De onde vem a carne vendida nas gôndolas dos supermercados, açougues ou no prato do restaurante? É impossível saber, para quase totalidade da carne vendida no país e também para a carne exportada. Esse é um dos grandes desafios da pecuária brasileira, que se vê com certa frequência em meio a embates públicos sobre a procedência do gado abatido. Por isso, rastrear cada um deles, do nascimento ao abate, é a solução para esse dilema.
Hoje, há uma articulação das três gigantes da carne (Marfrig, JBS e Minerva) visando a rastreabilidade total do rebanho bovino brasileiro, que começa a entrar na agenda dos bancos, da própria entidade que reúne a indústria da carne, a Abiec (Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne), e das políticas públicas que vêm sendo empurradas cada vez mais para modelos de sustentabilidade das cadeias produtivas. Juntas, as três gigantes faturaram R$ 463,04 bilhões em 2021, últimos dados anuais publicados e que podem ser conferidos no Forbes Agro100.
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“A rastreabilidade tem de acontecer e a gente precisa articular com os bancos para que haja financiamento e para que os produtores possam fazer isso com a participação da própria indústria frigorífica”, diz o economista Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade e comunicação corporativa da América do Sul na Marfrig Global Foods, empresa com receita líquida de R$ 85,38 bilhões em 2021.
O Brasil tem cerca de 190 milhões de bovinos, segundo consultorias como a Athenagro, e acima de 200 milhões pelas conta do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Por ano, em torno de 30 milhões de animais saem das fazendas rumo aos frigoríficos.
O país pode chegar em 2030 produzindo 11,48 milhões de toneladas de carne bovina, segundo estimativas do Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária), mas tem potencial de 14,21 milhões de toneladas. Atualmente, a produção de carne vermelha está na faixa de 10 milhões de toneladas. As exportações, que representam cerca de 30% desse volume, renderam US$ 13 bilhões em 2022 e o VBP (Valor Bruto da Produção) pecuária é estimado para este ano em US$ 381 bilhões. O dado se refere ao valor de todos os negócios que envolvem as fazendas de pecuária.
A Forbes conversou com com Pianez, que fala de estratégias já prontas para serem implementadas no país e que poderiam elevar enormemente o valor reputacional da cadeia produtiva da carne bovina. Confira:
Todas as vezes que se exacerbam as questões ambientais no Brasil, o agro é jogado no meio. A Marfrig tem um caminho?
A gente analisa o cenário do ponto de vista da política que já vem sendo adotada, principalmente nos últimos quatro anos, com o programa Marfrig Verde Mais. Com sistema de georreferenciamento, o monitoramento para controlar os fornecedores diretos (de bovinos) já controla 100% do que chega aos frigoríficos, e para a identificação dos indiretos (criadores de bezerros que vendem o gado para engorda) o índice é bastante expressivo. Por exemplo, na Amazônia ele é de 72% e no Cerrado 71%. Essa agenda, do ponto de vista das empresas, é inevitável, principalmente das empresas que exportam e das empresas de capital aberto.
Não tem como fugir da demanda dos mercados internacionais, dos investidores e dos bancos nas operações financeiras. É uma agenda que do ponto de vista reputacional pega, porque isso constantemente está na mídia, constantemente são gerados relatórios pelas entidades do terceiro setor. Hoje, a Marfrig tem 10.000 como fornecedores diretos e ativos, que são aqueles que regularmente entregam animais, em todos os biomas.
Para o setor como um todo, quais ações devem ser tomadas?
Do ponto de vista do brand Brasil (marca Brasil), para a pecuária não tem como fugir da agenda da rastreabilidade. Não é não razoável ao país, que é uma potência em produção de carne, que tem uma das pecuárias mais avançadas do mundo, do ponto de vista de melhoria genética e de método de produção, com um ativo ambiental de qualidade que nenhum outro país tem no mundo. Não faz sentido que não consiga iniciar um processo de rastreamento dessa produção.
Desde os anos 2000, a rastreabilidade é discutida no país e sempre se colocou que ela é cara para o produtor, é um custo que pesa. Ou é uma questão de gestão?
Para mim é uma questão de aplicar inteligência numa boa gestão. É óbvio que vai ter um custo, mas primeiro a gente precisa entender o que é o contexto da pecuária brasileira. Ela não é monolítica. Por exemplo, mesmo em uma determinada região, no caso a produção da Amazônia, onde seria mais urgente iniciar um processo de rastreabilidade, ela também não é um bloco monolítico de pecuária. Há características específicas no sul do Pará, no norte de Mato Grosso, para a sua região intermediária, ou na produção em Rondônia. Há características muito diferenciadas até do modelo produtivo. Tem os que se dedicam à cria, à recria e que cada vez estarão mais juntos da fase de engorda.
