Um dos grandes centros de comércio da antiguidade vive hoje uma situação de total escassez. Na Somália falta comida, infraestrutura e sobra violência. O país é o terceiro mais pobre do mundo, segundo estimativas apresentadas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em abril de 2021. No entanto, em meio a pandemia devastadora de Covid-19, é nesse lugar sofrido que se planta uma semente de esperança para o povo africano.
A fome, a baixa expectativa de vida da população e as altas taxas de mortalidade infantil são alguns dos problemas que a população somali enfrenta. Entretanto, essas questões, que são produto da falta de infraestrutura em diversos setores e de políticas sociais, econômicas e ambientais eficazes, se estendem por quase todo o continente. Em suma, milhões de africanos vivem à mercê de uma crise generalizada.
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A USAID (U.S Agency for International Development, Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional, em tradução para o português) é uma das várias organizações que têm como objetivo buscar soluções para os problemas da África. Atualmente, vive uma empreitada para solucionar as crises sanitária e energética da Somália, o que fará através de um projeto de ESG, que cumpre com os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. Este projeto-piloto, feito primeiro em solo somali, será replicado em outras nações africanas posteriormente. Isso será realizado através de duas parcerias. A primeira, com o GEEL (Growth, Enterprise, Employment and Livelihoods, Crescimento, Empreendimento, Emprego e Sustento, em tradução livre), um projeto que já existe na Somália desde 2015, no qual foram injetados US$ 74 milhões provenientes da USAID, que promove o crescimento inclusivo no país. E a outra parceria será com uma empresa brasileira, a Zeg Ambiental.
“A Zeg Ambiental é uma empresa que resolve o problema do lixo através de reciclagem, utilizando resíduos para produzir energia”, explicou o CEO da empresa Andre Tchernobilsky, em entrevista para a Forbes, ao chegar ao Brasil depois de uma visita de dez dias à Somália. A viagem foi o resultado de uma carta convite enviada em 2020 para a empresa pela USAID, convidando Andre a visitar o país e realizar um estudo de viabilidade técnica e econômica afim de criar uma estratégia com soluções para eliminar os lixões da região.
Os lixões a céu aberto, que contaminam o solo, ar, lençóis freáticos e, como se não bastasse, ainda são locais onde seres humanos buscam alimento, se tornam um problema ainda maior quando são incendiados. E muitas vezes, estas “montanhas de lixo” se auto incendeiam devido a reações químicas aliadas ao clima extremamente seco, emitindo gases altamente tóxicos e, consequentemente, poluindo o ar que a população respira, o que ocorre em diversos lugares mundo afora.
É o caso do lixão de Burao, cidade localizada ao norte da Somália. “É um lixão que fica no meio de uma fumaça cheia de gases tóxicos, metais pesados. É um negócio que eu nunca vi na minha vida e eu já visitei muitos aterros e lixões, não só no Brasil, mas em outros países também. Enfim, eu nunca vi uma coisa tão tóxica, tão degradante e tão poluente na minha vida”, relatou Tchernobilsky, ao visitar o local.
O lixo – de problema a solução
A USAID tem um mandato técnico que visa selecionar e implementar as tecnologias para resolver os problemas dos lixões na África. O especialista de investimento e finanças do GEEL, Abdek Idriss, contou que há mais ou menos um ano e meio, recebeu de um grupo canadense, o Malette Energy, a recomendação da Zeg Ambiental como empresa para atuar na solução energética da Somália, e percebeu que através dela, poderia resolver as questões sanitária e ambiental também.
“Nós decidimos apoiar este projeto cujo foco, em um primeiro momento, era reduzir o custo de geração de energia e aumentar o acesso à energia renovável para negócios, principalmente em produção de comida, agricultura, pecuária, pesca, contribuindo para a redução de custos e a aumento de lucros”, explicou Idriss, “Mas, logo vi o potencial de atuar na questão sanitária também”, complementa.
O projeto também foi endossado por Hussein Abdi Dualeh, umas das maiores autoridades do país no que se refere à geração de energia e sustentabilidade. Ele ocupou o cargo de ministro de Energia, ministério que ele teve que estruturar quando assumiu, entre os anos de 2015 e 2018. “Quando me contaram sobre um projeto de geração de energia a partir de resíduos, eu pensei logo que seria mais um incinerador que iria contaminar ainda mais o lugar”, revelou Dualeh, que mudou completamente de ideia após estudar a tecnologia vinda do Brasil. “No final, não podia acreditar no que os meus olhos estavam vendo. Não ia ter nenhuma poluição, era possível gerar muita energia através de um gás, além de criar bioprodutos para vender. Simplesmente sensacional”, concluiu.
A ideia é implementar no lixão de Burao um projeto-piloto, que custará em torno de R$ 130 milhões, financiados pela Omnea Inc. em parceria com o Hands of Africa, para posteriormente replicar o mesmo modelo em mais de 100 lixões em outros países da África, através de um investimento estimado em R$ 12 bilhões. O estudo técnico será patrocinado pela USAID, enquanto a outra parte do financiamento, que está em fase final de capitação, contará com fundos de investimento, alguns de caráter humanitário (um fundo da Arábia Saudita e outro do Canadá já firmaram uma carta de intenção), e de capital que está sendo prospectado com o (IFC) International Finance Corporation e o Banco de Desenvolvimento da África.
Esse projeto-piloto vai beneficiar a comunidade de Burao, ao empregar mão de obra local. “Vamos pegar o lixo plástico e transformar em resina plástica, que pode ser transformada em produto de plástico ecológico. Tudo que sobrar vai ser triturado para substituir 100% dos geradores a diesel que fornecem energia para a cidade”, conta Tchernobilsky. O empresário brasileiro também confirma a existência de um acordo entre a Zeg Ambiental e o GEEL para a inauguração da planta em um prazo estimado de 18 meses.
