A disponibilidade de dados de forma aberta é crucial para o enfrentamento da pandemia e da construção de uma sociedade mais transparente, equânime e justa para todos após o controle da atual emergência de saúde pública e econômica. Porém, existem diversos entraves e uma estrada a percorrer.
Em uma entrevista exclusiva à Forbes, Jeni Tennison, vice-presidente e chief strategy adviser do Open Data Institute (ODI), organização sem fins lucrativos com sede em Londres, falou sobre o papel dos dados abertos durante a crise, a atual situação do Brasil sobre o tema, bem como tópicos como privacidade, de quem é a responsabilidade de garantir amplo acesso a dados abertos e rumos futuros. O ODI foi fundado pelos inventores da internet, Tim Berners-Lee e Nigel Shadbolt, e é um dos principais atores no debate global sobre dados abertos.
Segundo a especialista, a atual situação requer a disponibilidade do máximo de dados abertos possível, tanto para gerenciar os efeitos imediatos do alastramento do vírus – como a demanda por acesso ao sistema de saúde, passando por cadeias de suprimentos de medicamentos e alimentos até energia e internet – quanto para lidar com os consequentes impactos sociais e econômicos nos próximos meses e anos.
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“Os dados nos dizem o que a sociedade e as economias precisam. Eles nos dizem onde as pessoas estão, onde o vírus pode estar se espalhando e como enfrentar os desafios sem precedentes que diferentes comunidades, indústrias e nações estão enfrentando, agora e nos próximos meses”, diz Jeni. “Tornar os dados abertos, através da publicação na internet, em planilhas, sem restrições de acesso, é a melhor maneira de garantir que eles possam ser usados pelas pessoas que mais precisam.”
BRASIL
A avaliação do ODI sobre o Brasil é que o país tem progredido no sentido de garantir a abertura de dados por organizações do setor público, mas ainda há muito a ser feito. Segundo o Open Data Barometer, ranking global que classifica governos sobre como estão publicando e usando dados abertos para prestação de contas, inovação e impacto social, o Brasil ocupa o 14º lugar entre os 30 países signatários da Carta de Dados Abertos, atrás de outros países latinos como Colômbia e Uruguai.
“[A atual posição do Brasil] mostra uma evolução positiva do país em termos de sua prontidão para adotar dados abertos e sua implementação, mas sua pontuação na escala é baixa em termos do impacto positivo mensurável disso”, avalia.
De acordo com a avaliação do governo digital da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre o Brasil, “mais esforços são necessários para impulsionar a cocriação de valor público junto à sociedade civil e criar uma ampla cultura de compartilhamento e reutilização de dados do governo”.
Em relação às consequências da falta de transparência trazida por dados abertos, atualmente exacerbada por desafios como a propagação de informações falsas e subnotificação de casos de coronavírus, Jeni diz que o Brasil não é o único país a enfrentar estes problemas.
“A desinformação e falta de números confiáveis da Covid-19 não são exclusivos do Brasil: estas são questões globais”, aponta. “Pessoas no mundo todo estão questionando, e com razão, os números [sobre a pandemia] em seus países e se a resposta dos governos à Covid-19 foi suficiente. Em países como os Estados Unidos, alguns até questionam se a resposta foi longe demais.”
No entanto, veremos cidadãos de países com históricos de falta de confiança ou abertura de informações por parte do governo desenvolvendo um sentimento ainda maior de desconfiança neste período de crise, segundo a diretora da ODI, o que não contribui para o enfrentamento à pandemia.
“Isso prejudica a capacidade de desenvolver uma resposta coletiva à Covid-19, algo tão crítico para que medidas como o lockdown ou outras intervenções obtenham o efeito desejado”, ressalta.
PRIVACIDADE
Sobre o tópico da privacidade de dados e o debate sobre flexibilização destas garantias em favor do bem comum durante a pandemia, Jeni acredita que indivíduos têm o direito de ter suas informações pessoais protegidas e usadas de forma proporcional e aponta que privacidade e segurança são requerimentos legais para o design de qualquer produto em diversos países.
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Estes princípios, segundo a diretora da ODI, precisam ser aplicados à cenários onde dados pessoais podem ser necessários para apoiar políticas de saúde pública, assim como para muitos outros fins sob o guarda-chuva de serviços públicos, mas todos estes usos devem obedecer os princípios de necessidade, proporcionalidade e transparência.
