A imagem é eloquente e mágica: videiras enroladas em árvores de molle altíssimas, em um canto da localidade de San Roque, no Vale de Cinti, na Bolívia, onde o rio costuma entrar no terreno e cobrir a terra generosa de umidade. O projeto se chama Jardín Oculto e, com muita coragem e sonhos, seus vinhos hoje são vendidos em diferentes partes do mundo.
As criadoras são duas mulheres, Mercedes Granier, 33 anos, e María José Granier, 39 anos, cuja infância foi passada entre vinhedos e uvas, o que as levou a se aperfeiçoar e aprender. Um detalhe fornecido por um especialista em projetos vitivinícolas foi a chave que as motivou a colocar as mãos na massa em um lugar especial.
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A propriedade é muito rica: possui macieiras, figueiras, árvores de molle, chañares, ameixeiras, oliveiras, galinhas, ovelhas e essas videiras particulares, todas convivendo em uma desordenada e harmônica área de 3 hectares. “Queria contar a história do vinhedo, do tipo de viticultura, e a melhor forma de fazer isso era por meio do vinho. Eu era totalmente ignorante sobre as variedades crioulas, e aí começou o desafio”, recorda María José, em conversa com a Forbes Argentina.
O caminho até lá é salpicado por montanhas verdes e úmidas, pequenas cachoeiras e, muitas vezes, densa neblina no verão. Após atravessar o túnel de Falda de La Queñua, a 3.400 metros de altitude, a beleza do altiplano se torna protagonista.
Ao chegar, pode-se apreciar Los Arbolitos, esse terroir prodigioso. Em conversa com a Forbes, María José, que foi a artífice deste projeto, contou os bastidores do terroir e do vinho único, com colheita sobre as árvores e uma variedade própria da região.
Forbes: O projeto cresceu sob a liderança de duas mulheres, você e sua irmã. Como é a relação de vocês com o vinhedo?
María José: Para Mercedes, minha irmã, e para mim, os vinhedos eram o lugar de brincadeiras com nossos primos. Passávamos férias inteiras acompanhando nosso pai e avô na adega e no vinhedo. Para nós, o vinhedo era família, diversão e liberdade. Nunca trabalhávamos no vinhedo, mas sempre ouvíamos os dois planejando novas plantações, sistemas de irrigação e preocupando-se com doenças nas plantas ou com as cheias que afetavam a colheita.
Mercedes é formada em Química, pelo Saint Mary’s College, nos Estados Unidos. Ela tem um mestrado em Enologia e Viticultura pela Universidade de Adelaide, na Austrália. Já trabalhou em colheitas na Austrália, Argentina, Estados Unidos, África do Sul, o que lhe permitiu ter um conhecimento mais profundo da vitivinicultura em nível mundial.
No meu caso, sou formada em Administração de Empresas e Literatura Espanhola pela Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. Nesta mesma universidade, obtive um MBA. Durante meus anos universitários, prometi a mim mesma que não trabalharia com a minha família e estava convencida de que não gostava de vitivinicultura.
Mas, em 2009, eu morava no México e trabalhava na hotelaria, outra de minhas paixões. Um dia, meu pai me ligou para dizer que estava perdendo a batalha contra o câncer e que queria que eu estivesse perto dele. Sem pensar duas vezes, larguei tudo e voltei para Tarija. Comecei a trabalhar na adega da família e me apaixonei pelos vinhedos e pelo trabalho. Desde então, fiz vários cursos em enologia e viticultura para entender mais sobre o setor.
F: Como vocês decidiram empreender neste vinhedo? É verdade que Cees van Casteren, Master of Wine, teve um papel importante na sua chegada ao Jardín Oculto?
MJ: Cees van Casteren, Master of Wine, veio à Bolívia com um programa de ajuda sediado nos Países Baixos. O programa consistia em abrir o mercado de exportação para o vinho boliviano. Para seu trabalho, Cees precisava entender profundamente o terroir e os vinhos da Bolívia, por isso visitou muitas regiões vitivinícolas no país. Ele esteve no Vale de Cinti, conhecido no país por sua longa tradição.
Um dia, ao voltar de sua viagem, me disse que eu precisava ir a Cinti e conhecer um vinhedo muito especial. Ele me falou sobre Los Arbolitos, e eu fiquei interessada, porque sempre vi videiras crescendo ao redor de árvores nos jardins de Tarija e não entendia por que este lugar o havia impressionado tanto.
