Perspectiva é a forma como as pessoas enxergam o mundo ao seu redor. Este conceito, que é muitas vezes entendido como realidade, é formado por um conjunto de elementos. Estas peças do quebra-cabeça que informa nossa capacidade de entendimento incluem nossas vivências, valores, nossos mecanismos de defesa, estado de espírito, entre outras coisas. Em termos simples, a perspectiva forma o kit de ferramentas que usamos para navegar as circunstâncias – boas e ruins – da nossa trajetória.
A habilidade de considerar diferentes perspectivas pode ser interpretada como conseguir se colocar no lugar do outro, e entender situações a partir do ponto de vista alheio. Em tempos tão polarizados, e considerando os desafios pessoais de cada um – somos todos icebergs, dos quais só mostramos a ponta – penso que esta é uma das competências socio-emocionais mais importantes do nosso tempo.
Neste contexto, de entendimento do ponto de vista de cada um, uma das principais responsabilidades de líderes é impulsionar pessoas a atingirem seu potencial e alcançarem sucesso profissional. No entanto, em minha trajetória até aqui, encontrei muitas pessoas que enfrentavam grandes problemas como dificuldades familiares e toda sorte de questões graves que se apresentavam como grandes desafios para o desenvolvimento profissional. E mesmo frente a esses obstáculos, desistir não era uma opção para estes indivíduos, que não raro se inspiraram em alguém, e pensaram: “sim, é possível”.
Por outro lado, também conheci muitas pessoas extremamente privilegiadas, com situações financeiras e pessoais estáveis, que carregam consigo uma “nuvem pesada”. Para estas pessoas, aparentemente nada dá certo, e poucas possibilidades são capazes de gerar ânimo e movimento, do ponto de vista pessoal ou profissional. Considerando a importância de perspectiva em promover mudanças de mentalidade, uma das coisas mais importantes que podemos fazer é ouvir pontos de vista e vivências totalmente diferentes das nossas.
Quando nos colocamos neste lugar de escuta, é possível começar a olhar nossa própria situação de forma diferente, quando achamos que nosso trabalho não está legal, ou mesmo quanto nos vemos tentados a reclamar de barriga cheia. Em tempos de “you only live once”, é importante pensar no que é realmente uma limitação, e o que fazemos com os desafios que se apresentam pelo caminho.
Para avançar esta provocação, nada melhor do que ouvir quem tem o que dizer sobre o assunto, com experiências de vida reais. Como parte deste convite à reflexão sobre a importância da positividade trago aqui a história de Anderson Rodrigues, brasileiro nascido na favela da Rocinha, que hoje ocupa uma posição de liderança na Burger King, e vive em Miami. Nossa conversa e reflexão começou a partir do quadro abaixo, feito pelo artista Pirecco como agradecimento pela participação de Anderson em uma pesquisa de Harvard, sobre o impacto da violência na educação.
Esta intrigante pintura em nanquim ilustra momentos importantes de uma trajetória de vida, que vem de encontro ao tema desta coluna, e que Anderson conta em primeira pessoa a seguir.
Quando olho para esta pintura, que ocupa um lugar de destaque na minha casa, não raro me vejo refletindo sobre a conexão entre as dificuldades que atravessei e a necessidade de ter muito foco para poder contornar os reveses da vida. Neste exato momento, estou traçando estas linhas em Miami, Flórida – e é inevitável pensar no caminho percorrido para chegar até aqui.
Nasci na Rocinha, de pais cearenses que decidiram mudar para o Rio para tentar melhorar a vida dos filhos. Minha infância na favela foi feliz, porém cheia de peculiaridades: entre uma e outra brincadeira de rua, driblávamos a violência sempre à espreita, e as cenas típicas da desigualdade, a confusão entre o pavor da polícia da sociedade, e a função dela dentro de uma favela. Os turistas gringos subindo o morro de jipe, tirando fotos de nós na rua, me fazendo sentir um animal num safári. Tudo isso junto e misturado, dentro e fora de mim.
Por outro lado, eu navegava aquela realidade de uma forma diferente, que inclusive trouxe muitas reflexões sobre identidade e a navegação em um contexto complexo. Afinal, eu era constantemente testado pela polícia, sob o pretexto de supostamente ser um playboy da Zona Sul entrando na favela para comprar drogas. E para que os filhos evitassem esse exato destino, das drogas, minha mãe buscou todo tipo de oportunidade para os filhos. Muitas vezes, não fazia ideia de como aproveitá-las, mas insistia, para que fôssemos em frente mesmo assim. Essa atitude ditou muitos dos rumos da minha vida.
Com estas oportunidades, comecei a ter mais contato com o asfalto. Na primeira delas, através de um funcionário que trabalhava no clube do Botafogo, minha mãe conseguiu um lugar em um curso de polo aquático. Uma atividade que nem de longe tinha relação com a minha realidade até então – tanto que, quando o professor pediu para que eu mostrasse se sabia nadar, entrei na piscina e caí feito um prego. Mesmo com aquele vexame inicial, não desistiram de mim: ganhei um bolsa de natação, e quando me dei conta, estava treinando mais de cinco horas por dia e acabei por entrar na seleção carioca de polo aquático.
Mas a vida dá seus tapas na cara e, entre a pressão em casa para contribuir para o orçamento ou estudar, larguei o esporte. A esta altura, tive um lampejo do que seria uma nova oportunidade, de estudar no Colégio Teresiano, no Rio, que é o Colégio de Aplicação da PUC. Mas mesmo sendo o que pode ser considerado como um CDF na escola pública, me foi dito que eu não conseguiria chegar nem na metade do processo seletivo. Seguindo a lógica da minha mãe, de ir com medo mesmo, fiz uma prova de português fenomenal, mas com um resultado em matemática desesperador e de inglês pior ainda. Mesmo com esta performance longe do esperado, a direção focou no que eu consegui fazer, e me ofereceu um lugar no colégio e um desafio: de acompanhar a turma com muito esforço, pois meu nível escolar estava muito atrás do padrão de escola particular.