“Cidadãos precisam de clareza sobre como os seus dados serão coletados e compartilhados, e por quanto tempo serão retidos, por quem e com que finalidade”, ressalta, acrescentando que, mesmo que haja uma consciência cada vez maior sobre como dados pessoais são utilizados, nem todas as pessoas tem as mesmas preocupações – o que torna a discussão ainda mais importante em tempos de pandemia.
“É vital que qualquer aplicativo, especialmente aqueles desenvolvidos em tempos de crise, não presuma que todas as pessoas se sintam da mesma maneira”, aponta. “Educar o público sobre as razões pelas quais quantidades limitadas de dados pessoais podem ser usadas para uma finalidade específica para ajudar no desafio da Covid-19 é um bom começo.”
RESPONSABILIDADE
Como mudar o atual cenário em relação a dados abertos e garantir a abertura dos mesmos em uma pandemia, considerando os diversos desafios que a atual situação apresenta? Segundo Jeni, a responsabilidade por avançar nesta agenda não é de alguns indivíduos, organizações ou setores.
“Empresas, governos, comunidades e cidadãos têm seu papel a desempenhar no que é agora uma questão [relevante para todos os assuntos]. A coordenação e eficácia disso só acontece quando a abertura e a transparência são priorizadas em todas as etapas”, ressalta.
Existem muitas organizações, desde grandes empresas de tecnologia, o grupo chamado Big Tech, até startups, que mantêm dados comportamentais que, se anonimizados e abertos, poderiam ser úteis no combate ao vírus, diz a especialista.
“Organizações como a OMS e órgãos de saúde pública em todos os países precisam demonstrar o que é possível, abrindo dados com segurança, educando o público e as empresas e construindo abordagens das melhores práticas para o compartilhamento de dados”, explica. “Precisamos evitar uma situação onde apenas aqueles que detêm [o poder] abordam o que é uma questão global.”
Sobre o papel das Big Tech em garantir a transparência em um cenário onde muitos se informam através de suas plataformas de mídias sociais, o ODI mantém a posição de que estas empresas têm o ônus de garantir que informações falsas, que podem prejudicar usuários e especialmente em um cenário de crise, não estão sendo propagadas.
Jeni ressalta que é necessário que estas empresas utilizem dados que mantêm sobre o comportamento de seus usuários de forma a beneficiar a todos e que progresso está sendo feito nesse sentido. Como exemplo, a diretora da ODI cita os esforços da Google, Apple e Citymapper, que lançaram recentemente relatórios de mobilidade que podem ser usados para monitorar quantas estratégias diferentes limitam o movimento em e para lugares diferentes.
Outro exemplo é a abertura de dados sobre conectividade de banda larga nos Estados Unidos pela Microsoft, como tentativa de ajudar a identificar áreas em que as pessoas têm menos chances de trabalhar em casa com eficiência.
“Iniciativas como estas podem ajudar a garantir que as autoridades públicas saibam a melhor forma de responder às necessidades das pessoas, e apoiar empresas e comunidades a navegar por uma transição rumo a um novo normal”, detalha.
“Qualquer resposta coletiva [à crise] deveria passar por empresas compartilhando dados pertinentes, considerando o papel que elas têm desempenhado há anos, de ter uma janela para as vidas de todos nós.”
FUTURO
A transparência e abertura de dados são pilares fundamentais de uma economia pós-coronavírus: segundo a vice-presidente do ODI, nessa atual navegação em mares turbulentos, dados são o nosso porto seguro.
Organizações setoriais e entidades regulatórias deveriam estar ajudando as empresas que representam para trazer dados sobre estes setores como parte da resposta às atuais circunstâncias e para a retomada: “Empresas de transporte, energia e água, manufatura, o agronegócio e outros têm informações valiosas sobre as necessidades e a capacidade de resposta a diferentes condições”, avalia.
O problema é que abrir e compartilhar dados vai contra os instintos competitivos de muitas empresas. Porém, Jeni acredita que o atual momento apresenta uma oportunidade de desafiar estas tendências e destravar o valor dos dados para o bem comum à medida que o mundo lida com os desdobramentos da pandemia.
“Nenhuma amostra ou banco de dados pode capturar toda a complexidade do impacto que a Covid-19 terá sobre nossas sociedades e economias à medida em que nações preparam a abertura – muitas organizações têm acesso privilegiado a uma peça do quebra-cabeça”, aponta. “É apenas compartilhando essas múltiplas peças que poderemos ter esperança de ver a imagem completa e avançar com mais confiança em direção a um futuro que, de outra forma, continua encoberto.”
Angelica Mari é jornalista especializada em inovação há 18 anos, com uma década de experiência em redações no Reino Unido e Estados Unidos. Colabora em inglês e português para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros.
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