Com a formalização por parte da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) de um processo para analisar a legalidade das práticas da Tools of Humanity, startup de Sam Altman que vem escaneando a íris de brasileiros em troca de dinheiro, o tema ganhou maior repercussão nos últimos dias.
A empresa oferece, em mais de 40 pontos espalhados na cidade de São Paulo, cerca de R$750 em formato de uma moeda virtual chamada WDL e um certificado de que você é um ser humano. Para a ANPD, os dados pessoais biométricos, tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar constituem dados pessoais sensíveis.
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Ronaldo Lemos, advogado e especialista em tecnologia, vai na mesma linha: “há inúmeras outras empresas que certificam a identidade das pessoas online no país. Tanto é que precisamos fazer nossa biometria facial o tempo todo, seja no celular, em vários aplicativos ou em estabelecimentos”, destaca.
Ele reforça, no entanto, que a questão “é saber se a legislação brasileira está sendo seguida, o que inclui a Lei de Proteção de Dados e o Código de Defesa do Consumidor, especialmente depois que os dados são coletados.” Em entrevista, Lemos esclarece alguns pontos sobre o serviço da Tools for Humanity e alerta sobre a urgência de não banalizar dados pessoais, independentemente do formato.
Forbes Brasil – Considerando a regulação brasileira, em quais pontos a Tools for Humanity está infringindo a Lei? Ou ainda não é possível afirmar isso?
Ronaldo Lemos – O serviço que a Tools of Humanity se propõe a prestar não é ilegal no Brasil. Há inúmeras outras empresas que certificam a identidade das pessoas online no país. Tanto é que precisamos fazer nossa biometria facial o tempo todo, seja no celular, em vários aplicativos ou em estabelecimentos. A questão é saber se a legislação brasileira está sendo seguida, o que inclui a Lei de Proteção de Dados e o Código de Defesa do Consumidor, especialmente depois que os dados são coletados.
FB – Qual a gravidade de um processo de coleta de uma informação que vai além de um dado, que passa por uma característica biológica de uma pessoa, quais as implicações isso pode ter no futuro?
Lemos – Infelizmente o sistema de identidades oficial no Brasil é caótico. Todos os dados dos brasileiros vazaram na internet e estão disponíveis para bandidos. Isso inclui nome, endereço, CPF, RG, números de celular, participações em empresas, nome do pai e da mãe, e até mesmo cópia dos documentos. Chamei isso de “o vazamento do fim do mundo”. Por causa disso, ficou muito mais difícil e caro comprovar a identidade de uma pessoa no Brasil. Essa é a razão para estamos assistindo a uma proliferação de empresas que partiram para outras formas de comprovação da identidade, como a biometria, para determinar que alguém é quem diz que é. A Tools for Humanity é só uma dessas empresas. Hoje em dia vemos a biometria facial sendo usada de forma leviana, até para entrar em prédios comerciais em São Paulo e outras cidades. Antes de entrar a pessoa é obrigada a cadastrar a sua face é só entra e sai com o rosto sendo escaneado novamente. Para onde vão esses dados? Como eles são armazenados e geridos? Acho essa questão igualmente preocupante.
FB – O argumento da empresa é que a pessoa, com sua identidade verificada, passa a ter acesso a vários serviços digitais. Esse argumento se sustenta? Ou a TFH está se baseando em um futuro ainda não existente?
Lemos – A Tools for Humanity foi criada no contexto do avanço da inteligência artificial. Com a IA vai ser cada vez mais fácil simular a identidade de alguém online: o rosto, a voz, o jeito de falar e assim por diante. A empresa percebeu que a questão da identidade será central: como provar que alguém na internet é mesmo quem diz que é se tudo pode ser simulado? A empresa adotou então a identificação por meio da íris, que é muito mais difícil de ser fraudada com inteligência artificial. A premissa da empresa é essa: todas as formas de identificação que eram utilizadas até agora vão se enfraquecer por causa da IA. A experiência de caos das identidades que hoje vivemos no Brasil vai aos poucos se tornando global. Por isso a empresa decidiu coletar a íris e pagar as pessoas por essa coleta. Justamente porque sabem que em breve ser capaz de provar a identidade de alguém online vai valer ouro.
FB – Em geral, as pessoas que estão escaneando as íris são de baixa renda e em um recorte social vulnerável, isso agrava a situação?
Lemos – Sim e não. Quem somos nós para dizer para uma pessoa que está em situação vulnerável que ela não deveria decidir por si mesma e ganhar 600 ou 700 reais? Isso seria um cerceamento nocivo, especialmente considerando que o Brasil é um país extremamente pobre. Se além de não ter dinheiro a pessoa não tiver a capacidade de decidir sobre os seus próprios atos, que tipo de cidadania é essa? Em vez de impedir que pessoas vulneráveis certifiquem sua identidade digital com uma empresa privada, as autoridades públicas deveriam trabalhar para consertar o sistema vergonhoso de identidade que funciona no país e que deixa a todos nós vulneráveis a golpes. Se a identidade no Brasil fosse bem-feita e digital, como aconteceu em países como a Estônia ou a Índia, não haveria necessidade de um sistema como a Tools for Humanity. Em vez de cercear pessoas vulneráveis, o poder público deveria criar uma identidade digital decente no país.
FB – Por fim, o que você diria para quem escaneou e se arrependeu ou pretende escanear em termos de cuidados.
Lemos – Diria a mesma coisa que falaria para uma pessoa que está entrando em um prédio comercial em São Paulo e é obrigada a escanear seu rosto para entrar e sair, e ainda por cima de graça: Identidade é coisa séria. Não é para ser tratada de forma leviana. Tome decisões informadas. E lute para que o Brasil crie uma identidade digital verdadeira e que seja auto-soberana, isto é, que coloque o poder de controle sobre ela nas mãos do cidadão. Identidade digital boa é aquela que é usada para proteger as pessoas contra usos indevidos e cujo controle esteja nas mãos do usuário, e não de quem fornece a identidade.