Maneca, ou melhor, a hoje doutora Thais Maria Ferreira de Souza Vieira, 50 anos, pisou pela primeira vez no campus da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), em Piracicaba (SP), ainda criança. O pai, maestro do coral da universidade, era a ponte para os frequentes passeios de bicicleta e os piqueniques. Maneca foi o apelido que Vieira ganhou dos colegas, em 1991, como caloura do disputadíssimo curso de engenharia agronômica, uma tradição entre os aprovados à universidade e sua frenética convivência nas centenas de repúblicas estudantis. Maneca foi cunhado pela turma da república Copacabana, que neste ano completa 100 anos – a Esalq tem 122 anos.
No dia 17 de janeiro deste ano, exatos 40.927 dias depois da criação da universidade, Vieira pisou no campus ostentando mais um título em sua carreira, desta vez quebrando uma barreira histórica: ela se tornou a primeira mulher a assumir o cargo de diretora da mais prestigiada instituição de ciências agrárias do Brasil, reconhecida em vários rankings internacionais entre as primeiras universidades do mundo. A cerimônia de posse, embora já tenha assumido a função, está marcada para 17 de março. “Olha que ainda não havia dado nenhuma entrevista depois que assumi o cargo, acho que falei demais”, disse ela, ao final de uma conversa exclusiva com a Forbes, ontem (14).
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Vieira faz parte de um movimento de mulheres em cargos de comando, que é irreversível e que ganha velocidade nos dias atuais. Inteligente, esperta, antenada e focada na sua missão, é fácil ouvi-la sem se dar conta do tempo corrido. A alma do didatismo que cunha os grandes mestres está fortemente presente nas suas falas. Aliás, mesmo como diretora, ela diz que não deixará as salas de aula. “Preciso agora adequar os horários para me dividir entre as duas funções”, diz.
Sala de aula é mais um modo de dizer. Logo no começo da entrevista à Forbes, ela se desculpou pelo pequeno atraso. O motivo? Estava no campo dando uma aula prática e aberta sobre produção de tilápias para 55 alunos em curso multidisciplinar de férias, oferecido pela universidade. “É o terceiro ano que reunimos os vários departamentos da universidade para esse tipo de aula”, diz ela. “Com alunos de quatro cursos, em uma transversal interdisciplinar na abordagem de assuntos de cada cadeia produtiva.”
A nova sala de serviço de Vieira dá vista para o vasto gramado que se estende à frente do edifício construído entre os anos de 1905 e 1907, e ampliado em 1945, como é até hoje. São 182 janelas e as dela são as centrais. “Tenho uma memória afetiva desse gramado e do que ele representa”, diz ela. Essa memória tem lastro na sua longa e movimentada jornada acadêmica. Entre terminar o curso em 1995 e novo cargo, Vieira se tornou doutora em Tecnologia de Alimentos pela Unicamp (Universidade de Campinas), com passagem pelo Cirad, organização francesa de pesquisa agrícola e cooperação internacional com foco em regiões tropicais e mediterrâneas, em Montpellier.
Também foi pesquisadora visitante na Universidade da Califórnia, em Davis (EUA), e pesquisadora da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) na unidade Agroindústria de Alimentos, localizada em Guaratiba, no Rio de Janeiro. A livre docência na USP veio em 2015, depois de ganhar dois prêmios: o de excelência em docência – termo designado para o exercício do magistério –, na graduação da Esalq, e também em docência da USP, ambos em 2013. O currículo de Vieira não termina aqui, mas foi sua entrada em coordenadorias de cursos e depois como presidente da comissão de graduação da Esalq, desde 2019 até agora, que pavimentou o caminho ao cargo de diretora. São sete cursos de graduação (além de agronomia, há administração, ciências biológicas, ciências dos alimentos, ciências econômicas, engenharia florestal e gestão ambiental), duas licenciaturas, 12 departamentos de ensino e 140 laboratórios.
“Ensino, pesquisa e extensão têm muita atividade administrativa e de processos”, diz ela. Ainda assim, esse conjunto de qualificações não responde por completo a sua indicação por um grupo de professores, para que concorresse ao cargo. Aprender também faz parte de sua docência. “Ser presidente da comissão de graduação, com reuniões muito agitadas, com muito para debater e deliberar – principalmente considerando uma pandemia no meio do caminho – acabou sendo um ponto muito relevante para a decisão de apresentar minha candidatura à diretoria”, diz ela. “Curiosamente, eu também fui a primeira mulher na presidência da comissão de graduação.”