Ou seja, em poucas palavras, o plano é esvaziar o lixão de Burao, reciclar o plástico e utilizar a matéria orgânica para gerar energia, de forma mais barata, sustentável e limpa, substituindo o combustível fóssil por outro renovável. Desta maneira, o lixo deixa de ser um problema e passa a ser parte de uma solução.
Por que fazer isso na Somália e não em outro país africano? O alto custo de energia e a forma com que ela é gerada neste país (uma pequena parcela por meio de energia solar, e o restante com geradores a diesel, método caro e poluente), associados ao mecanismo eleito para resolver tais problemas, explicam esse panorama. “O preço da energia na Somália é um dos mais altos do planeta. Eu pago US$ 0,63 centavos por KWh aqui e na Califórnia as pessoas reclamam por pagar US$ 0,12”, explica Dualeh utilizando um exemplo que mostra com clareza a diferença entre o valor da energia o pais mais rico do mundo e em um dos mais pobres.
Solução brasileira
“A primeira vez que ouvi falar da tecnologia que transforma lixo em energia foi quando a companhia francesa Oxalor planejava implementar uma solução energética na Somália”, relatou Idriss. Mas, logo em seguida ele entendeu que a solução oferecida pela empresa não funcionaria para a realidade africana: “Era muito grande”. Assim como outras tecnologias vindas do mundo desenvolvido, problema que Tchernobilscky também encontrou ao tentar importar tecnologias estrangeiras para o Brasil.
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O CEO da Zeg Ambiental, que em 2012 tirou um período sabático para ver como o mundo resolvia o problema do lixo, concluiu que a chave para encontrar uma saída para esta questão não era somente a reciclagem, mas também a recuperação energética. Como as tecnologias já existentes não atendiam às demandas do Brasil, se uniu ao francês Jean Benoit, ex-engenheiro da Agência Espacial Francesa, para desenvolver um reator tropicalizado, o FlashBox.
O Brasil, assim como a maioria dos países africanos, possui particularidades demográficas e geográficas que diferem dos que dispunham desse tipo de tecnologia. Ambos possuem um grande número de comunidades com população abaixo dos 100 mil habitantes (o Brasil possui 5.570 municípios e em 95% deles vivem menos de 100 mil pessoas, segundo dados divulgados pelo IBGE em 2020), que muitas vezes estão isoladas e contam com uma infraestrutura extremamente precária.
Dessa forma, o FlashBox, feito para atender às demandas do Brasil, é compatível com as necessidades das comunidades africanas.
A tecnologia
O FlashBox é um reator de piro-gaseificação com um núcleo aquecido à uma temperatura que ultrapassa os 1000 graus Célsius (temperatura de lava vulcânica) e que transforma o conteúdo de carbono do resíduo nele inserido em um gás. Este gás é rapidamente transferido para uma matriz de energia e transformado em gás combustível, o syngas. Isto é, todo resíduo que tiver carbono volátil, pode ser convertido em energia através deste processo, imitando o que faz a natureza, que transforma matéria orgânica em óleo e gás ao longo do tempo por meio de temperatura e pressão.
Este reator 100% integrado no Brasil, é de fácil transporte e manuseio. Tais equipamentos ficam dentro de containers com medida padrão de 40 pés, são “plug and play” e flexíveis, automatizados e cuja instalação não demanda mais do que dez dias. “Vamos levar estes reatores do Brasil para a Somália. A planta será operada daqui do Brasil, então é um mecanismo que já faz parte da revolução 4.0, por conta dessa automação”, segundo Tchernobilsky.
Mão de obra feminina
Com o propósito de ajudar mulheres somalis em situação de vulnerabilidade, uma das exigências da Zeg Ambiental foi que 100% da mão de obra do projeto de Burao fosse feminina. E para concretizar esta missão, dois acordos foram fechados com a NAGAAD, associação que cuida de mulheres vulneráveis, e a Women in Energy Association, formada por 20 mulheres engenheiras que não conseguem trabalho na área por não serem profissionalmente aceitas pela sociedade para ocupar cargos no setor de engenharia.
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Essas mulheres vão trabalhar nas cooperativas de reciclagem, na área administrativa do projeto e na parte técnica da implementação dos FlashBox e da planta de energia. Awo Mukhtar Ali, engenheira somali, vai estar à frente do projeto, que ela considera de suma importância para o país. “O povo da Somália não tem praticamente acesso à energia, e os poucos que têm gastam entre 10 e 15% de seus salários para pagar a conta de eletricidade”, explica. Já foram criados 15 empregos para mulheres no projeto de Burao, e a tendência é de que esse número se multiplique quando os containers chegarem para serem instalados.
“Eu sempre fui uma engenheira muito profissional e trabalhadora. Esperei por essa oportunidade por muito tempo”, contou Awo que, além de alguns estágios em engenharia, nunca conseguiu trabalhos que não fossem de secretária ou telefonista.
No final das contas, resolver problemas tão importantes e que afetam um continente inteiro, é uma tarefa que demanda anos, muito esforço e não só soluções tecnológicas, mas sim uma elevação da consciência do coletivo. Quebrar paradigmas é necessário. Mas, em um lugar do mundo, em um lixão, está sendo dado um passo importante. “Nós estamos tentando fugir de ter que queimar combustível fóssil e de qualquer coisa que contribua para o efeito estufa, para poder continuar vivendo neste mundo. Não é uma questão local, mas sim global”, encerrou Dualeh, que atualmente é consultor do projeto Zeg Ambiental & GEEL.
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