Apesar das sete vitórias em premiações por seu trabalho com efeitos visuais (VFX) — além do prestígio entre grupos nacionais e internacionais de cinema —, Marcelo Siqueira insiste em ser chamado pelo apelido: Sica. O diretor de efeitos visuais da série Senna, da Netflix, começou sua trajetória em 1994, desde então, participou de incontáveis projetos, entre eles o primeiro longa brasileiro de animação em 3D com visualização tridimensional, “Brasil Animado”, e o aclamado “Besouro”.
No entanto, em termos de investimento, tecnologia e “proporção”, o comando da equipe de VFX da série biográfica de Ayrton Senna foi algo inédito para o sócio-diretor e supervisor de efeitos da Mistika Post. “Uma coisa é você rodar 8 meses para fazer 80 capítulos. Trabalhar por 6 meses para produzir 6 capítulos é outra história. O objetivo é a excelência.”
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No quesito “investimento”, um fator foi determinante para uma equação que envolveu 1.164 pessoas, gravações em quatro países (Brasil, Argentina, Uruguai e Irlanda do Note) e estúdios de VFXs nos Estados Unidos, Canadá, Espanha e Brasil: Netflix.
“Quando falamos de um projeto com essas dimensões, o orçamento é uma etapa em construção. A Netflix não chegou e disse: ‘Esse é o número que você tem para trabalhar’. A empresa veio com um questionamento: ‘Quanto você precisa para trabalhar?’. Em contrapartida, eu mostrava o que seria feito e o quanto custava.”
Sica afirma que não recebeu um “cheque em branco” e nem pediu “1 bilhão de dólares”. Todavia, a boa vontade financeira da plataforma de streaming permitiu a entrega de cenas super-produzidas, como a reprodução da corrida de Mônaco em 1984 e o momento lendário em que Senna retirou as fitas adesivas da entrada de ar do radiador com as próprias mãos durante a última corrida da Fórmula 3.
Em entrevista à Forbes Brasil, Marcelo Siqueira compartilha detalhes dos bastidores da série “Senna”. Confira:
Forbes Brasil: Qual é a dimensão da produção de Senna?
Marcelo Siqueira: Eu trabalhei em grandes projetos, como uma novela para a Record com 80 capítulos e a transmissão do Rock in Rio em 2001. Porém, Senna tem um tamanho inédito, principalmente pelo tempo, desde a infância até a morte em 1994. Neste período, aconteceram diversas mudanças, dentro e fora das pistas, que precisávamos reproduzir.
Além das questões técnicas, existe a responsabilidade de tocar um projeto que envolve Ayrton Senna. Trabalhamos com uma imensa atenção aos detalhes e aos fatos. Isso, em partes, até traz limitações criativas, mas engrandece a obra.
Em linhas gerais, não preciso dizer muito, 1.164 pessoas trabalharam na equipe de VFX, isso já mostra o tamanho do projeto. Reconstruímos todos os autódromos, com suas respectivas mudanças ao longo dos anos. Nas cenas de Suzuka em 1988, 1989 e 1990, por exemplo, só o prédio se mantém igual, tudo ao redor muda a cada edição.
Filmar também não foi simples, porque existiam algumas possibilidades, entre elas a captação tradicional, a troca de fundo na pós-produção, a opção de fazer tudo com computação gráfica e os painéis de LED.
No caso das filmagens com os painéis de LED, construímos uma estrutura para que o carro tremesse enquanto o Gabriel gravava, isso daria a segurança necessária, porque não poderíamos colocar um ator para correr de fato, e um pouco do desconforto real de uma pista.
FB: Você poderia citar com mais detalhes quais ferramentas tecnológicas foram utilizadas pela equipe de efeitos visuais?
MS: O Unreal [tecnologia gráfica utilizada no desenvolvimento de jogos] foi a base para o projeto. Quando comecei a trabalhar, em setembro de 2022, eu precisava visualizar o que seria feito. Foi aí que o Unreal entrou, para construir e ensaiar os próximos passos.
Depois, isso evoluiu para uma equipe só de montagem de cena com o Unreal, para experimentar como as gravações seriam feitas, recriadas e assim por diante. Uma vez que a pré-visualização terminou, utilizamos o mesmo projeto gráfico para gravar as cenas com o LED, com todas as indicações de movimento, de trecho da pista, de câmera, de iluminação, para que tudo ficasse hiper-realista.