Como as demandas e as características são muito diferentes, é preciso entender o que elas significam para criar uma política de implementação dessa rastreabilidade. Se ela vai ser individual, a gente tem que entender, por exemplo, que no norte de Mato Grosso há uma concentração muito grande de pequenos produtores que se dedicam à cria. Muitos são assentados que precisam de apoio técnico e apoio financeiro para que possam implementar a marcação individual dos seus animais, porque vai começar lá na origem. Então, é preciso viabilizar uma política pública que dê incentivos para que aconteça, com uma regulação que faça com seja um requisito de produção, ou seja, a rastreabilidade tem de acontecer. Os bancos não podem ficar fora dessa articulação para que haja financiamento ao produtor, com a participação da própria indústria frigorífica para que se viabilize. Então, esse custo da rastreabilidade, usando um bom modelo, seria diluído ao longo da cadeia.
O Brasil já tem um instrumento, que é a GTA (Guia de Trânsito Animal), obrigatória, funciona e foi bem implementada, inclusive eletronicamente. Não seria mais fácil colocar a rastreabilidade nesse sistema?
Sim, seria fácil implementar. Mas queria trazer aqui o que aconteceu no Uruguai, que tem características muito específicas. E também a Europa ou de uma produção mais robusta, como a Austrália. Eles implementaram a rastreabilidade fazendo cortes por região. Marcaram as matrizes que iam produzir bezerros em uma determinada região e época, e todos os animais que nascessem a partir dessas matrizes, já identificadas obrigatoriamente, receberam também um brinco de identificação. Aqui seria, por exemplo, pegar uma determinada região de Rondônia que tem características específicas e começar por aí. Acredito que em um período de cinco anos para a frente já conseguiríamos ter um ciclo de bezerros identificados. Paralelamente, outras regiões entrariam em um processo gradual de identificação individual. Mas, digo novamente, é preciso uma política pública que desenhe isso, com suporte da indústria e dos bancos que querem fazer parte da solução.
Mas e a GTA, como fica?
Sim, a GTA também teria condições de entrar no esquema. A GTA, nada mais é que o movimento territorial que um animal faz, mas do ponto de vista de lotes. Se hoje eu já monitoro os meus fornecedores diretos, a gente precisaria da informação de qual foi a movimentação dos animais (no caso os bezerros a serem recriados,) que chegaram até eles. Quais foram os fornecedores de animais, pegando as regiões de origem desses animais, por lote e por território. Ou sejam, com a GTA, eu teria a identificação dos lotes e das fazendas que geraram esse lotes, e os perímetros de monitoramento geoespacial.
Que é o modelo que a Marfrig já está fazendo, de modo declaratório porque nós não temos acesso à informação pública da GTA. Mas, à medida que eu envolve o fornecedor direto e o indireto, nós vamos fazendo o mapeamento. Esse modelo, se bem gerido por uma política pública desenhada para isso, daria uma resposta extremamente robusta de identificação. O processo está pronto, mas existe uma celeuma toda, de que isso vai descaracterizar um sistema que foi criado com o objetivo sanitário.
Mas a rastreabilidade, de fato, descaracterizar a função da GTA?
Não necessariamente. Vai depender muito de como se faz isso. Porque tem que partir de uma outra premissa, que não é a premissa da exclusão. Se ao longo desse mecanismo de identificação territorial você identifica problemas, a ideia é não segregar esse produtor. Muito pelo contrário. Ele deve ser mantido na cadeia de fornecimento e uma vez identificado esse problema, ir em busca da resolução. Caso ele precisa de uma regularização documental, uma pendência numa secretaria municipal ou estadual. Entendendo o problema que esse produtor tem, a gente consegue resolver. Eu digo isso, porque aqui na Marfrig, nos últimos dois anos, a gente identificou problemas em cerca de 4.000 fazendas. Dessas, identificamos que em 2.500 que os problemas eram de regularização ambiental documental, de reserva, que foram resolvidos e as fazendas mantidas na linha de fornecimento. A gente precisa ajudar o produtor legal a ser fornecedor de um mercado que talvez, hoje, muitos não consigam atingir.
O que está acontecendo neste momento, para que essa rastreabilidade comece a andar de fato, por todos?
