Foi uma sucessão de dificuldades que desafiaria muitas pessoas: uma mãe com dois filhos, de 2 e 4 anos, que lutava diariamente para colocar comida na mesa em período de hiperinflação na Argentina, que se repetem de tempos em tempos. Ainda por cima, essa mãe precisou lidar com a internação de seu marido, que enfrentava uma crise depressiva. Por isso, ela saiu de Salta, cidade natal do marido, para a cidade de sua família, Mendoza. O motivo? Fazia um ano que o marido, funcionário de uma vinícola, não recebia salário. A corrida para Mendoza foi buscar, na casa dos pais, ajuda para um trabalho e um empréstimo para quitar dívidas. Na década de 1980, a depressão não era compreendida, como nos dias atuais. Por isso, a família considerava seu marido incapaz de cumprir suas responsabilidades, mas ela sabia que seu companheiro estava mesmo paralisado pela doença.
Ela, então, decidiu que a única maneira de proteger seu marido, e ao mesmo tempo sustentar sua família, era deixar de trabalhar para seus pais e abrir sua própria vinícola. Desesperados, o casal vendeu tudo: apartamento, carro, trator, vacas e, além de um empréstimo de seu cunhado, conseguiram juntar US$ 40 mil (R$ 195 mil na cotação atual) para comprar uma antiga vinícola. Por causa de sua herança italiana, ela conseguiu um empréstimo do governo italiano para pequenas empresas, o que permitiu comprar equipamentos mais modernos para a vinícola. Na época, ela tinha ciência de que a Argentina estava atrasada na utilização de equipamentos para vinícolas, na comparação do que havia visto na Califórnia, no início de sua carreira, quando esteve nos EUA durante a entressafra argentina.
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Esta mulher que se chama Susana Balbo, acabou abrindo sua própria vinícola por duas vezes, ajudando a trazer as melhores práticas e tratamentos para o mundo do vinho argentino, colaborando com outras vinícolas menores para estabelecer mercados de exportação e revolucionando o vinho branco Torrontés, revelando toda sua elegância, e produzindo um Malbec tinto excepcional. Tudo isso seria impressionante por si só, mas considerando que Susana teve que começar do nada duas vezes, enquanto cuidava do marido e dos filhos, alcançar todos esses marcos torna sua jornada ainda mais extraordinária.
Um grande golpe
Depois que Susana abriu sua primeira vinícola nos anos 1990, a venda de 5.000 caixas de vinho no mercado local trouxe um certo alívio. Não era muito dinheiro, mas o suficiente para sobreviver, trazendo algum conforto por terem uma moradia e um ambiente mentalmente mais saudável para seu marido. Mas aí veio outro solavanco. Em uma negociação, o seguro sempre foi necessário para cobrir os pagamentos aos fornecedores. Susana, ela acreditava, estava coberta ao fechar uma encomenda de 25 mil caixas de vinho para serem distribuídas em restaurantes e supermercados. O golpe estava só no início.
O acordo de pagamento em oito parcelas, por meio de cheques bancários, mostrou que nem o primeiro tinha fundos. Com o segundo cheque, veio a confirmação do golpe. Ao pedir ajuda à companhia de seguros, Susana foi informada de que não seria tomada nenhuma providência antes da cobrança das oito parcelas. E veio o pior dos piores cenários: depois das oito parcelas cobradas e não recebidas, a produtora ficou sabendo que o golpe era ainda avassalador, porque havia um problema impensável para ela. O vendedor que vendeu a apólice era um golpista que havia permanecido na seguradora por apenas quatro meses e que nada poderia ser feito. Novamente, Susana estava em apuros e precisou vender sua vinícola para pagar seus fornecedores. Susane jurou que nunca mais teria seu próprio negócio.
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“Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida”, disse Susana. Isso aconteceu na mesma época em que seu marido faleceu e ela nem teve tempo de lidar com a dor da perda porque precisa pensar na educação e no futuro de seus filhos. Nessa época, Susana começou a trabalhar para outras vinícolas como consultora, um passo que começou a mudar sua vida novamente. Ela se tornou a primeira enóloga argentina a ser contratada como consultora na Europa. Foi como consultora no Reino Unido e nos EUA que passou a ouvir a frase mágica: ‘por que não está produzindo seus próprios vinhos?’. Embora inicialmente resistisse a abrir seu próprio caminho novamente, ela cedeu a partir da visão de que poderia estabelecer um mercado estável para exportação. Ela passou a acreditar que com esse foco uma nova vinícola poderia funcionar.
Os vinhos de Susana Balbo
Em 1999, ela inaugurou sua empresa no coração de Luján de Cuyo, em Mendoza, que hoje é chamada Susana Balbo Wines. A produtora lembra que, desde sua inauguração há mais de 23 anos, teve apenas uma fatura não paga. Susana conseguiu conquistar seu espaço aos poucos, por anos, para construir um negócio incrivelmente bem-sucedido, focado na qualidade.
Susana afirma que “segurança” foi a principal razão pela qual decidiu dar outra chance a uma vinícola própria. Nos seus desejos, desde que tivesse clientes confiáveis em países estáveis, poderia construir um futuro melhor para seus filhos e netos. Outra convicção era de que precisaria acumular capital na Argentina, uma vez que a economia de seu país é imprevisível. Além disso, Susana queria recuperar a liberdade de investir recursos para fazer um vinho de qualidade e de correr riscos, pois é assim que se “consegue algo especial” em um vinho, diz ela.
