutivo da identidade. Eu sou muito workaholic. Em casa, sempre se valorizou muito o estudo e a leitura. Minha mãe achava importante a atuação de pensar no próximo, fazer a diferença para as pessoas. Ela me deixou um diário em que ela enfatizava muito a importância de fazer a diferença para os outros, dizendo que esse era o maior legado da vida. Eu não fui educada para estar em casa, tomando chá, fazendo compras e viajando. Fui educada para fazer a diferença para as pessoas e para trabalhar. E acho que o meu livro responde a isso.
F: No livro, a senhora cita uma herança dos seus pais que vai além do dinheiro. Como eles ajudaram a moldar a pessoa que a senhora é hoje?
NS: Meu pai trouxe essa questão da identidade do trabalho, mas também da consistência. Ter escrito esse livro pessoalmente também foi muito importante porque me fez ter consciência de muitas coisas que eu nem tinha me dado conta. Uma delas em relação ao meu pai, por exemplo, é que ele era uma pessoa muito de ir nos lugares, nas fábricas, inaugurar as agências, e eu sou uma pessoa do território, viajei esse Brasil inteiro conhecendo escolas. Da minha mãe, fui resgatando ao longo da vida toda essa história de um feminino muito forte. Ela foi uma pessoa muito à frente do tempo dela, mas eu não percebi isso na época. Ela morreu com 52 anos, quando eu tinha 26 anos, na época fazia Ciências Sociais na USP. Quando eu fui resgatar a história dela e os diários no começo dos anos 2000, eu entendi e foi por isso que eu criei a fundação Tide Setubal, em homenagem a ela. Eu introjeto muito a fortaleza que ela era porque meu pai foi prefeito, ministro, empresário de sucesso e ela enfrentava com as opiniões dela. Então em toda essa minha história de busca pelo meu espaço, seguindo a favor ou contra o meu pai ou os meus irmãos, sem dúvida o exemplo da minha mãe foi fundamental, consciente ou inconscientemente.
F: Qual a importância de as elites se envolverem com pautas sociais?
NS: É fundamental porque em um país como o Brasil, as elites têm que se sentir responsáveis. Não acho que a minha história seja a história. É uma história. O importante é assumir a responsabilidade de fazer a diferença. Você pode fazer com recursos financeiros, mas também pode doar seu tempo, fazer trabalho voluntário, ser mentor de alguma pessoa, existem muitas possibilidades. O importante é não deixar que só o governo seja responsável. Ou ir morar em Miami ou Portugal. Eu sinceramente acho isso uma falta de responsabilidade pelo país. Eu quero morar aqui, onde está a minha família, os meus filhos, onde estão as empresas da minha família, que prosperaram por esse país. Então eu me sinto responsável e tenho que retribuir a esse país. Não vejo sentido em continuar com as empresas aqui e morar fora. Tenho um dever com esse país e me sinto responsável por contribuir para transformá-lo numa sociedade melhor.
F: A senhora escreve que ser mulher norteou toda a sua trajetória. Como foi ser a única mulher entre seis irmãos?
NS: Era um ambiente muito masculino e, como a minha mãe morreu muito cedo, esse masculino tomou conta. Se eu não tivesse tido essa memória forte da minha mãe, provavelmente teria tido outra história. Num primeiro momento, eu acho que também fui muito dura para enfrentar esse caminho, tanto nesse mundo masculino que era o ambiente da minha casa, mas também para superar um preconceito que tinham de que eu sou uma Setubal e talvez não fosse competente na área de educação. Tive uma liderança mais dura para conseguir implementar o meu caminho e traçar a minha própria trajetória.
F: Como você lidou e lida com essas diferenças com a família?
NS: Tenho minhas diferenças com os meus irmãos, tem os mais próximos e os mais críticos da minha trajetória. A gente se dá bem nas diferenças. Mas o meu pai gostava de ter pessoas que pensavam diferente ao redor dele. Ele convidava pessoas que pensavam diametralmente diferente dele para discutir, ele gostava de uma boa discussão. Ele sempre me respeitou porque eu acho que ele me admirava. Ele gostava de me apresentar como uma intelectual da USP, mas também gostava de me cutucar.
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F: Como era ser mulher na década de 1970 e como é hoje?
NS: Eu me gosto mais hoje do que quando eu tinha 20 anos. Claro que eu gostaria de ter menos idade, mas hoje me gosto mais. Tive a sorte na vida de ir encontrando e aprendendo com muitas pessoas. Eu tenho uma capacidade de abertura com os diferentes, uma escuta ampliada. Tenho certeza de que isso para mim foi muito importante e eu tive muitas pessoas que me ensinaram muito ao longo da vida. O mundo mudou completamente do que era nos anos 70, quando eu tinha 20 e poucos anos. Sem dúvida, é um mundo muito mais complexo. Acho que é muito mais difícil educar filhos hoje. A gente vive um mundo em crises – climática, de democracia, do trabalho, com inteligência artificial e novas tecnologias, e vivemos uma angústia por não saber exatamente para onde estamos indo. Mas eu acredito no ser humano, acredito que a gente vai encontrar as respostas. Talvez essas respostas não estejam dadas hoje nem amanhã, mas elas virão. E apesar de toda essa crise, quando a gente olha friamente para os dados concretos, vemos que está tudo melhor. Tem mais gente educada, menos gente passando fome, tem mais gente com acesso à saúde e com acesso à universidade no mundo em geral. Se eu não acreditasse no ser humano, já tinha ido ficar sozinha cuidando do meu jardim.
F: Nesse mundo mais complexo, como a senhora se mantém atualizada?
NS: Sou meio obsessiva por ler. Mas hoje em dia, se eu não gosto do livro, eu já paro. Também vou doando muito, eu guardo só os que eu gosto – que já são muitos. Leio muito jornal e ouço muitos podcasts.
F: Pratica exercícios físicos?
NS: Faço pilates e funcional duas vezes por semana de manhã cedo. No fim de semana, pelo menos um dia eu dou uma caminhada.
F: E a rotina de trabalho?
NS: Participo de muito de conselhos, tenho reuniões na fundação, às vezes viagens de algum projeto. Estou começando agora um projeto de um podcast com a Sueli Carneiro.
F: O que que mais te orgulha nesses 18 anos de atuação da fundação, e o que a senhora ainda quer fazer?
NS: Ainda tem muita coisa para fazer. A gente tem três modos de atuação: um é o galpão no Jardim Lapena, um espaço onde a gente atua no território, tem biblioteca, cozinha profissional, espaço de coworking, auditório, churrasqueira, festas. Ao mesmo tempo, desenvolvemos indicadores e estamos monitorando para os próximos 10 anos com várias iniciativas de intervenção junto com a comunidade para mudar a cara desse bairro. Isso envolve projetos de cultura, educação, economia e empreendedorismo, mas também de urbanismo, com projetos de drenagem contra enchentes, alargamento de ruas e praças, construção de UBS.
Outra forma é o fomento de projetos, uma vez por ano fazemos a seleção desses projetos. E também os programas de influência, apoio a lideranças negras, orçamento público, urbanismo social, nova economia, democracia e participação ativa. Dentro desses cinco programas, a gente desenvolve estudos e iniciativas. A gente quer que isso seja uma referência de que é possível atuar na periferia de forma integrada e sistêmica e mudar a cara das periferias do Brasil.