Então, em 2014, fui ao vinhedo, que ficava a três horas da minha casa, mas do qual eu nunca havia ouvido falar. Quando cheguei lá, me apaixonei pelo lugar. Não entendia se o que via era um bom vinhedo ou não, mas sabia que era muito especial.
A propriedade tem 3 hectares. Queria contar a história do vinhedo, do tipo de viticultura, e a melhor forma de fazer isso era por meio do vinho.
F: Não só é um vinhedo exótico, mas também está localizado em uma altitude elevada. Como isso influencia nos vinhos?
MJ: O Vale de Cinti está a 2.300 metros acima do nível do mar. A Bolívia está fora do paralelo mágico onde estão Argentina, Austrália, Chile e África do Sul. Estamos mais próximos do Equador, e se não fosse por nossa altitude, teríamos um clima constante, com estações secas ou chuvosas.
A altitude gera frio, o que compensa nossa proximidade com o Equador. Temos estações bem definidas, onde as videiras entram em dormência no inverno (nota da redação: período no ciclo biológico de um organismo em que o crescimento, desenvolvimento e atividade física são temporariamente suspensos) para brotar de forma uniforme na primavera, e no verão, as uvas atingem a maturidade.
Nossas noites são sempre frescas, e os dias tendem a ser mais quentes. Desfrutamos de uma amplitude térmica típica de montanha e sofremos com algumas intempéries devido à altitude. De vez em quando, enfrentamos geadas tardias ou granizo.
F: O crescimento das parreiras enroladas nas árvores de molle, que tanto chamou a atenção de vocês, como isso afeta o crescimento das videiras e a qualidade do vinho?
MJ: Ver uma videira enrolada em uma árvore é muito comum nas regiões vitivinícolas. Muitos já viram jardins decorados com videiras ou pérgolas formadas por videiras. O impacto está em ver um vinhedo inteiro assim. Ficar na entrada do vinhedo e perceber o que você está vendo é impressionante. Sente-se como se estivesse em um paraíso.
O crescimento da videira ao redor de árvores de molle e chañares tem várias vantagens. A mais óbvia é que permite combater as inundações. Em Cinti, os vinhedos são inundados, em média, a cada 5 anos, porque as chuvas torrenciais de verão fazem o rio encher e transbordar. Quando isso acontece, os vinhedos podem receber até 2 metros de água. Isso pode ser uma calamidade quando acontece algumas semanas antes da colheita em um vinhedo convencional, mas em Los Arbolitos, o rio flui, e a fruta se mantém seca nas alturas.
Outra vantagem é que, a 2.300 metros, a radiação solar é significativa. Então, é comum que as uvas “queimem” e percam os aromas de frutas frescas. A copa das árvores gera uma sombra que ajuda a proteger um pouco os cachos da radiação solar.
Às vezes, enfrentamos geadas tardias ou granizo. Felizmente, Los Arbolitos criam microclimas que nos protegem desses desastres climáticos. A copa das árvores de molle e chañar protege as videiras do granizo e também cria um microclima onde as temperaturas não mudam tão drasticamente como nos vinhedos em espaldeira.
Então, graças a Los Arbolitos, conseguimos sanidade e frescor nas uvas, o que se traduz no vinho. Além disso, a simbiose com o molle gera, por exemplo, aromas de menta e pimenta vermelha na Negra Criolla.
F: O local oferece uma variedade única da região, a Vischoqueña, que é um cruzamento entre a Negra Criolla e Moscatel, além de outras variedades. O que pode nos contar sobre isso?
MJ: Na Bolívia, assim como em outros países vizinhos que preservaram as variedades crioulas, foram encontradas algumas variedades nativas. A mais estudada, talvez por ser a mais plantada dessas variedades, é a Vischoqueña. É o cruzamento entre Moscatel de Alexandria e Listán Prieto (Negra Criolla, na Bolívia). Trata-se de uma variedade tinta, um pouco mais escura que a Listán Prieto, com aromas florais e de frutas de caroço, como o Moscatel de Alexandria. Caracteriza-se por ter taninos altos. Nós a elaboramos principalmente como vinho branco, pois acreditamos que conseguimos uma boa harmonia com esse estilo.
No ano passado, começamos a produzi-la como vinho tinto, misturando-a com Imporeña, uma variedade que parece ser a “irmã” da Vischoqueña, mas que ainda precisa ser estudada. Essa variedade é branca e se destaca pelo aroma de chirimoya (fruta tropical local) e flores brancas. A mistura dessas variedades gerou um vinho com elegantes aromas de rosas, taninos médios e um final terroso, herança da Listán Prieto. Nilo Mejía, do Instituto de Investigaciones Agropecuarias, no Chile, realizou uma mini prospecção para identificar videiras crioulas.