Apesar desta chance de ouro, o estudo no colégio não foi fácil. Como não havia necessidade de uniforme, estudantes usam roupas de grife que eu obviamente não tinha, tampouco dinheiro para comprar o lanche na cantina na hora do intervalo. Passava o dia com pipoca no estômago, e desenvolvi todas as estratégias possíveis para me sentir melhor. Por outro lado, enfrentava dificuldades práticas gigantescas, como a falta do inglês, que todos os estudantes falavam, sendo filhos de algumas das famílias mais tradicionais do Rio. Sabendo do caso, o pai de um colega ofereceu uma bolsa na rede de escolas de inglês da qual era dono, e a história se repetiu: finalmente consegui aprender a língua e, no fim das contas, acompanhar as aulas na escola.
Neste processo, tive insights no dia a dia do que era a vida fora da favela, tanto na convivência com as pessoas no colégio, quanto ao ver suas realidades: visitava casas de colegas para estudar que tinham múltiplos quartos, enquanto eu e minha família dividíamos um cômodo na Rocinha, enfrentando toda sorte de desafios. Além disso, enfrentei questões muito complexas de identidade, perseguição e pertencimento. No linguajar da favela, eu levava uma vida de otário: estudava, não ia para os bailes funk, ficava de fora de todas as coisas legais, e isso cobra um pedágio na vida de um adolescente. Estas escolhas geraram renúncias e muitas vezes, eu não era bem aceito nem pelos amigos da favela e nem pelos amigos do asfalto, então precisei andar sozinho. Percebi que a resiliência e a força de vontade que a vida me ensinou a ter eram as únicas opções que eu tinha.
Como parte dessa estratégia, defini metas muito claras que eram: morar fora, falar inglês e espanhol, e estudar em uma universidade de primeira linha, pois eu enxergava estes três pilares como um denominador comum das trajetórias de todas as pessoas que identifiquei como referências de sucesso. Fiz isso, e, mais uma vez, não foi simples. Foi como funcionar como um cavalo de corrida que não olha para os lados, e de tempos em tempos recebe uns tapinhas na cabeça para testar o propósito. Por outro lado, isso ilustra o poder transformador da educação, que meus irmãos também puderam comprovar: meu irmão é PhD em Sociologia e minha irmã é economista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também estudei, além de Columbia. Aliada à firmeza de propósito, a educação nos colocou em caminhos antes impensáveis para uma família de favelados.
Apesar deste aparente alinhamento dos planetas, o que descrevi até aqui é o resultado de uma jornada coletiva. E essa trajetória envolveu momentos de desespero, como as três tentativas de passar no vestibular, e quando passei, a quase impossibilidade de fazer um curso em tempo integral, que não é construído para gente pobre. Se consegui chegar até aqui, e contar esta história, devo a todas as pessoas que me ajudaram. A começar pelos meus pais, estas pessoas estiveram presentes nos bastidores, na construção que poucos veem.
Hoje baseado em Miami, trabalhando para uma organização fantástica, sou grato o tempo todo pelo que tive e tenho, por poder fazer escolhas e renúncias. Sei bem que sou uma exceção, e não me conformo com a situação de muitos dos meus contemporâneos na favela, e os que vieram antes e depois de mim. Como bem diz Celso Athayde, a favela é um ambiente de potência, e precisamos conseguir elevar muito mais pessoas. Como diz um amigo, agora que a gente subiu, precisamos mandar o elevador de volta para buscar o máximo de pessoas possível. Por este motivo, estou ajudando a Plataforma Impact [www.plataformatech.com], cujo objetivo é treinar pessoas de baixa renda para as profissões em tecnologia da informação para quebrar ciclos de pobreza em que elas estão inseridas.
Você pode estar se perguntando, como esta trajetória retratada na pintura que deu origem a esta reflexão – que aliás, abarca muito mais nuances do que caberia neste texto – me ajudou a colocar as coisas em perspectiva, e ver a vida do ponto de vista do “copo meio cheio”. Analiso todos os impasses da minha vida a partir de diferentes perspectivas. Antes, eu me preocupava com a segurança, em saber se conseguiria voltar para casa ou não. Hoje, sei que a vasta maioria dos objetivos que podem parecer desafiadores, são coisas que sei que posso fazer. Mesmo se me sentir inseguro ou com medo.
Entre a possibilidade de deixar que as circunstâncias ditem o rumo das nossas vidas e fazer algo para mudar nossa própria trajetória, creio que tudo depende da nossa definição de felicidade. Muitas vezes, ela está no churrasco, nas pequenas coisas do dia a dia, e tudo bem. Mas a felicidade também pode resultar da ação para criar o que esperamos para o futuro e nosso papel nisso. Apesar de não ser o único elemento e existirem outros fatores nesse processo de tomar as rédeas do que nos acontece, a vontade individual é crucial. Para “chegar lá”, é preciso ter responsabilidade sobre o que queremos; essa é uma das mais importantes coisas que podemos fazer – sobretudo por nós mesmos.
Marvio Portela é vice-presidente sênior para Estados Unidos, América Latina e Caribe do SAS. O executivo passou por grandes empresas como Oracle e IBM, trazendo uma vasta experiência na área de vendas e gestão de parcerias. Sua carreira no SAS teve início em 2010.
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