A mesma coisa aconteceu com os carros. No começo, tínhamos 22 carros construídos, que eram majoritariamente do Senna e de seu principal opositor. Mas em alguns episódios, mais carros apareciam, esses foram construídos com computação gráfica.
Por fim, quando vamos para a pós-produção tradicional, existe todo um trabalho de montar objetos de cena que não existem.
FB: Quais são os segredos da produção? Quais momentos importantes foram produzidos pela equipe de VFXs?
MS: O mais perto que alguém pode chegar de um piloto durante uma corrida é com a transmissão de uma câmera grande angular que fica acoplada ao carro. Então, nosso objetivo era o de aproximar o público do Senna. Então, muitas cenas close-up precisaram do auxílio da equipe de VFX.
Eu também posso elencar inúmeros momentos em que as pessoas não sabem quais técnicas nós usamos, porque muitos poderiam ter sido produzidos de diferentes maneiras. Isso virou uma carta na manga.
Tem uma coisa que o Vicente Amorim [diretor-geral de Senna] insistiu desde o começo: a fidelidade às imagens de arquivo. Então, quando eu estava montando, eu me preocupava com cada detalhe, com cada curva, se a continuidade do movimento era precisa. Entãi, quando juntamos tudo deixamos de distinguir o que é real e o que é ficção.
FB: Como foram as gravações das cenas com chuvas intensas?
MS: Existe uma complexidade muito grande em produzir cenas com chuva. Imagine que os carros correm a 120km, ou algo assim, logo, você precisa de muitos metros de chuva e, consequentemente, litros de água.
Para a corrida de Mônaco em 1984, a quantidade era absurda, foram cerca de 60 mil litros de água, 30 para filmar e 30 de reserva.
Para entregar a corrida completa, interpolamos trechos filmados no autódromo, com cenas feitas por computação gráfica e ainda finalizamos com o LED.
No caso do LED, especificamente, encapamos todos os painéis para reproduzir a chuva no estúdio, com o objetivo de captar detalhes como a chuva escorrendo nos capacetes.
FB: Como os efeitos especiais reproduziram os “super-poderes” do Senna?
MS: Desde os primeiros tratamentos com o roteiro, o Vicente quis trazer esse lado do Senna, porque ele tinha essa percepção de tempo diferente.
Contam uma história de que uma criança foi pedir um autógrafo para o Senna e ele disse: ‘Eu vi você na curva’. Como alguém correndo em uma pista reconhece uma pessoa na arquibancada?
O Senna contou em uma entrevista que ele era guiado por uma espécie de transe. A partir daí vem a demanda para a equipe de efeitos especiais.
Para recriar esse “super-poder”, além da imagem em câmera lenta, dilatamos a cena, criando um efeito óptico que empurra a perspectiva para trás. Além do jogo de luzes e sons.
FB: Do seu ponto de vista, quais foram os principais desafios e vitórias da produção de “Senna”?
MS: Em um projeto deste tamanho, tem muita coisa que pode dar errado. Tudo foi desafiador, todo o dia tinha algo para se repensar e encontrar uma solução.
Mas o tempo de planejamento fez diferença, porque pudemos visualizar todas as possibilidades, ao mesmo tempo que construímos, desconstruímos. No geral, acho que a gente não vivenciou nenhum grande problema.
Bom, meu maior orgulho, apesar de clichê, foi contar a história do maior ídolo nacional de uma forma tão respeitosa, com todo o cuidado para que ninguém pudesse falar mal. Poder levar aqueles momentos para pessoas que não estiveram presentes, para as novas gerações, também é especial.
Vou resumir um dos trechos que eu mais gosto em uma corrida: Mônaco 1984. Para mim, esse momento é envolto por várias questões, a primeira é emocional, por ter visto quando era criança com o meu pai. O desafio técnico também foi emblemático, eu bato palma para todos os envolvidos. E, para finalizar, essa corrida coloca o Brasil em outro patamar, mostramos que temos entregas para bater de frente com qualquer outro lugar do mundo.
FB: Vem aí alguma inscrição em uma premiação internacional?
MS: Deus te ouça. Imagina que legal todo mundo torcendo pela mesma coisa de novo?