Tem uma articulação acontecendo nesse sentido entre os três grandes frigoríficos (Marfrig, JBS e Minerva). E uma articulação que se pretende fazer junto aos bancos. Porque muito do dinheiro que se precisa para regularizar pode ser concedido via crédito. Mas os bancos precisam redesenhar ou criar mecanismos de financiamentos que sejam mais adequados a essas necessidades da rastreabilidade. E precisa de uma interlocução com o poder público, que atualmente deve ser facilitada, juntando aos Ministérios da Agricultura e Pecuária, o do Meio Ambiente e mesmo o da Indústria e Comércio.
E isso precisa ser setorialmente e não só entre as três empresas. A Abiec (Associação Brasileiras da Indústria Exportadora de Carne) começa a retomar esse movimento da rastreabilidade, com reforço de equipe de sua diretoria de sustentabilidade (se refere à contratação de Fernando Sampaio, especialista nessa questão). Imagine fazer com que os 40 associados da Abiec embarquem nessa agenda positiva.
Claro que o produtor fica muito com o pé atrás, e com razão, porque as abordagens sempre foram de exclusão. Do tipo “vamos implantar um sistema, quem está bem fica, quem está ruim fica jogado às traças”. Não é esse o modelo defendido. A gente consegue viabilizar uma política de rastreamento via GTA como ponto de partida, ou uma política clássica como ocorreu em outros países.
Isso muda em que grau a reputação do setor?
Na agropecuária, como qualquer outro setor, não basta ser, é preciso comprovar que é. Toda a celeuma reputacional que cai sobre a pecuária como um todo é porque a gente não tem a contrapartida comprobatória de que aquilo que está sendo dito não faz sentido. Não cabe mais esse discurso que o Brasil preserva 60% da sua vegetação nativa, que grande parte desse ativo está dentro das propriedades rurais. E tudo isso é verdade. Mas precisamos de dados para mostrar que a pecuária brasileira não é responsável por parte do desmatamento e que temos dados para mostrar de onde vieram os animais abatidos. Mas se a gente identifica que em determinada região houve desmatamento, e tem boi lá, aí é caso de polícia. Em geral ocorre em área devoluta e terras públicas não destinadas onde há muita especulação fundiária.
Como agir nesse sentido?
Naturalmente, o Brasil produz de uma maneira adequada, dentro do que apregoa a legislação brasileira. A maior parte da produção – isso a gente tem dados concretos – efetivamente está dentro da legislação. E quando se identifica um problema, ele é fácil de endereçar. Mas quando a gente fala de produção pecuária no Brasil se mistura tudo dentro do mesmo pacote. É preciso, de alguma maneira, viabilizar um diálogo, principalmente junto ao setor produtivo, para que haja essa separação. E a coordenação disso tem que se dar, eminentemente, via poder público.
Qual o cenário de crescimento da demanda por carne bovina?
Ainda há uma população que hoje não tem acesso a ela, tanto no Brasil quanto no mundo, e que obviamente deseja consumir. Nos próximos anos ainda teremos um crescimento expressivo no consumo. Há oportunidades grandes de atingirmos mercados com habilitações novas e que têm sido desenvolvidos. A própria China tem um potencial enorme para fazer com que o Brasil consiga exportar mais. Esse mercado de consumo, que já é gigantesco, proporcionalmente à sua população ainda é pequeno.
Qual é a real demanda da China nas questões relativas à sustentabilidade, por ser o principal comprador da carne brasileira?
Ainda não há muito do ponto de vista prático. O que acontece hoje, efetivamente, são as demandas sanitárias. Todavia, a China faz um movimento de discussão no âmbito da China Meat Association (que reúne 64 companhias chinesas), ou mesmo nas discussões de outras entidades representativas, de que essa agenda deve entrar na pauta de uma maneira mais estruturada. E muito possivelmente, em um futuro que eu diria próximo, determinados critérios passarão a ser exigidos pela China na importação de carne brasileira. E não vai fugir à regra, que é procedência, assegurar que a carne não venha de área com algum tipo de problema sócio ambiental vinculados ao desmatamento, produção em terra indígena, em Unidade de Conservação, entre outras.
Hoje, elas já são levantadas pela China, mas não se transformaram em pré-requisitos. A indústria que exporta vai ter que estar preparada para dar respostas. Não sei precisar em quantos anos será esse futuro próximo, mas deve entrar na pauta de exportação para a China por dois motivos básicos. Porque é mais um meio pelo qual eles podem pressionar por pré-condições e preço. E porque, em determinados momentos, é um aspecto pelo qual eles já vêm sendo cobrados também.