No capítulo de ontem (13) da novela Pantanal, exibida pela Rede Globo desde o dia 28 de março, as cenas mostram diálogos sobre culturas de cobertura e recuperação do solo, os benefícios dos sistemas agroflorestais, a chegada de um carregamento de sal para o gado, o estouro de cerca provocado por bois no pasto, a discussão sobre compra de gado e sua origem, e a aposta de investimento de longo prazo no gado marruá, em referência a capítulos anteriores em que se propõe a melhoria genética desse gado pantaneiro.
Marruá não é a denominação de alguma raça bovina, como a nelore, por exemplo — que toma praticamente todas as cenas de boiadas —, mas a expressão significa “boi bravo” ou “touro bravo”, um animal de índole arisca e indócil e, por isso, difícil de ser manejado pelos peões, além de ser tardio e pouco produtivo. “Estou fazendo investimento”, diz o personagem José Leôncio, interpretado pelo ator Marcos Palmeira, 58 anos, que vive em frequentes discussões com um de seus filhos, o Joventino, interpretado pelo ator Jesuíta Barbosa, 31 anos. Na lida, os embates verbais de pai e filho mostram um conflito de gerações sobre a utilização, ou não, de refinamento da gestão e tecnologias para desenvolver as propriedades rurais e o gado do Pantanal, presente no bioma desde a colonização do país.
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Mas essas diferenças e as várias propostas de discussões feitas pelo autor da novela, como gestão, genética, sanidade, nutrição e bem-estar, são ficção ou realidade? Em que a história criada pelo dramaturgo e escritor Benedito Ruy Barbosa, 91 anos, guarda de paralelo com a realidade do Pantanal? O bioma no qual está uma das maiores planícies alagadas do mundo, em volta da bacia hidrográfica do Rio Paraguai, tem 195.000 km², dos quais 151.000 km² se encontram no Brasil, nos estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, e os restantes 44.000 km² estão divididos entre Bolívia e Paraguai.
“No setor da pecuária, como um todo, esses conflitos acontecem em determinados momentos, mas a tendência depois disso é a fazenda pegar um ritmo de mudanças e eu tenho visto que muitas propriedades estão evoluindo nesse sentido”, diz Eduardo Cruzetta, 46 anos, com ancestrais no Pantanal desde 1850 e de família pecuarista de terceira geração. Ele também é presidente da ABPO (Associação Pantaneira de Pecuária Orgânica e Sustentável), criada em 2001, onde estão 65 grupos de pecuaristas que são donos de uma boiada entre 500.000 e 600.000 animais e que abatem, por ano, cerca de 80.000 bois. Cruzetta começou em 2009 a participar da gestão da fazenda de sua família, a Santa Fé do Corixinho, de 11.300 hectares localizados em Corumbá, no Pantanal da Nhecolândia (MS), uma de suas microrregiões. São mais 10 no Pantanal brasileiro, além dessa: Abobral, Aquidauana, Barão de Melgaço, Cáceres, Miranda, Nabileque, Paraguai, Porto Murtinho, Poconé e Paiaguás, que é a maior delas.
As tecnologias batem à porta
“A novela está trazendo questões sobre as práticas sustentáveis no Pantanal, o que é muito legal. Eu adoto na minha fazenda algumas delas. Estamos começando, por exemplo, uma área de agrofloresta, sistema complexo porque é difícil adaptar o plantio de árvores ao Pantanal. Mas é perfeitamente viável e a gente sabe que está no caminho certo”, diz Cruzetta. “Isso vai proporcionar com que a gente, no futuro, possa alcançar práticas sustentáveis tão ideais para uma pecuária forte, produtiva e, sobretudo, muito valorizada pelo consumidor, trazendo divisas para dentro das propriedades.”
O Pantanal é um bioma em que a cria é o carro chefe da pecuária, na qual os bezerros e garrotes saem, na quase totalidade das vezes, para serem engordados em outras regiões. A cria, de modo geral, é o setor mais sensível da pecuária, com fortes ciclos de preços em baixa e alta, o que leva o produtor a ganhos gerais muito apertados na atividade.
Por isso, as melhorias tecnológicas dessa etapa são tão necessárias. Se uma vaca é uma boa mãe parideira que empenha mais cedo, tem leite farto para seu bezerro e se esse bezerro tem capacidade de engordar rapidamente, o produtor encurta o ciclo pecuário, levando mais produtividade ao seu negócio. Tudo isso, que é a carga genética, deve formar um conjunto harmonioso com uma boa nutrição em pastos que produzam capim com alto teor de proteína; adição alimentar com suplementos, como grãos e minerais; manejo sanitário com vacinas para evitar e prevenir doenças e, sobretudo, com a adoção de práticas de bem-estar animal, com a lida gentil levando o bovino a uma vida de conforto térmico e de socialização com os humanos, o que confere uma carne de melhores qualidades organolépticas. O consumo de carne de um animal estressado não faz nenhum mal aos humanos, mas o organismo de um animal com alto grau de reatividade produz muita adrenalina, elevando o ph, ou seja, a acidez da carne. É o alto ph alto que deixa a carne escura, dura e seca, estragando mais rapidamente.
