
Uma vinícola Grand Cru de 400 anos em Bordeaux está produzindo molho de soja japonês tradicional. E não, isso não é uma piada.
O Château Coutet, localizado em Saint Emilion, na França, iniciou a produção de molho de soja em 2023.
Os produtos foram lançados em maio de 2024, e todo o lote de 9 mil garrafas foi vendido em apenas três meses. Chefs franceses renomados passaram a usar o molho em suas cozinhas, como o restaurante ONOR, de Thierry Marx, em Paris, além dos estrelados Michelin Maison Nouvelle e Restaurant LALIQUE, ambos em Bordeaux.
A história começou quando a família David Beaulieu, do Château Coutet, começou a perceber os efeitos das mudanças climáticas na região. Embora a qualidade do vinho tenha se mantido, as chuvas intensas dos últimos três anos reduziram o volume de produção. Uma parte dos vinhedos foi especialmente impactada pelo clima incomum e não teve colheita. A família precisou buscar alternativas para lidar com a incerteza do futuro.
Enquanto isso, Toshio Shinko, quinta geração da família proprietária da Marushin Honke — uma tradicional produtora japonesa de fermentados com 144 anos de história em Wakayama, no Japão — esteve em Bordeaux para participar da cerimônia de premiação do prestigiado Monde Selection, instituição internacional de qualidade que se dedica a avaliar, testar e premiar produtos de consumo, com sede em Bruxelas, na Bélgica. Curioso sobre o processo de vinificação, conversou com produtores locais. “Percebi que a produção de molho de soja e de vinho têm muito em comum. Na hora, comecei a pensar em fazer molho de soja em Bordeaux.”
Mentalidade compartilhada de artesãos
Para Shinko, produzir molho de soja em uma região vinícola de classe mundial não é uma ideia absurda. Ele é conhecido por ser um inovador. Quando entrou para os negócios da família aos 20 anos, decidiu revitalizar a indústria local de molho de soja em Yuasa, cidade onde nasceu o molho de soja japonês.

O koji, fungo essencial na culinária japonesa, é fermentado em caixas de madeira de vinho
Em 2002, criou uma empresa separada, a Yusasa Shoyu, para se dedicar à produção de um molho premium feito com barris de cedro — um processo trabalhoso e demorado, considerado financeiramente inviável por muitos. Hoje, seus produtos conquistaram inúmeros prêmios no Japão e no exterior. Foi também dele a ideia de criar visitas guiadas à fábrica de molho de soja, algo inédito na época, e que hoje atrai mais de 100 mil visitantes por ano. “Se todo mundo vai para a direita, eu vou para a esquerda, porque não tem ninguém para me impedir”, ele brinca.
Em 2020, um amigo em comum apresentou Shinko à família do Château Coutet. Adrien David Beaulieu, enólogo, e sua parceira Madina Querre sentiram uma afinidade imediata com Shinko. Na época, o governo japonês concedeu um subsídio para a promoção de produtos japoneses na França, o que ajudou a viabilizar o projeto. Mas como produzir molho de soja japonês em uma vinícola tradicional francesa?
“Desde o começo, a única coisa que trouxe do Japão foi o fungo koji. Conseguimos o restante na vinícola. Por exemplo, em vez dos barris de cedro japoneses, usamos um barril de carvalho de 2.500 litros do Château Coutet”, diz Shinko. Ele completa que, para para fermentar o koji, caixas de madeira de vinho foram utilizadas para substituir as clássicas de cedro do Japão. “A soja e o trigo são cultivados organicamente na região, e o sal que usamos é o fleur de sel, rico em minerais, da Île de Ré”. Koji é um fungo essencial na culinária tradicional japonesa. Ele é utilizado para fermentar alimentos e bebidas como molho de soja, missô, saquê, vinagre de arroz e até certos doces fermentados.
A estrutura improvisada pode parecer frágil para a produção de um molho de soja premium, mas Shinko se preparou bem. “Antes de ir à França, importei barris de vinho de Bordeaux e envelheci molho de soja neles. Os resultados superaram minhas expectativas. O barril deu ao molho uma cor vermelha linda e um aroma floral elegante. O carvalho parece ter a propriedade de realçar naturalmente os sabores dos ingredientes, criando novas camadas de sabor”, afirma.
Hoje, a equipe produz dois tipos de molho de soja orgânico. Um deles é o Shinko Noire, e o outro, o Shinko Blanche. O Noire segue o estilo mais comum do molho de soja escuro, conhecido como Koikuchi. Envelhecido por 12 meses no barril de carvalho de vinho, tem uma coloração âmbar profunda e límpida. O sabor é intensamente rico em umami, com uma doçura sutil e final leve.

A equipe produz dois tipos de molho de soja, o Shinko Noire e o Shinko Blanche.
Já o Shinko Blanche segue o estilo Shiro-shoyu, frequentemente usado em restaurantes kaiseki, estabelecimentos especializados no estilo sofisticado e ritualístico da culinária japonesa, por sua tonalidade clara, que realça as cores dos ingredientes. “Ambos combinam perfeitamente com a culinária francesa. Eu recomendo harmonizar pratos com o Noire com vinho tinto e os com Blanche com vinho branco”, diz Shinko. O ambicioso projeto franco-japonês parece estar sendo um sucesso. Mas existiram desafios.
“No início, compreender o processo de produção foi extremamente difícil por causa da barreira do idioma. Levou tempo para nos comunicarmos, refletirmos, observarmos, ouvirmos, repetirmos — e nos conhecermos. Mas o senhor Shinko sempre foi incrivelmente paciente”, diz Querre.
Shinko acrescenta: “Nunca discutimos. Como compartilhamos a mesma mentalidade de criar algo do zero por meio do processo natural da fermentação, desenvolvemos uma compreensão e respeito mútuos que não precisam ser ditos”. O projeto do molho de soja já trouxe impactos financeiros positivos para o Château Coutet.
“O vinhedo mais afetado pelas mudanças climáticas foi o Notre Sainte Terre, onde hoje produzimos o molho de soja. A produção de molho de soja é muito mais resistente às flutuações climáticas do que a do vinho, e passou a ser uma parte essencial do nosso negócio”, diz Querre.
O molho de soja é comercializado na França, Bélgica, Alemanha, Suíça, Malta e, em breve, Camarões, Costa do Marfim e Cingapura. “Depois que souberam do projeto, pessoas do mundo todo começaram a me procurar para saber sobre a produção de molho de soja em seus países, incluindo Estados Unidos, Espanha, Canadá, Turquia, Rússia e China. Este é realmente um momento empolgante para o molho de soja japonês”, diz Shinko.
* Akiko Katayam é colaboradora da Forbes EUA, onde escreve sobre a indústria e a cultura gastronômica japonesas