Os diferentes tons de verde de hortaliças e cannabis transitam em meios completamente diferentes no Brasil, uma nos supermercados e outra procurando seu possível espaço na legalidade. A cannabis ainda possui paradigmas para serem quebrados e ter a sua relevância reconhecida. Mas essa etapa já está superada numa startup paranaense. A Favo, agtech que nasceu em 2018, juntou hortaliças e cannabis num mesmo projeto: como fazer um bom cultivo protegido em espaços urbanos.
Para a cannabis, a Favo adaptou uma tecnologia de manejo de plantas por meio de um “computadorzinho que, uma vez instalado em local de cultivo, começa a monitorar e controlar o ambiente”, diz o engenheiro mecatrônico, Marcelo Pinhel, 30 anos, fundador da startup. “A nossa solução se encaixa como uma luva para o cultivo protegido, porque na maioria das vezes um plantio de alto valor agregado requer uma tomada de decisão muito rápida.”
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Diferente de outros países, por exemplo o vizinho Uruguai, a legalização da cannabis ainda está em um limbo jurídico no Brasil, inclusive para fins medicinais. Mesmo assim, Pinhel vai em frente, por conta de uma demanda judicializada, mas crescente. Sua startup é uma continuidade da história pessoal. Mesmo formado na área de tecnologia, o executivo afirma que sua paixão pela natureza e tecnologia vêm desde cedo. Ele cresceu em um sítio e estudou em uma escola Waldorf, método centenário criado pelo austríaco Rudolf Steiner, onde a pedagogia integra de maneira holística o desenvolvimento espiritual, físico, intelectual e artístico dos alunos. “Encontrava nas plantas a melhor de todas as invenções, a mais perfeita de todas elas”, afirma Pinhel. “De alguma forma, sempre me inspirei nelas para minhas criações de tecnologia.”
Em um primeiro momento, o sistema automático do computador da Favo foi vendido para a agricultura urbana, mas despertou o interesse dos produtores de cannabis. A máquina, que parece um roteador de internet, é oferecida em comodato. A tecnologia aponta quais os principais ajustes que devem ser realizados para o sucesso do cultivo em estufa. Como temperatura, quantidade de fertilizante, umidade e luminosidade. Além disso, a startup oferece suporte de teleatendimento a cargo de engenheiros agrônomos.
Da pesquisa ao cultivo da cannabis
Pinhel criou a Favo depois de passar por uma grande empresa do agro. Foi daí que surgiu a ideia e o projeto de focar seu trabalho na agricultura local. “A partir desse ponto eu escolhi o problema a ser resolvido pela startup, que é trabalhar com a agricultura sustentável em ambientes urbanos”, diz ele, que começou instalando hortas em condomínios.
Mas a grande virada veio com a cannabis medicinal em 2020. A startup passou de 600 para 2000 computadores conectados ao cultivo protegido, e com clientes no Uruguai, Chile, Argentina, Austrália, Estados Unidos e Canadá, além do Brasil. A Favo participa do programa StartupPR Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), hub de inovação para startups de alta performance.
“A cannabis sempre pairava sobre nossas discussões, mas não sabíamos como poderíamos chegar lá. Especialmente por conta da regulamentação brasileira”, conta Pinhel. “Foi aí que comecei a ir fundo para entender mais sobre o uso medicinal e seu potencial. Conheci a história de famílias que mudaram completamente as suas vidas com o uso de um óleo terapêutico de baixíssima contraindicação.”
Com suas pesquisas, Pinhel não só encontrou um nicho para o seu negócio, mas também uma solução de vida. Ele é portador de tremor essencial, um distúrbio neurológico que pode causar agitação rítmica nas extremidades do corpo. Em seu caso, está concentrado nas mãos. “Desde muito novo sempre tive tremedeiras a ponto de não conseguir colocar café na xícara”, diz ele. Uma das formas mais recomendadas de tratamento é o uso do óleo extraído da cannabis. Pinhel usa de 2 a 4 miligramas por dia, mas há pacientes de doenças mais graves com até 600 miligramas/dia. Peter Grinspoon, médico e professor na Universidade de Harvard, uma das referências no assunto, afirma em artigos científicos que o uso terapêutico da cannabis pode reduzir ataques epilépticos, dores crônicas, ansiedade e até o vício em drogas como heroína. Porém, o especialista afirma que o uso mais amplo dos óleos de cannabis requer estudos mais aprofundados.
De que maneira o negócio prospera se a cannabis é ilegal no Brasil?
Um dos desafios de Pinhel para colocar a cannabis no portfólio da startup foi justamente a regulamentação no país. Embora a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) já tenha liberado a importação e a produção nacional de remédios à base da cannabis, a substância e seu uso ainda são considerados ilegais pela Lei de Drogas. “Procuramos saber o que a gente pode ou não pode fazer, como é que o cultivo legal funciona e para onde os cenários estão indo”, explica Pinhel. “Aí descobrimos que as pessoas poderiam tirar seu documento com a Anvisa para o autocultivo.”
Hoje, há organizações como a Cultive (Associação de Cannabis e Saúde pelo plantio da erva), com habeas corpus, um instrumento jurídico que garante a liberdade da entidade e seus associados o uso da planta, autorizados pela justiça e pela Anvisa. Usuário do óleo para tratamento de doenças, prescrito por médico, também podem pedir um habeas corpus preventivo, caso já cultivem a erva. Outra garantia jurídica se baseia em uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça). O órgão estabeleceu que a “posse de utensílios para cultivo de maconha destinada a consumo próprio não justifica ação penal”. São nesses espaços que a startup entra.
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O potencial no país é imenso para o cultivo protegido em ambientes urbanos. “Há um potencial de R$ 26,1 bilhões para atender o mercado brasileiro de cannabis”, diz Pinhel. Um projeto de lei, o PL 399/2015, para viabilizar a comercialização de medicamentos aguarda deliberação da Câmara dos Deputados desde junho de 2021. “Com a facilidade que o Brasil tem para o cultivo, tem um potencial sendo perdido, que pode gerar renda e mudar a vida das pessoas”. Hoje, 12 pessoas trabalham na Favo.