“Mas, no Pantanal, é a composição de seu bioma que permite um ritmo possível ditado pela natureza, mesmo com as tecnologias”, diz Cruzetta. “E é com isso que trabalhamos.” De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), 87,5% da mata nativa do Pantanal está intacta, lembrando que quase todo o bioma está dentro de propriedades privadas. A média de matas nativas dos biomas do país é de 66%. Cruzetta se refere ao conceito de boi sustentável do Pantanal, além da produção do boi orgânico, tema já abordado em vários capítulos da novela. Ele conta que nos dois últimos anos houve um desenvolvimento muito grande no manejo do Pantanal sul-matogrossense, por conta do incentivo fiscal concedido pelo governo, e que se espera, leve a uma grande evolução no manejo.
“Antes, a gente só tinha um prêmio pela produção da carne orgânica, que tem custo de produção maior. Mas as práticas sustentáveis também envolvem custos”, diz ele. Por muitos anos, o pagamento de prêmios para essa carne dependia do mercado, exclusivamente, e sem regras. Mas em Mato Grosso do Sul, desde 2018, o governo do estado concede incentivo fiscal, que vai de 2,5% no caso do boi sustentável, e de até 3,7% no boi orgânico, nesse caso com protocolo desenvolvido pelo Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária). No caso do protocolo da Carne Sustentável do Pantanal, ele foi criado pela ABPO e registrado na CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), que é a gestora dos protocolos de produção do Mapa.
“É importante trabalhar com uma cadeia produtiva estruturada e esse é um desafio para os produtores, por exemplo, na implantação das ferramentas da rastreabilidade”, diz Cruzetta. Na rastreabilidade, tema que vem sendo debatido na novela, a origem do animal é acompanhada do nascimento ao abate. “Outro exemplo são os processos de certificação que envolvem uma certa burocracia e que precisa de equipe treinada para fazer as leituras, para a adoção dessas novas ferramentas”, afirma Cruzetta. Esse desafio ocorre com mais intensidade para os pequenos e médios produtores, que são a maior parte dos donos de fazendas no Pantanal.
Pantanal para ser grande e sustentável
Fazer de pequenos e médios produtores uma comunidade de peso na pecuária também é uma missão da produtora Ida Beatriz Machado de Miranda Sá, que assumiu a presidência do Sindicato Rural de Cáceres (MT), em 2020. Embora já participasse da entidade por ser filha de pecuaristas, ela é a primeira mulher a ocupar o cargo, levando para a entidade outras mulheres que hoje ocupam posições de liderança. Ida foi destaque no ranking Forbes das Mulheres Poderosas do Agro.
“O Pantanal é muito grande. Nós, pantaneiros, estamos em três países, e se há uma característica muito distinta dos outros biomas é a distância de uma propriedade para outra e a distância das estruturas urbanas”, afirma Ida. “A logística, o sistema de distribuição de energia e de conectividade são diferentes. Há propriedades do Pantanal que não têm luz e a energia vem de geradores.” Porém, para ela, isso não impede que o produtor Pantaneiro tenha acesso à modernidade das novas tecnologias, e é isso que ela tem colocado em prática.
Ida, formada em administração, é dona da fazenda Nossa Senhora do Machadinho e quarta geração de pecuaristas. Ela acredita que as tecnologias que fazem sentido para o dia a dia do produtor, e que trazem melhorias, provocam mudança de comportamento e sua difusão se torna mais linear. No sindicato, sua equipe coordena projetos de dois programas de produção sustentável com o suporte científico e tecnológico da Embrapa Pantanal, unidade com sede em Corumbá (MS). “É isso que nos subsidia nas políticas públicas para a melhoria da segurança jurídica do produtor”, diz ela, destacando que a mudança de geração mostrada pela novela também traz uma mudança de comportamento que vai além da própria lida de campo.
Ela cita o projeto Fazenda Pantaneira Sustentável, que além da Embrapa tem como parceiros a Famato (Federação da Agricultura e Pecuária de MT), o Senar-MT (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), a Acrimat (Associação dos Criadores de MT) e os sindicatos rurais. O projeto começou em 2018 para durar cinco anos, com a realização de diagnósticos ambientais, sociais e econômicos em 15 propriedades rurais assistidas, localizadas em cinco municípios de Mato Grosso: Poconé, Cáceres, Rondonópolis, Itiquira e Barão de Melgaço.
