Criar filhos já é uma missão desafiadora por si só, mas que ganha novas camadas quando as redes sociais entram em cena. Entre a dificuldade de criar conexões saudáveis até lidar com sentimentos negativos, navegar pela era digital pode ser um caminho tortuoso tanto para os filhos quanto para os pais. “Precisamos dar aos nossos filhos o exemplo de se relacionar com as pessoas na vida real, não apenas pelo WhatsApp”, afirma Philippa Perry, psicoterapeuta britânica que já vendeu mais de três milhões de cópias de “O Livro que Você Gostaria que os Seus Pais Tivessem Lido.”
Para a autora, redes como o TikTok e o Instagram podem dar uma falsa ideia de conexão e atrofiar as habilidades sociais, gerando uma lacuna de relacionamentos saudáveis que tem seus próprios desdobramentos entre pais e filhos. “É como viver de salgadinhos. Pode te manter vivo, mas não te alimenta de verdade.”
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Ao longo de mais de 20 anos, Philippa Perry trabalhou como psicoterapeuta, construindo a bagagem que a ajudou a escrever o best-seller e expandir seus conselhos para além dos seus pacientes ou dos leitores da sua coluna semanal no site do jornal britânico The Guardian. “Centenas de histórias me ajudaram a construir uma visão mais ampla de onde estamos.”
Na sua visão, o erro mais comum dos pais é enxergar os filhos como uma tarefa a ser cumprida ou um projeto a ser aperfeiçoado. “Eles não são uma obrigação a ser resolvida junto com o restante da bagunça; são uma pessoa. Não devem ser alguém para lidar, mas sim para sentir com você.”
Também conhecida por outras obras, como “Couch Fiction” e “Como Manter a Mente Sã”, Perry fechou 2024 com mais um lançamento, “O Livro que Você Gostaria que Todas as Pessoas que Você Ama Lessem.” “Consigo colocar em palavras coisas que as pessoas sempre sentiram, mas nunca articularam.”
Mudando os ares, Philippa agora trabalha em uma nova aposta: um romance policial. “Todas essas dores existenciais podem ser esquecidas ao mergulhar em um quebra-cabeça onde tudo pode ser resolvido. Então, por que não escrever uma história assim, que me traga conforto enquanto leitores, junto comigo, desvendam crimes?”
Em visita ao Brasil pela primeira vez, Philippa Perry, que também é embaixadora da The School of Life, falou sobre parentalidade, relações sociais e como criar filhos emocionalmente saudáveis em uma palestra promovida pelo STB em parceria com o JK Iguatemi.” “Vocês no Brasil devem ser bons em criar filhos, porque todo mundo parece aberto e confiável logo de cara, e isso vem de relações familiares próximas e saudáveis durante a infância.”
Em conversa com a Forbes, a psicoterapeuta Philippa Perry deixa dicas para pais e filhos construírem boas relações na era da tecnologia.
Forbes: Como você enxerga que a percepção de ser pai ou mãe evoluiu ao longo dos anos, especialmente com a ascensão das redes sociais?
Philippa Perry: Isso virou quase um esporte nas redes sociais, com as pessoas comparando as fases de desenvolvimento dos filhos nos grupos de WhatsApp, ao dizer qual criança fala mais ou qual andou primeiro. Acho que isso é um grande equívoco — cada um se desenvolve no seu próprio ritmo. Minha filha começou a falar com seis meses, mas só andou aos dois anos. Isso não significa que é melhor ou pior. As redes sociais deixaram alguns pais um pouco competitivos em relação ao desempenho dos filhos. Eu diria: “Por favor, saiam das redes sociais, isso não ajuda muito.” Precisamos dar aos nossos filhos o exemplo de se relacionar com as pessoas na vida real, não apenas pelo WhatsApp.
Como você enxerga o impacto da tecnologia na saúde mental, tanto pelo lado positivo quanto pelo negativo?
Nos acostumamos a ter conexões por mensagens de texto, redes sociais e e-mails. Quando temos um pouco dessa conexão, recebemos uma pequena dose de dopamina, o que é agradável e nos mantém seguindo por um tempo. Mas isso faz com que nos conectemos menos com as pessoas no mundo real, o que considero perigoso.
Outro problema das redes sociais é que se torna muito fácil planejar o que vamos dizer, em vez de conversar no momento, o que nos faz perder essa habilidade. Durante o lockdown, quando eu só via minha família mais próxima, fiquei tímida. Estava animada para ir ao meu primeiro evento depois do confinamento, achei que seria empolgante conhecer novas pessoas e rever amigos, mas aguentei apenas 45 minutos antes de me sentir completamente sobrecarregada e ter que sair.