Em seu estudo, ele determinou que a variedade Borgonha, assim como a Vischoqueña, parece existir apenas na Bolívia. Além disso, ele está investigando outras variedades, como a Real, a Vischoqueña Blanca e a Blanca Redonda.
F: Considerando que as uvas crescem em altura, sobre os galhos das árvores, como é realizada a colheita? Quantas pessoas participam?
MJ: Durante a colheita, nossas três ferramentas mais importantes são a tesoura, as cestas de vime e as escadas. Colhemos em duplas: uma pessoa sobe na árvore para colher as uvas mais altas, enquanto a outra colhe a parte baixa da videira e enche a caixa de uvas com a cesta de vime que vai sendo abastecida por quem está em cima. É uma experiência que atrai muitos voluntários curiosos para nos ajudar. Contamos com pelo menos 10 pessoas em cada dia de colheita. Mas ela é muito lenta, pois o vinhedo não está plantado agrupando variedades por zonas. Então, além de subir em árvores, é preciso caminhar bastante em busca da variedade que será colhida naquele dia.
Após a colheita, carregamos as uvas no caminhão que as leva para Tarija. O caminhão faz uma parada noturna no Altiplano, a 3.400 metros de altitude. Isso permite que a uva chegue fria à vinícola no dia seguinte e possa ser processada fresca. É uma época maravilhosa e, embora seja exaustiva pelos muitos quilômetros percorridos, aproveitamos a companhia dos amigos que se oferecem para nos dar uma mão.
F: Em uma entrevista, você mencionou que é um bom presságio o fato de o rio ter invadido o terreno em 2023. Como é a sua relação com a natureza em se tratando de um vinhedo para cuidar?
MJ: Na primeira vez que ouvi que havia inundações frequentes na região fiquei muito assustada. Sonia Zamora, uma das viticultoras com quem trabalhamos, explicou de forma muito sábia que a inundação traz uma renovação do solo e, embora reduza a quantidade de uvas e dilua a concentração de açúcares naquele ano, também nutre os solos, pois o rio carrega minerais. As árvores frutíferas, como figueiras, macieiras, pereiras, romãzeiras e marmeleiros, atraem os pássaros, ajudando a evitar que se concentrem em comer as uvas. As ovelhas comem as ervas daninhas no outono e no inverno, e nos fornecem o esterco para fertilizar as vinhas.
Os molles e chañares, onde crescem as videiras, são tutores e protetores delas. As inundações fertilizam nossos solos e ajudam a controlar a filoxera. Trabalhamos em um terroir complexo, e essa complexidade se reflete em nossos vinhos e nos traz muitas satisfações.
F: Qual é o método de vinificação que utilizam? Vocês produzem vinhos naturais?
MJ: Nayan Gowda lidera a equipe enológica. Jancis Robinson descreveu Nayan anteriormente como um enólogo sem portfólio. Ele viajava pelo mundo fazendo vinhos, mas quando chegou a Cinti para nos ajudar com a vindima, também se apaixonou por Los Arbolitos e pela Bolívia, e decidiu criar raízes aqui. Nayan e Mercedes seguem a escola enológica australiana, onde os vinhos devem ser limpos. Na vinícola, trabalhamos com leveduras indígenas, mas usamos sulfito mínimo ao final da fermentação para evitar que os vinhos percam suas qualidades durante os transportes sob altas temperaturas na Bolívia. O importante é mostrar Los Arbolitos e não o trabalho na vinícola, por isso intervimos o mínimo possível.
F: Quais são as linhas de vinhos atualmente à venda?
MJ: Os vinhos que temos disponíveis no momento são Vischoqueña Blanc de Noir, Moscatel de Alexandria, e Negra Criolla de diferentes vinhedos. Trabalhamos com mais 3 viticultores, além de San Roque. Também produzimos um espumante Vischoqueña Blanc de Noir. E em breve lançaremos no mercado um vinho Tannat de vinhedos convencionais de Tarija. É a variedade tinta mais plantada na Bolívia, então decidimos que, assim como as crioulas, ela merece nossa atenção.
F: O Jardín Oculto foi indicado ao prêmio Old Vine Hero Awards 2024 e você é uma das 16 indicadas para concorrer ao título na categoria enologia. O que pode nos contar sobre isso?