“Nós estamos montando um modelo de gestão e tecnologia para disseminar nessas propriedades e nas demais propriedades pantaneiras. Isso também é voltado para a produção sustentável de bezerros. Realmente, é um novo olhar, de uma nova geração, inclusive com contribuições de profissionais de outros setores, com médicos, dentistas, gente do setor de finanças que investem na região”, diz ela, destacando que a busca pelo equilíbrio econômico precisa estar atrelado ao ambiental e ao social. “As questões sociais são frágeis no Pantanal, porque temos uma cultura própria, temos histórias, folclores e uma mística diferenciada que precisa ser preservada também.”
O município de Cáceres, por exemplo, tem 3.331 propriedades rurais, em 24.000 km², a grande maioria de pequenos e médios produtores. “No diagnóstico das propriedades pantaneiras, vale dizer que 80% do corpo da pecuária são de fazendas com até 200 bovinos, mas é comum as pessoas que não conhecem o Pantanal acreditarem que todo mundo tem fazendão, que todo mundo é o poderoso rei do gado”, diz Ida. “Não é.”
Em 2021, pela primeira vez na história, o Mato Grosso contou com uma legislação para a limpeza de pastagem e para a utilização de queima controlada, destinada a eliminar o substrato vegetal não consumido pelo gado e que pode provocar incêndios espontâneos nas propriedades, em caso de seca severa. “A produção é extensiva na pecuária e o produtor não consegue inserir tecnologia sem essa segurança jurídica para fazer um manejo diferenciado”, afirma Ida. Ela conta que nesse processo de chegada de forasteiros “muitas propriedades do Pantanal mudaram de mãos e com isso se foi uma parte da nossa história, da nossa cultura e do nosso orgulho de ser pantaneiro. Isso tudo vai se esvaindo.”
Ida acredita que uma boa estratégia é ter políticas para melhorar a produção pecuária do Pantanal e ao mesmo tempo promover a diversificação dessa matriz econômica com a bioeconomia e o turismo tecnológico. “O produtor pantaneiro tem tantas possibilidades de conservação do bioma, porque estamos aqui há mais de 450 anos, nós somos povos tradicionais e se conservamos até agora, porque iríamos mudar?”, pergunta ela. Isso também ajudaria a fixar as novas gerações no campo, hoje atraídas pela vida urbana. “O que acontece com os jovens é que a remuneração mais baixa vai tanto para o produtor quanto para a mão de obra, para sua equipe. Agora, quando se dá condição e estrutura há orgulho desses rapazes de serem peões de campo. Quando há estrutura, o IDH sobe”, afirma Ida. A sigla é a medição para Índice de Desenvolvimento Humano.
Assim como Cruzetta, da ABPO, Ida aposta nos sistemas rastreados como uma poupança para um futuro que pode não estar muito longe. “É o que que nós queremos, a rastreabilidade desses desses animais até o frigorífico, mas também para o mercado doméstico, além da exportação. É para isso que nós estamos nos preparando, para um mercado mais valorizado.”
Nesse ambiente de mudanças e de apostas no futuro, Ida conta de que maneira observa as transformações que estão em curso. Ela dá como exemplo a inseminação artificial, um meio para melhorar a genética animal. “O gado precisa de nutrição e de saneamento sanitário. Com isso resolvido, se um pequeno produtor não tem um tronco de contenção, o sindicato tem parcerias para levar esse tronco nas propriedades e fazer a inseminação do gado”, diz. “Estamos fazendo o diagnóstico dessa estrutura de gestão porque os pequenos empreendimentos precisam de apoio para avançarem”, afirma Ida, lembrando que nem todo grande produtor é sinônimo de avanços tecnológicos, mas que para esse público as estruturas são mais acessíveis por conta do poder aquisitivo maior. Para ela, o caminho existe: na grande região de Cáceres há um enorme banco genético de alto valor, “inclusive temos touros campeões de genética pela ABCZ (Associação Brasileira dos Criadores de Zebu), temos cerca de oito grandes centrais de genética que atuam e é com esses parceiros que vamos democratizar as tecnologias”.
Ida lembra que, embora haja cerca de 70 grupos associados ao sindicato de Corumbá, os serviços de levar melhorias às propriedades rurais não têm isso em conta: elas são para todos. “Inclusive para quem não é da nossa base, porque o pequeno produtor, aquele minúsculo com até dois módulos fiscais e que não tenha funcionário. Ele não faz parte da nossa base sindical pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), mas no nosso olhar esse produtor faz parte da nossa estrutura social, econômica e ambiental, porque estamos todos na mesma engrenagem.”
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