
Em 24 de outubro de 1975, 90% das mulheres islandesas entraram em greve. Não trabalharam dentro ou fora de casa para lembrar o país da sua importância. Cinco anos após o movimento histórico, o país nórdico elegeu democraticamente a primeira mulher presidente no mundo, Vigdís Finnbogadóttir.
Quase 50 anos depois, em 2023, a Islândia já liderava o ranking de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial há mais de uma década, quando cerca de 100 mil pessoas (em um país com menos de 400 mil habitantes) tomaram as ruas para protestar contra disparidades salariais, violência de gênero e trabalho não remunerado. Entre elas estava a então primeira-ministra, Katrin Jakobsdóttir, que afirmou que a luta por tratamento igualitário avança muito lentamente, dentro e fora do país. “Ao olhar para o mundo inteiro, poderia levar 300 anos para alcançar a igualdade de gênero.”
Neste Dia Internacional da Mulher, as islandesas vão às ruas novamente, reafirmando a força do movimento das mulheres no país – um dos pilares que fazem da Islândia a nação mais igualitária do mundo em termos de gênero. “Foi o trabalho contínuo de organizações feministas que estabeleceu as bases para a mudança”, diz à Forbes a diretora executiva da ONU Mulheres Islândia, Stella Samúelsdóttir.

Stella Samúelsdóttir é diretora executiva da ONU Mulheres Islândia, que acaba de lançar a campanha March Forward for Gender Equality, que coloca a igualdade de gênero no centro do debate
O senso de coletividade das islandesas chamou a atenção da brasileira Luciana Moço, que conheceu o país há mais de 10 anos e hoje, à frente de uma agência de turismo, se divide entre a Islândia e Bali, na Indonésia. “A luta das mulheres aqui sempre foi muito ativa, e a sociedade como um todo reconhece que a equidade de gênero não é apenas uma questão de direitos, mas também de desenvolvimento econômico e social.”
Além da força do movimento feminista, o sucesso do pequeno país insular na promoção da igualdade de gênero resulta de uma combinação de fatores: representatividade feminina na política, licença parental igualitária, lei de igualdade salarial e subsídio a creches. “Ainda há muito trabalho a ser feito. Não vamos parar por aqui nem aceitar isso como suficiente. Continuaremos até alcançar a igualdade plena para todos”, afirma Stella. É por isso que elas continuam indo às ruas e também porque se mantêm nessa posição.
“A igualdade de gênero é um dos motivos pelos quais a Islândia é um país próspero.”
Stella Samúelsdóttir, diretora executiva da ONU Mulheres Islândia
O país mais igualitário do mundo
Com os lentos – ainda que constantes – avanços em relação à igualdade de gênero, levará 134 anos, aproximadamente cinco gerações, para alcançar a paridade total. Segundo o Índice Global de Disparidade de Gênero 2024, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial em junho passado, o avanço mundial em relação ao tema foi de 0,1 ponto percentual desde o ano anterior.
O Índice acompanha anualmente desde 2006 o estado atual e a evolução da paridade de gênero em quatro dimensões principais: participação econômica e política, nível educacional e saúde.
A Islândia lidera o ranking há 15 anos consecutivos, e continua sendo a única economia a ter eliminado mais de 90% da disparidade de gênero. “Não é algo pontual. A Islândia tem continuamente tratado a igualdade de gênero como um tema fundamental”, analisa Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM UFMG).
O país tem melhorado progressivamente ao longo dos anos, passando de 78,1% em 2006 para 93,5% em 2024 – um aumento significativo de +15,4 pontos percentuais.
O papel da representatividade feminina na política
Como modelo de paridade política, mais que dobrou sua pontuação no subíndice de Empoderamento Político desde 2006 (de 45,6% para 97,2%). No geral, a pontuação média global é mais baixa nesse indicador (22,5%). Apenas 12 economias registram pontuações de paridade acima de 50%.
“Em um momento em que os direitos das mulheres enfrentam retrocessos sem precedentes em todo o mundo, a Islândia tem mulheres liderando em todas as posições importantes”, afirma a líder da ONU Mulheres no país. “Nossa presidente é uma mulher, o novo governo de coalizão é liderado por três mulheres (apelidadas de Valquírias), a bispa da Islândia é uma mulher, a Comissária Nacional de Polícia é uma mulher e a coalizão do conselho municipal de Reykjavík [capital do país] é liderada por cinco mulheres.”
