Nos dias atuais, há uma verdade para a qual os estudos da pecuária estão dando respostas científicas: o metano entérico, que pode também ser chamado de arroto e flatulência dos bovinos – e que é uma fonte significativa de emissões diretas de gases de efeito estufa – deve sair do papel de vilão dessa história. Uma das iniciativas para que isso ocorra foi criada há um ano, com o mais recente desdobramento em junho, quando se determinou linhas de investimentos no valor de US$ 4,67 milhões (R$ 24,3 milhões na cotação atual). A Greener Cattle Initiative está pesquisando a redução de metano entérico e tem atraído empresas interessadas na busca por soluções. Ela é fruto de uma colaboração do setor, criada pela FFAR (Foundation for Food & Agriculture Research) e pelo Innovation Center for US Dairy, nos EUA, mas de abrangência global.
A Elanco Saúde Animal, uma das principais farmacêuticas veterinárias do mundo, e que é um dos membros fundadores da Greener Cattle Initiative, tem colaborado com as pesquisas, justamente por ser um tema já de anos em seu radar. “A produção de gado não é o problema, ela é parte da solução. Mas a solução só vem se a gente conseguir melhorar a produtividade das fazendas”, diz o médico veterinário Rodrigo Ferreira, gerente de marketing da divisão de negócios ruminantes da Elanco Brasil e Cone Sul, formado pela USP (Universidade de São Paulo). Cria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a também médica veterinária, Rosemary Vidor, diretora de marketing da empresa igualmente para Brasil e Cone Sul, afirma que mundialmente há interesse sobre o que o Brasil faz com a sua pecuária. “Nós somos um hub de inovações.”
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A Greener Cattle Initiative busca por tecnologias que mitiguem as emissões de metano entérico em uma ou mais das seguintes áreas: nutrição e estratégias de manejo; abordagens genéticas e estratégias de fenotipagem; pesquisa do microbioma ruminal; ou sensoriamento e tecnologia de dados. A Forbes conversou com Rosemary e Rodrigo sobre tecnologias atuais e disponíveis aos produtores, e como elas podem mudar a realidade das fazendas ao busca por uma produção sustentável de carne bovina e leite. Confira:
Forbes: Por que fazer parte de uma iniciativa desse porte?
Rosemary: O Greener Cattle Initiative tem fundos para as pesquisas nos próximos 5 anos. Foi uma decisão global da empresa ser cofundadora dessa organização, de juntar membros que decidem por pesquisas para aliar não só o meio ambiente, mas a questão de produtividade para ajudar na resolução da fome no mundo. São pesquisas e investimentos que unem as duas práticas. São diferentes iniciativas de pesquisas que podem estar em andamento, ou que vão iniciar. E que consigam ligar exatamente o meio ambiente com a redução de emissão de gás metano e com a produtividade.
Rodrigo: O Jeffrey Simmons, nosso CEO global, sempre diz aos agentes do agronegócio que a produção de gado não é o problema, é parte da solução. Mas, a solução só vem se a gente conseguir melhorar a produtividade dos animais. Aquele animal que já está sendo utilizado para produzir carne e leite, etc, já tem um gasto no ambiente. Se a gente aumentar a produtividade, esse gasto vai ser melhor aproveitado. Aí, o setor consegue exemplificar e esclarecer melhor como funciona todos os ciclos da pecuária – como o do carbono, ou da água, por exemplo. Então, essa é a função do fundo: trazer dados que mostram mais facilmente como tudo isso funciona e como o animal está inserido dentro desse ecossistema. O animal só vai ser sustentável se produzir mais e de uma maneira melhor.
Forbes: A empresa entra nesse projeto propondo que tipo de pesquisa, soluções, etc?
Rosemary: Estamos nesse espaço de buscar soluções não só em produtos, mas de trabalhar a questão de um planeta saudável, com pessoas saudáveis e animais saudáveis. Isso nas diferentes espécies e nos diferentes tipos de solução. Trazendo para o lado da pecuária, a gente tem pesquisas de melhoradores de desempenho, como por exemplo com a narasina [em tradução simples, é uma molécula produzida pela fermentação de uma cepa de uma espécie que é fonte de muitos antibióticos, mas não é o remédio]. Ela tem demonstrado importantes resultados melhorando não só produtividade, mas melhorando o sistema digestório do bovino nos ácidos graxos, o que diminui a emissão de metano. Esse é um estudo que temos desenvolvido, cada vez mais, em parceria com a Esalq/USP e a Embrapa.
Forbes: Quanto o Brasil contribuiu nesse processo?
Rosemary:Esse melhorador de desempenho é um produto desenvolvido no Brasil, pelo hub de inovação daqui.