Meu “músculo social” atrofiou por falta de uso. Tive que me forçar a ir a mais eventos e ver mais amigos até recuperar essa habilidade social. Isso é o que acontece quando nos isolamos e só nos encontramos nas redes sociais: é como viver de salgadinhos. Pode te manter vivo, mas não te alimenta de verdade.
Tem alguma tendência nas redes sociais que você vê impactando principalmente os jovens em relação à saúde mental?
Estamos patologizando sentimentos desconfortáveis, mas normais, e falando sobre isso no TikTok e no Instagram. Todos sentimos tristeza, raiva, decepção, rejeição e solidão. Mas estamos transformando esses sentimentos em transtornos, e isso é amplificado na internet. As pessoas começam a acreditar que têm transtornos só porque identificam alguns sintomas apresentados em vídeos.
Isso não melhora a saúde mental das pessoas. Pelo contrário, piora. Em vez de aceitar sentimentos desconfortáveis, estamos transformando-os em doenças. As redes sociais se alimentam disso.
Quais são os principais equívocos que os pais costumam ter ao criar os filhos?
O mais comum é enxergar seu filho como uma tarefa a ser cumprida ou um projeto a ser aperfeiçoado, em vez de vê-lo como uma pessoa com quem você deve se relacionar. Eles não são um projeto ou uma obrigação a ser resolvida junto com o restante da bagunça; são pessoas. Não é algo que você pode delegar completamente para outros cuidarem. Eles não devem ser alguém para “lidar”, mas sim para “sentir” com você. Queremos sentir junto com nossos amigos, não apenas lidar com eles — e o mesmo vale para os nossos filhos.
Por que a conexão é um ponto tão central para a felicidade e o bem-estar?
Porque somos seres sociais. Nossa biologia é feita para estarmos em relacionamentos. Não nascemos totalmente desenvolvidos, não conseguimos andar nem falar quando nascemos. Não somos como um filhote de gato que pode se adaptar rapidamente em cerca de quatro semanas. Nos desenvolvemos muito lentamente durante os primeiros cinco anos de vida e fazemos isso nos relacionando com nossos primeiros cuidadores. Continuamos a nos desenvolver durante toda a nossa vida, em relacionamentos com outras pessoas e com o nosso ambiente. Por isso, é uma boa ideia se dar bem com pessoas.
Quais são os impactos da parentalidade nas relações, tanto pessoais quanto profissionais?
Seus primeiros relacionamentos — com sua mãe, seu pai, seus irmãos (especialmente com os irmãos, algo que muitas vezes é subestimado) — se tornam sua primeira experiência de mundo. Você pensa que o mundo funciona assim, porque essas primeiras relações servem como uma espécie de modelo para os relacionamentos futuros. Não consigo deixar de pensar que vocês no Brasil devem ser bons em criar filhos, porque todo mundo parece muito aberto e confiável logo de cara, e acho que isso vem de ter relações familiares próximas e saudáveis durante a infância. Acho que vocês já são muito bons nisso, não sei por que estou vendendo tão bem no Brasil [risos].
Essa é a sua primeira vez no país. O que tem achado dos brasileiros até aqui?
Acho que nunca encontrei pessoas tão abertas, amigáveis e genuínas, de forma consistente, na minha vida inteira. Motoristas de táxi, o concierge, os garçons. Todo mundo é tão gentil. Vocês são sempre assim? Não entendo [risos]. Por exemplo, quando o garçom anota meu pedido, ele parece realmente se importar se estou escolhendo a coisa certa e se vou ter uma boa experiência. É maravilhoso. Todos têm sido muito fáceis de lidar, calorosos, abertos, sociáveis e tranquilos.
O que te levou a seguir carreira como psicoterapeuta?
Acho que você nunca vai encontrar um psicoterapeuta que não tenha enfrentado suas próprias dificuldades com quem é, o que deveria estar fazendo, como lidar com seus sentimentos e se deve ou não olhar para o passado. É essa curiosidade que te faz se interessar por psicologia e pelo funcionamento dos seres humanos. Se todos os relacionamentos funcionassem perfeitamente e você estivesse navegando pela vida sem problemas, não acho que escolheria ser psicoterapeuta. Foi tentando entender os problemas da vida que me interessei por isso. Nunca pensei que seria boa o suficiente para ser uma psicoterapeuta, mas, no fim, não consegui mais resistir. Por volta dos 38 anos, comecei a minha formação.