Historicamente ocupados por homens, desde as décadas de 1990/2000 os cursos da Esalq/USP têm se tornado mais balanceados. Hoje, a graduação e a pós-graduação são quase parelhas entre gêneros, sendo que em alguns cursos a presença de mulheres já supera a de homens. Mas no corpo docente isso ainda não ocorre: dos cerca de 180 professores, apenas 25% são mulheres. Em relação a essa disparidade, Vieira tem uma crença: “Já me perguntaram se é preciso romper as barreiras. Eu enxergo que não, pela hierarquia imposta pela sociedade. A gente tem de eliminar as barreiras e deixar o caminho livre para a equidade daqui para a frente”, afirma. “Estamos avançando, felizmente muito rapidamente e especialmente nessa nossa área, no setor da agricultura.”
O futuro da universidade e os desafios da educação
Para ela, embora o caminho natural de uma carreira seja a competência, as mulheres têm algumas habilidades que podem fazer diferença. “Olhar com maior sensibilidade e, talvez, uma capacidade de trabalhar com sistemas complexos acaba sendo um traços comuns a muitas mulheres, mas não que os homens também não tenham”, afirma. “São muitas as esalqueanas hoje na sociedade em cargos de comando”. Ela dá como exemplo Malu Nachreiner, formada em 2003 e hoje CEO da Bayer Brasil.
Formada em um modelo clássico de educação, Vieira e seus pares pensam no futuro da educação das ciências agrárias e suas correlatas como um mosaico que precisa de ajustes. “Minha candidatura veio com uma proposta, depois de muita discussão em um grupo de docentes sobre o que gostaríamos de ter nos próximos anos”, afirma.
Com plena consciência da complexidade que isso significa, ela afirma que adaptar as tecnologias aliadas à qualidade do ensino é seu estandarte. Lembrando que os professores da USP e de outras universidades públicas também são pesquisadores. No caso da Esalq/USP, a escola é referência no mundo em agricultura sustentável e com avanços científicos. “O grande desafio que temos agora diz respeito à atratividade dos nossos cursos, como trabalhar a linguagem para a formação cada vez melhor dos alunos usando as novas tecnologias”, afirma. “Ainda hoje de manhã conversava com outros professores sobre o chat-GPT, que precisamos trazer para o debate como um personagem. Temos de nos adaptar e entender melhor esses jovens que hoje chegam à universidade.”
E mais além, para Vieira, a instituição precisa dar respostas à sociedade por ser pública. “Somos sustentados pela sociedade, por meio do ICMS (Imposto sobre Comércio de Mercadorias e Serviços). Então, nossos valores têm que ser aderentes aos valores da sociedade.” Uma das ações para breve, ainda neste primeiro semestre, será a criação de uma comissão de inclusão e pertencimento na Esalq, como parte de uma frente importante que a USP vem implementando em toda a sua estrutura desde 2017. Além de outras ações relevantes, como rever os indicadores de desempenho acadêmico e uma maior transdisciplinaridade. “A gente consegue ter projetos mais robustos de pesquisa se formos transdisciplinares”, diz Vieira. “A inovação só acontece como inovação quando aquela tecnologia, o objeto que está sendo proposto, vai mudar o comportamento das pessoas.”
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As tarefas ainda incluem as políticas afirmativas, como as cotas, ter na agenda a contribuição aos 17 objetivos da ONU para o desenvolvimento sustentável e o protagonismo internacional da Esalq/USP. Ela dá como exemplo a Wageningen University & Research, na Holanda, que fica em uma região denominada Food Valley e que abriga cerca de 12 mil alunos de mais de 100 países. “É difícil resumir as habilidades que os empregadores procuram nos profissionais formados pela Esalq/USP, mas diria que o mercado de trabalho procura por alguém capaz de solucionar problemas complexos”, diz. “Temos que avançar um pouco mais para continuar formando esse profissional destacado no mercado. Somos bastante bons, mas podemos subir, ir pra cima.”
Aliás, essa é uma característica de Vieira desde sempre na sua relação com a imensa área verde de 900 hectares que compõe o campus Luiz de Queiroz. Vale registrar que com outras áreas experimentais, a Esalq ocupa 3.825 hectares, o que corresponde a 48,8% da área total da USP. Vieira conta que quando criança gostava de subir em uma árvore de galhos tortos nas imediações da sede e ouvia sempre seu pai dizer: “essa é uma árvore da Tais.”
Vale registrar, também, que no início desta reportagem há um pequeno deslize de informação. Até ingressar na universidade, Vieira já frequentava as suas dependências, além dos gramados, como cantora do coral em que o pai era o maestro. Ocupava a posição de mezzo soprano, um tipo de voz clássica feminina e encorpada, e que pode atingir grandes extensões. Para entender o que é, basta ouvir Beyoncé, Katy Perry, Christina Aguilera, Madonna ou Lady Gaga. “Cantei muito no coral, depois veio o balé”, afirma. Hoje, Vieira dança flamenco, um ritmo tipicamente espanhol, compassado e forte no sapateado. “É meu hobby, minha abstração, onde me descarrego para começar mais um dia de trabalho.” Nos próximos quatro anos, essa será a rotina de Vieira.