Rodrigo: Há no Brasil uma tecnologia de 40 anos, já utilizada, mas para os bois em confinamentos e que é usada em todo mundo. Como a maior parte do gado no Brasil é criado a pasto foi desenvolvido um produto que tem uma característica parecida, mas para ser usada justamente no pasto. São ionóforos, mas de classes diferentes [ionóforos são moléculas que favorecem o transporte na membrana celular]. Um produto vai na ração, dada no confinamento; o outro vai no sal mineral, no pasto e pensado para o Brasil.
Rosemary: Como já há dados, mundialmente há interesse pela tecnologia de pasto. Ela já foi registrada na Argentina e há estudos para outros países também.
Forbes: Como avaliam as percepções da sociedade urbana sobre a pecuária, com cobranças por sustentabilidade e colocando o setor, muitas vezes, como vilão?
Rodrigo: Isso ocorre exatamente por falta de informação. O gado é visto como vilão porque a gente não consegue, ainda, defender com dados muito estruturados o que acontece no campo. Mas isso pode mudar com tecnologia, quando a gente consegue explicar que o mesmo animal que precisaria de um hectare ao ano para poder crescer, pode fazer isso em muito menos espaço. Esse é um conceito sustentável, usar menos área e ter mais produtividade.
Forbes: Como essas tecnologias conversam com um mercado de carbono, que hoje está em construção?
Rodrigo: Com certeza esse é o futuro, de conseguir quantificar o carbono. O quanto de carbono a gente está reduzindo é a resposta que estamos em busca. Porque é uma maneira de recompensar o produtor a continuar utilizando pasto, que é uma opção sustentável, sem causar o impacto que é esperado por esse tipo de animal.
Forbes: A empresa tem buscado por metodologias de quantificação?
Rodrigo: Existem muitas metodologias, tanto que hoje você pode calcular sua pegada de carbono em um aplicativo, como o do Bradesco, por exemplo. Então, qual é a dificuldade? É na hora de quantificar, de ter uma maneira de comprovar que aquela sua metodologia realmente é baseada em fatos e que você está trazendo o benefício esperado. É disso que estamos indo atrás. Estamos nessa fase. Fora do Brasil, a Elanco já possui alguns programas, como o UpLook, que a gente lançou nos EUA, em fevereiro, e que é uma ferramenta de quantificação, de levantamento de dados . É uma das iniciativas que a gente está trabalhando para trazer ao Brasil.
Rosemary: Nos Estados Unidos, os técnicos estão em fase de validação dessa ferramenta. Lá, ela é focada em confinamento. Para o Brasil ela precisa ser validada para a nossa realidade brasileira, de gado predominante a pasto.
Rodrigo: Temos de validar a metodologia, trazer para a nossa realidade de alimentação, quais os produtos são utilizados aqui, e também, por exemplo, de produtos que são utilizados aqui e não lá, e vice-versa. Precisa ser com a nossa tecnologia para pasto e como impacta na captação de carbono. Tudo isso tem que estar bem conectado. Essa ferramenta, também nos EUA, é para quantificar o carbono. O próximo passo, que também está em desenvolvimento, é monetizar o carbono, o que já está sendo feito em parceria com uma empresa [a Elanco criou a Athian, em parceria com a incubadora de startups High Alpha]. Porque o melhor incentivo para o produtor é quanto ele consegue retornar com o uso das tecnologias, não só visando o carbono. Elas devem trazer um benefício para o produtor, aumentando a sua produtividade, e além disso melhorar a sua sustentabilidade. Ou seja, alinhar alta performance com sustentabilidade.
Forbes: Como traduzir essas tecnologias que a pecuária vem desenvolvendo para o público urbano, para que o consumidor de carne entenda os processos de sustentabilidade?
Rodrigo: Há vários pontos, mas vamos colocar foco no carbono, porque ele é importante nessa hora. O grande desafio – porque todo o mundo fala que o agro solta muito carbono para o meio ambiente –, é o entendimento sobre o seu ciclo. O carbono que é capturado pelas plantas, pela forragem, etc, é usado para fazer a planta crescer. O bovino vai e come essa planta. Aí, parte desse carbono vai para o organismo do animal, que digere esse alimento e o faz crescer. E parte do carbono ele solta no ambiente, que é o carbono que todo mundo chama de arroto da vaca, do boi.
O que os produtos da tecnologia vêm promovendo é a diminuição desse arroto do boi/vaca/bezerro, com o organismo do animal aproveitando mais o capim. O animal aproveita melhor o carbono que estava na planta, para crescer, e solta menos carbono para o meio ambiente. Só que esse carbono que ele solta no meio ambiente vai voltar para a planta, para ela crescer novamente. Então, o ciclo fica mais fechado.