Com essa visão do que poderia conquistar, Susana se tornou uma produtora de vinhos reconhecida e fez muito pela Argentina. Quando trabalhava para vinícolas na Califórnia, no início de sua carreira, viu que os norte-americanos utilizavam agentes clarificantes para ajudar no equilíbrio do vinho, algo que ninguém fazia na Argentina. Ainda na época de sua primeira vinícola, Susana pediu a um de seus clientes que procurasse nos EUA um agente clarificante específico para a Argentina. A ideia era que todas as vinícolas pudessem se beneficiar. Na época, ela nem aceitou uma parceria comercial para vender o clarificante na Argentina, porque seu objetivo mesmo era elevar a qualidade de seus vinhos e dos vinhos argentinos em geral.
Não foi por acaso que em 2006 Susana se tornou a primeira mulher presidente da Wines of Argentina, cumprindo três mandatos até 2016. Nesse período, ela ajudou pequenas e médias empresas a ingressar nos mercados de exportação por meio de participações em feiras e festivais em todo o mundo, além de aumentar os eventos globais da entidade, de sete para mais de 250 por ano.
Ela também ajudou muitas vinícolas a entender as estruturas de preços em mercados-chave, como o Reino Unido e os EUA, para que soubessem precificar seus vinhos. “Percebi que não existíamos como categoria”, disse Susana, ao falar sobre os vinhos da Argentina posicionados em prateleiras na categoria ‘Outros países’, na década de 1990.
Susana também reuniu os produtores da bebida para que chegassem a um acordo referente ao estilo padrão harmonioso para o Malbec, para que mostrassem ao mercado, todos juntos, o equilíbrio ideal entre a fruta, a estrutura e a elegância dessa uva. Isso porque, se a Argentina, algum dia, tivesse sua própria categoria em uma prateleira de varejo, haveria muitas vinícolas fazendo vinhos de alta qualidade nessa prateleira do mercado. Na época, no final da década de 1990, segundo Susana, havia cerca de 10 a 15 vinícolas exportadoras, contra mais de 300 nos dias atuais.
Imagem maior que ela própria
Susana alcançou muitas conquistas ao longo de sua carreira e se hoje alguém olha o seu currículo parece que sua vida, até aqui, é uma perfeita jornada pelo mundo do vinho. Poucos acreditariam, de imediato, que sua história é permeada de momentos de grandes dificuldades. Ela é de uma época de pouco apoio e por isso teve que lidar sozinha com seus desafios profissionais, enquanto criava os filhos.
Mesmo assim, a palavra “sorte” é parte corrente de seu vocabulário, como quando foi para a universidade, sendo a primeira mulher a se formar em enologia na Argentina. Ela conta que teve um professor “incrível”, que a desafiou a expandir sua mente e criatividade ao pensar nas várias formas de lidar com todo tipo de tarefas e problemas de vinificação. Até mesmo seu primeiro chefe, o proprietário da vinícola onde trabalhou após terminar o curso na universidade em Salta, a ajudou a lidar com suas finanças quando a fraude do seguro acabou com sua vinícola.
Susana tem uma forte ética de trabalho e uma mente afiada, complementadas por uma abundância de criatividade e um espírito corajoso. Ela sabe como é ter tudo tirado dela, a insegurança do amanhã e aquela sensação de desespero de que seus filhos só tinham a ela (um sentimento terrível que não deseja a mais ninguém). É por isso que, quando fala sobre sua vida e sua vinícola, se concentra principalmente na Argentina como um todo, dizendo que era importante que as vinícolas pequenas e médias tivessem conhecimento e acesso à tecnologia para ajudar a aumentar a qualidade dos vinhos e as vendas do país.
Hoje, os filhos de Susana se juntaram ao negócio da família: José tornou-se enólogo e líder do departamento de pesquisa e desenvolvimento da vinícola, e Ana tornou-se gerente de marketing e fundadora do Osadía de Crear, um restaurante na propriedade Susana Balbo Wines. Além disso, Ana se uniu à sua mãe para criar a Susana Balbo Unique Stays, hotéis boutique de luxo em locais únicos e deslumbrantes da Argentina.
Susana Balbo produz muitos vinhos espetaculares, mas conquistou renome com o vinho branco argentino Torrontés. Os vinhos de Torrontés sempre tiveram um aroma perfumado e encantador, porém havia problemas com excesso de amargor na boca. Foi então que Susana se tornou a primeira a usar a clarificante caseína (uma proteína derivada do leite) no Torrontés, que reduz a adstringência e, ao mesmo tempo, suaviza a estrutura tânica de um vinho branco, ajudando a liberar aromas e sabores sem que o vinho precise depender muito de contato prolongado com a mucosa da boca. Susana desenvolveu formas inovadoras de trabalhar com o Torrontés na primeira vinícola em que trabalhou, localizada em Cafayate, Salta, já que 75% da produção era de Torrontés e o proprietário permitiu que ela fizesse experimentos com o vinho.
*Reportagem publicada na Forbes Argentina (tradução: João Pedro Isola).