E como autora best-seller?
Escrevi “Couch Fiction” quando tinha 50 anos, isso foi há uns 17 anos, e foi bem recebido. Depois, escrevi “Como Manter a Mente Sã” em 2012, que também teve um bom desempenho. Em seguida, escrevi “O Livro que Você Gostaria que os Seus Pais Tivessem Lido”, e já vendi mais de três milhões de cópias até agora. Esse livro alcançou um patamar estratosférico. Meu novo livro, “O Livro que Você Gostaria que Todas as Pessoas que Você Ama Lessem”, também está indo bem. E agora estou escrevendo outro livro, mas desta vez é um romance. Vai ser uma mudança interessante.
Por que você acredita que tantos leitores se identificam com o que você escreve?
Consigo colocar em palavras coisas que as pessoas sempre sentiram, mas nunca articularam. Se eu posso expressar esses sentimentos e transformá-los em uma narrativa, isso pode nos ajudar. Com “O Livro que Você Gostaria que os Seus Pais Tivessem Lido”, acredito que, pela primeira vez, alguém escreveu uma obra sobre parentalidade com foco em como ter uma boa relação com seu filho. Essa boa relação faz a criança se sentir segura e capaz de conversar com os pais, e isso é muito importante.
Seu último livro foca em relacionamentos e conexões. O que te motivou a escrever essa continuação?
Meu editor queria mais um livro. Eu escrevo uma coluna no site do The Guardian, todo domingo. Pelas perguntas que recebo dos leitores, percebo o que as pessoas precisam, desejam e o que está faltando. A partir disso, consegui elaborar no livro respostas mais gerais e detalhadas sobre o que precisamos para nos sentir melhor e ter conexões mais saudáveis.
Seja qual for o seu problema, geralmente está relacionado a algum tipo de relacionamento que não está funcionando. “O Livro que Você Gostaria que os Seus Pais Tivessem Lido” trata de todos os tipos de relacionamentos, mas com um foco específico na relação entre pais e filhos. Já “O Livro que Você Gostaria que Todas as Pessoas que Você Ama Lessem” é mais abrangente, abordando mais temas e diferentes tipos de relações que temos com as pessoas ao nosso redor.
Quais aprendizados ao longo da sua vida tiveram maior impacto no seu trabalho?
A maior influência tem sido da minha vida profissional. Há décadas, converso com pessoas que estão angustiadas, que chegam até mim se sentindo horríveis, mas querem se sentir melhor. Esses encontros me influenciaram muito. Mais do que na minha vida pessoal, porque essa é apenas uma história. Minha vida profissional é repleta de centenas de histórias que me ajudaram a construir uma visão mais ampla de onde estamos.
Com esse background, você consegue aplicar as próprias lições ou se vê enfrentando os mesmos desafios nos relacionamentos?
Quando estou dando terapia e aponto alguma questão, como: “Você parece estar em um relacionamento com suas suposições sobre essa pessoa, e não com a pessoa”, em seguida, penso comigo mesma: “Meu Deus, eu faço isso o tempo todo.”
Se você pudesse oferecer um conselho a alguém em busca de uma vida emocionalmente saudável, o que você diria?
Para se sentir melhor, é preciso ter um senso de pertencimento. E a coisa mais importante sobre ser pai ou mãe é ter um bom relacionamento com seu filho, com amor e limites.
Quais novos projetos ou áreas de pesquisa estão no seu radar?
Estou escrevendo um romance. É fantástico, porque você não precisa pesquisar para escrever, pode inventar. É a obra mais bonita que já fiz, estou me divertindo muito. Estou escrevendo o que chamamos na Grã-Bretanha de “cozy crime” [em tradução literal, crime aconchegante], será um “whodunit”, uma história de mistério que mantém a identidade do criminoso em segredo até o final. O motivo pelo qual gostamos desse tipo de história é que a vida é incrivelmente complexa. Nunca chegamos ao fim das questões; nunca encontramos a resposta; o “felizes para sempre” não acontece na prática; a vida continua depois que morremos. Todas essas dores existenciais podem ser esquecidas no quebra-cabeça de um simples romance policial, no qual podemos resolver tudo e nos aconchegamos. É um grande conforto. Por que eu não deveria escrever um desses, me divertir e me confortar com outros leitores resolvendo crimes?
Você acha que esse será um novo caminho para você?
Vamos ver como esse livro vai primeiro. Antes, eu preciso terminar e ver se alguém vai querer ler [risos].