O senso é: “olha, a vaca solta muito gás”. Sim, ela solta muito gás, mas ela mora no ambiente onde aquele gás (carbono) é recapturado e não tem adição de novos carbonos nesse meio ambiente. Mas outras atividades econômicas têm. No petróleo, que é um carbono capturado embaixo da terra e solto no ambiente, você só está adicionando carbono, não tem captura. O bovino, em teoria, está em um ciclo que não aumenta a quantidade de carbono no ambiente.
Forbes: Como vocês veem o futuro dessa tecnologia e seu uso?
Rodrigo: A molécula que ajuda o animal a ter uma digestão melhor e assim absorver mais carbono já está fora de patente. Existe a narasina para outras culturas e a aí a gente desenvolveu a molécula para bovinos a partir de uma molécula que já tínhamos para avicultura. Entre o desenvolvimento e aprovação foram cerca de três anos e já temos a molécula para bovinos há cerca de cinco anos. São investimentos em pesquisas que a empresa faz, independente de estar Greener Cattle Initiative, e que vem ao encontro.
Forbes: Que perfil tem esse produtor que busca a tecnologia?
Rodrigo: Geralmente é o pecuarista mais tecnológico que adota esse tipo de molécula. Do gado que é criado a pasto, menos de 20% utilizam algum tipo de suplementação, nem que seja somente um sal mineral. Então, se formos estratificando quem ainda está disposto a colocar, por exemplo, um produto no sal mineral vai a menos de 5% deles. Então, o espaço para crescimento desse tipo de tecnologia é gigantesco.
Forbes: Falta entendimento para o uso dessas tecnologias avançarem?
Rodrigo: Há vários fatores. Uma parte é o conhecimento sobre as vantagens das tecnologias, porque a suplementação do gado não é um assunto novo, ela existe há muito tempo. Só que a funcionalidade de se fazer uma suplementação mineral mudou, que é entender qualquer deficiência mineral que gado a pasto possa ter com uma alimentação só de forrageira. Entre outros motivos, como ter uma boa hidratação animal, por exemplo, o uso das tecnologias também depende muito da extensão rural, de explicar para o produtor como elas trazem vantagens.
Forbes: Por onde um produtor começa a utilizar uma tecnologia desse porte?
Rodrigo: Pode começar pelos bezerros, para que saiam mais pesados dessa fase. Mas o grande grupo que utiliza são os animais de recria, no pasto.
Forbes: Mas a recria não é um período da vida do animal cada vez mais curto, saindo da fase de bezerro direto para o confinamento?
Rodrigo: É um modelo comum fora do Brasil e é muito normal fazer isso. O modelo pode crescer no Brasil, sim, mas acredito que vá predominar o pasto como modelo sustentável, como a imagem da pecuária do país. Porque a vantagem do Brasil é justamente conseguir ter um animal de qualidade, em tempo necessário, se alimentando de capim.
Forbes: Quanto essa imagem impacta no mundo?
Rodrigo: Muito, porque no Brasil o pecuarista não depende de ter uma plantação de milho do lado para confinar um animal do nascimento ao abate. Com pasto, ele consegue combinar tudo isso muito melhor, porque o animal a pasto está no ambiente natural. No confinamento, ele não está desempenhando o comportamento natural. O animal gosta de andar, gosta de socializar, de escolher com qual outro animal socializar e isso diminui o estresse. Isso é bem-estar animal. Não é que o confinamento seja ruim, porque hoje já se melhorou muito o estresse térmico, a socialização, só que não dá para comparar com um animal criado no pasto.
Forbes: O país, como produtor de boi, em que medida deve dar respostas ambientais?
Rodrigo: É importante a gente mostrar isso lá fora e está na nossa mão esse valor. A pecuária no Brasil consegue respeitar o animal, o ambiente e as pessoas que vivem ali, que dependem dessa atividade.
Forbes: Como vocês, que são médicos veterinários, enxergam a pecuária em 10 anos?
Rodrigo: É necessário para a pecuária do Brasil adotar mais tecnologia. Não tem como continuar crescendo, produzindo, aumentando a nossa produtividade, sem adoção de novas tecnologias. Porque até aqui foi com tecnologias que o país conseguiu aumentar a produção em duas, três vezes, sem ter de aumentar, por área, o número de animais em duas, três vezes. Então, as tecnologias são o caminho para garantir que aquele mesmo animal no pasto vai produzir mais carne ou mais leite.
Rosemary: Não temos dúvida sobre as questões de sustentabilidade e que elas nos levarão cada vez mais à produtividade. Existe essa tendência crescente e haverá demanda de adoção de novas tecnologias, porque este é um mercado importante e promissor para o país.
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