Da política à vida cotidiana, a brasileira residente na Islândia observa as diferenças entre os dois países e a naturalização do protagonismo feminino no contexto islandês. “Mulheres ocupam cargos de liderança e posições que geralmente são atreladas ao masculino (como motorista, piloto de avião e policial) sem que isso seja tratado como algo extraordinário. Para eles é algo natural.”
A representatividade na política é o pontapé inicial para as mudanças sistêmicas. “A presença de mais mulheres em posições de poder – algo que a Islândia mantém há anos – gera um efeito em cascata, impulsionando e mantendo pautas essenciais na agenda política do país”, afirma a professora da UFMG.
Nas últimas duas edições do Índice do Fórum Econômico Mundial, a Islândia relatou paridade total no nível de chefe de Estado – com mulheres ocupando esse cargo por mais da metade dos últimos 50 anos. Além disso, em 2024, as mulheres detinham 50% dos cargos ministeriais e 47,6% dos assentos parlamentares.
O país também registra altos índices de igualdade em relação à participação e oportunidades econômicas (81.5%) e educação – com pontuação de 100% em alfabetização, matrícula no ensino primário e ensino superior, e 96,4% no ensino secundário. Em comparação com outros países, no entanto, tem pontuações um pouco mais baixas no subíndice de Saúde e Sobrevivência.
Marlise Matos destaca que as dimensões reduzidas da Islândia, que é uma ilha, favorecem a implementação e o gerenciamento de políticas públicas. O país nórdico tem um número de habitantes semelhante ao da cidade de Bauru, no interior de São Paulo, em uma área de cerca de 103 mil quilômetros quadrados. “A dimensão territorial e geográfica tem impacto, mas isso não desmerece o esforço constante da Islândia para manter essa posição de destaque em relação aos demais países do mundo”, diz.
Políticas para igualdade de gênero
Lei de igualdade salarial
O governo islandês tomou várias medidas ao longo dos anos para promover a igualdade de gênero. O país nórdico foi o primeiro do mundo a criar uma lei que exige a igualdade de salários entre homens e mulheres. A legislação entrou em vigor em 1° de janeiro de 2018 e tornou obrigatória a Certificação de Igualdade Salarial para todas as empresas e instituições com 25 ou mais funcionários.
No Brasil, a lei de igualdade salarial só entrou em vigor em 2023.
Em 2010, o governo da Islândia adotou o orçamento com perspectiva de gênero para promover uma melhor gestão econômica, garantindo que as perspectivas de gênero sejam consideradas em todo o processo orçamentário.
Licença parental igualitária
A desigualdade no mercado de trabalho passa a afetar mais as mulheres alguns anos depois de terem o primeiro filho, segundo a vencedora do Nobel de Economia Claudia Goldin.
Na tentativa de driblar esse cenário, a Islândia implementou a licença parental igualitária. Os pais têm direito a 12 meses de licença remunerada no total: seis meses são destinados ao pai e seis meses à mãe; o Estado paga 80% do salário e seis semanas podem ser transferidas de um para o outro.
O objetivo é permitir que ambos tenham oportunidades iguais de cuidado com os filhos e trabalho fora de casa. Diversos estudos provam os benefícios dessa medida, para a carreira dos pais e para o bem-estar tanto dos pais quanto dos filhos.
Subsídio a creches
A falta de creches e escolas de educação infantil acessíveis amplia a desigualdade de gênero, já que o cuidado com os filhos recai especialmente sobre as mulheres. A Islândia investiu em educação infantil, destinando 1,7% do PIB para essa área, mais do que o dobro da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Cotas de gênero
Comitês, conselhos e diretorias de empresas e do governo nacional e local devem ser compostos com pelo menos 40% de homens e mulheres. “Também há um esforço para aumentar o número de mulheres na polícia, o que é crucial para criar uma força policial que reflita a comunidade que atende”, afirma Stella, líder da ONU Mulheres Islândia.