MJ: The Old Vine Conference é uma organização criada por Leo Austin, Sarah Abbott e Alun Griffiths para criar uma categoria de vinho credível para os vinhos de Vinhas Velhas. A ideia é gerar uma comunidade que sustente e comunique essa categoria por meio da união de pessoas envolvidas com vinhas velhas em todo o mundo, em todos os âmbitos. No Jardín Oculto, somos fãs dessa organização, porque compartilham nossa missão de promover vinhas velhas.
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Os prêmios Old Vine Hero Awards unem a indústria vitivinícola mundial e reconhecem o trabalho de quem contribui de maneira incomparável para a progressão positiva do movimento das vinhas velhas. Estar entre os 16 indicados para esses prêmios é uma grande honra. A lista de selecionados inclui pessoas de grande trajetória no mundo das vinhas velhas. Para mim, que ainda estou aprendendo muito sobre elas, é um incentivo para continuar cultivando essa paixão. Isso me faz sentir que o que estamos fazendo no Jardín Oculto tem relevância.
F: Como vê a questão de gênero na vitivinicultura? Vocês encontraram facilidade ou tiveram obstáculos por serem mulheres?
MJ: A lista de mulheres liderando a indústria do vinho está cada vez maior em nível mundial. Jancis Robinson, Sarah Abbott, María José e Mercedes López de Heredia, Laura Catena, Susana Balbo, Victoria Brond, Pietra Possamai são algumas das mulheres da indústria que são reconhecidas e que me inspiram. Quando criança, me lembro de compartilhar momentos com Isabel Mijares e nunca me perguntei se a profissão dela era para mulheres ou não. Já adulta, soube que ela foi a primeira enóloga mulher na Espanha. Ela, assim como Susana Balbo, abriu caminhos para as mulheres das gerações seguintes e, embora ainda haja muito a ser feito, penso que estamos em uma situação melhor do que a geração anterior.
Saiba o que o Jardín Oculto em números
O Jardín Oculto trabalha com vários viticultores da região para mostrar a riqueza e diversidade do terroir de Cinti. “Nosso vinhedo, San Roque, tem cerca de 3 hectares. Por causa do sistema agroflorestal e da particularidade dos “arbolitos”, todo o manejo é manual e requer em média quatro pessoas para mantê-lo”, diz María José. “A tarefa mais exigente é cortar a grama com segadora. Meu parceiro e colega na vinícola, Helios Mac Naught, é o guardião do vinhedo desde o ano passado. E, embora vivamos em Tarija, vamos todas as semanas.”
A vinícola conta com tanques de aço inoxidável, um ovo de concreto e, além disso, uma grande quantidade de ânforas de barro antigas que as irmãs estão tentando recuperar aos poucos. “Temos barris, mas não pudemos usá-los porque nossa produção é muito pequena. A quantidade que produzimos varia a cada ano. Este ano, chegamos a 5.000 litros de vinho, por causa de uma primavera muito seca, o que fez com que a produção de uvas em todo o vale diminuísse drasticamente”, diz ela.
“Atualmente, comercializamos nossos vinhos na Alemanha, Bélgica, Bolívia, Brasil, Itália e Peru. Somos imensamente gratos pelo apoio que nos deram, pois, apesar do pequeno número de garrafas que produzimos, estabelecemos relações significativas com pessoas que nos ofereceram apoio inestimável. Cada mercado nos enche de emoção de maneira única, e esperamos aprofundar essas relações”, afirma María José.
O caminho para o paraíso
“Tarija está a 90 quilômetros em linha reta de San Roque, mas o percurso de carro leva duas horas e meia. Nesse tempo, atravessamos paisagens diversas. Saindo da cidade de Tarija (a 1.900 metros de altitude), a primeira paisagem é a cordilheira de Sama. No verão, são montanhas verdes e úmidas, com pequenas cachoeiras e, muitas vezes, uma neblina densa. Essa paisagem muda drasticamente ao atravessarmos o túnel de Falda de La Queñua, a 3.400 metros de altitude, onde a dureza, a tranquilidade e a beleza do altiplano nos maravilham. Pouco depois, começamos a descer por uma reserva natural de cactos, cuja floração indica que a colheita está se aproximando.
A próxima parte do caminho é uma passagem estreita entre pedras vermelhas gigantes, que anunciam a entrada no Cañón Colorado de Cinti (a 2.300 metros). Dirigindo de Tarija até o Vale de Cinti, a aridez do Cañón Colorado está à nossa esquerda, e a vida, o rio, está à nossa direita. Olhando da estrada, o rio muitas vezes se esconde, dando a impressão de estarmos em um deserto. Mas, quando o rio aparece, podemos apreciar a riqueza vegetal de Cinti”, diz María José.