O mercado de trabalho na Islândia está cada vez mais engajado na promoção da igualdade de gênero de diversas maneiras. “Essa abordagem é fundamental para que as empresas permaneçam competitivas no mercado, já que metade da força de trabalho islandesa é composta por mulheres altamente qualificadas e instruídas.”
Para algumas empresas, isso se tornou um diferencial na busca por talentos internacionais. “Mulheres de outros países que se mudaram para a Islândia a trabalho relatam que, apesar de nem sempre gostarem do clima, apreciam muito a liberdade e a segurança do país.”
Brasileira que vive na Islândia, Luciana reforça: “Aqui é raro ver uma mulher preocupada em andar sozinha à noite, algo que no Brasil ainda é um grande problema.”

Luciana Moço: “As mulheres islandesas têm uma longa tradição de se unir para reivindicar mudanças. A Islândia é um país pequeno, onde a colaboração entre as pessoas é essencial”
Paraíso da igualdade?
Com todas essas medidas e seus resultados mensuráveis, a igualdade de gênero se tornou um marco da Islândia. O país sai muito à frente quando comparado com outras nações da Europa, com os Estados Unidos e o Brasil, mas também não está livre de problemas. “Somos chamados de paraíso da igualdade, mas ainda existem disparidades de gênero e uma necessidade urgente de ação”, disse à Reuters Freyja Steingrimsdottir, uma das organizadoras da greve de 2023, hoje diretora executiva da Associação de Jornalistas da Islândia.
Em algumas indústrias e profissões no país, as mulheres ganham pelo menos 20% a menos do que os homens islandeses, de acordo com o Statistics Iceland.
De acordo com a líder da ONU Mulheres no país, os níveis de violência na Islândia são os mesmos do restante do mundo. Um estudo da Universidade da Islândia descobriu que 40% das mulheres sofrem violência de gênero e sexual. As mulheres também têm mais chances de enfrentar dificuldades financeiras do que os homens, a economia do cuidado é majoritariamente sustentada por mulheres e as islandesas continuam a carregar grande parte do trabalho de cuidado não remunerado. “A maioria das mulheres islandesas está plenamente consciente de que a paridade de gênero total ainda não foi alcançada.”
“Existe uma mentalidade muito forte de que não importa o quanto já avançamos, ainda não atingimos o justo – e sempre há espaço para melhorias”, diz a brasileira Luciana Moço, especialista em turismo na Islândia. Esse princípio também se aplica a outros grupos minorizados, como mulheres e pessoas pretas e LGBTQ+.
Igualdade de gênero no Brasil
No Brasil, o cenário é outro. O país despencou no ranking de igualdade de gênero e ocupa o 70º lugar. A paridade econômica teve uma leve redução em relação a 2023, ficando em 66,7% contra 67,0%. No entanto, o país manteve a posição em relação ao mercado de trabalho e alcançou sua maior pontuação em cargos de liderança sênior (66,1%).
A participação feminina na força de trabalho aumentou 0,7 ponto percentual em relação a 2023, chegando a 72,6%. Apesar disso, ainda está 4,5 pontos abaixo do melhor resultado do país (77,2% em 2021).
Em nível educacional, o Brasil alcançou a paridade efetiva em 99,6%. Não houve alteração no subíndice de saúde e sobrevivência, que se mantém com uma pontuação de 98%.
Já em relação à política, o país acompanha a média global, com uma pontuação de 22%, abaixo dos 26,3% registrados em 2023. Essa queda se deve principalmente à menor representação feminina no nível ministerial. “É um imenso desafio gerir políticas para as mulheres na complexidade desse país que a gente vive”, afirma Marlise Matos, professora da UFMG.
A professora cita a pandemia, guerras e crises globais que também têm ampliado as disparidades de gênero, no Brasil e no mundo. Trinta anos após a criação da maior agenda global para alcançar a igualdade de direitos para mulheres e meninas, a ONU publicou um relatório com um balanço da jornada de 159 dos 189 países signatários da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim. Quase um quarto dos governos em todo o mundo relataram retrocessos nos direitos das mulheres. “Para avançar, precisamos fazer o que a Islândia fez, que é manter uma constância dessa agenda na estrutura do próprio estado brasileiro.”