
Não é nada bom ter que dizer isso num momento em que o nacionalismo está em alta histórica, mas o mundo precisa de uma abordagem coesa e coordenada — todos a bordo — se quisermoz alcançar a meta de Fome Zero até 2030. A começar por uma verdade difícil: a fome não é um problema de oferta. Se fosse, já estaria resolvido há muito tempo.
Olhe para os números: em 2021, o mundo produziu 9,5 bilhões de toneladas de culturas primárias — um aumento de 27% desde 2010. O consumo real naquele ano foi de apenas 2,5 bilhões de toneladas. Isso representa meros 26% do que foi cultivado.
Mesmo considerando a alimentação animal, biocombustíveis e desperdício, a matemática não mente: o mundo está produzindo muito mais comida do que realmente precisa. E ainda assim 733 milhões de pessoas em todo o mundo continuam passando fome.
A questão não é sobre a produção, é sobre poder e política. É sobre quem tem acesso — e quem não tem. É sobre disparidades globais diante de conflitos, choques climáticos e orçamentos em queda, que deixam algumas nações com excedente enquanto outras lutam para alimentar sua população.
A fome persiste não porque não conseguimos alimentar o mundo, mas porque os sistemas que regem os alimentos — comércio, finanças, resposta emergencial — são fragmentados, isolados e muitas vezes movidos por ganhos de curto prazo em vez do bem coletivo de longo prazo. E há gente debruçada sobre esse tema.
A Comissão Kofi Annan sobre Segurança Alimentar (KACFS)
A Comissão Kofi Annan sobre Segurança Alimentar (KACFS) foi criada em 2023 para avaliar as mudanças necessárias na governança global que impulsionem a segurança alimentar e nutricional e ajudem a acabar com a fome no mundo.
A KACFS é liderada por nomes de peso — como Elhadj As Sy (ex-secretário-geral da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho), David Nabarro (vencedor do Prêmio Mundial da Alimentação de 2018 e diretor estratégico da Fundação 4SD), H.E. Hailemariam Dessalegn Boshe (ex-primeiro-ministro da Etiópia), Sara Roversi (fundadora do Future Food Institute), a doutora Soumya Swaminathan (ex-cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde), Mariana Vasconcelos (CEO da Agrosmart) e Amir Mahmoud Abdulla (ex-diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos). Eles defendem uma reformulação total: chega de projetos improvisados, de programas isolados — chega de soluções paliativas. O que defendem é uma estratégia coordenada, de longo prazo, baseada em equidade, transparência e em realmente se importar.
Essas são as mudanças de governança propostas pelos comissários:
Fome Zero: Alimentos como Bem Público
Para erradicar a fome global, o mundo precisa tratar alimentos nutritivos como um direito humano básico — e incorporá-los ao cerne da governança global nas áreas de clima, finanças e comércio.
Alimentos são mais do que mercadorias. Sua disponibilidade não deve ser ditada por influência geopolítica ou volatilidade de mercado. Um sistema alimentar sustentável e equitativo — que transcenda fronteiras — é essencial para a estabilidade global e o crescimento econômico de longo prazo.
Ainda assim, o financiamento está fora de sintonia com a escala do desafio. O Relatório de Investimentos Globais em Nutrição do Banco Mundial, de 2024, estima um déficit de US$ 128 bilhões (R$ 754 bilhões na cotação atual) na próxima década — ou cerca de US$ 13 bilhões por ano — para ampliar as intervenções nutricionais.
Enquanto isso, instituições de ponta enfrentam severas restrições de recursos: o Programa Mundial de Alimentos enfrenta um déficit de US$ 8,1 bilhões (R$ 47,7 bilhões), o que levou ao fechamento de seu escritório na África Austral e ao corte de rações para refugiados rohingyas em Bangladesh.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura teve que encerrar projetos críticos da noite para o dia após perder centenas de milhões em financiamento dos EUA. Sem apoio renovado, milhões correm o risco de cair na fome, e décadas de progresso podem ser desfeitas.
Ao mesmo tempo, os governos falharam em cumprir compromissos de alinhar os sistemas alimentares à ação climática. Na COP29, as esperanças de mais financiamento para pequenos produtores — atores-chave na resiliência climática — foram frustradas. Com a COP30 se aproximando, a janela para priorizar os sistemas alimentares nos mecanismos de financiamento climático está se estreitando.
As políticas comerciais globais também estão agravando a crise. Aumentos recentes de tarifas e políticas comerciais isolacionistas — sem falar nas mudanças políticas erráticas — ameaçam desestabilizar ainda mais o acesso a alimentos em regiões já vulneráveis.
Ver a comida como ferramenta geopolítica, em vez de bem público, enfraquece tanto a segurança alimentar global quanto a resiliência econômica. Como disse Kofi Annan: “Os mercados abertos oferecem a única esperança realista de tirar bilhões de pessoas dos países em desenvolvimento da pobreza extrema, ao mesmo tempo em que sustentam a prosperidade no mundo industrializado.”
Um “Compromisso Comum” com a Fome Zero
Os esforços globais para acabar com a fome estão sendo minados por lideranças fragmentadas e decisões tomadas em compartimentos estanques. Governos, agências multilaterais e atores do setor privado frequentemente operam de forma independente, resultando em agendas sobrepostas, lacunas políticas e, às vezes, competição direta — consequências que têm se mostrado fatais.
Essa abordagem fragmentada alimentou uma crise de confiança entre as instituições e as comunidades que elas servem. O abismo entre declarações globais e resultados reais é gritante. “Eliminar a fome requer compromisso inabalável, ação coletiva e liderança forte”, afirma Corinne Momal-Vanian, diretora executiva da Fundação Kofi Annan.
O relatório da KACFS pede um “compromisso comum” para repensar como as decisões são tomadas e implementadas nos sistemas alimentares globais. Isso inclui alinhar estratégias nacionais, mandatos multilaterais e incentivos institucionais ao marco da Agenda 2030. O objetivo, segundo os comissários, é “Reorientar a Ação” em direção à responsabilidade compartilhada e impacto real.
Um exemplo promissor dessa mudança é a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza — lançada em 2024 na cúpula do G20 no Brasil e copresidida por Brasil e Espanha. Divulgada como o “maior esforço coletivo já feito para erradicar a fome e reduzir a pobreza por meio de políticas públicas”, ela reúne uma coalizão poderosa: mais de 90 países, a União Africana, União Europeia, cerca de 30 organizações internacionais, 10 instituições financeiras e quase 50 parceiros filantrópicos e ONGs, todos trabalhando para erradicar a fome e a pobreza até 2030.
Essencial para esse esforço será a melhoria da infraestrutura de dados. Dados precisos, atualizados e acessíveis são essenciais para mudar de políticas reativas para estratégias proativas. O Grupo de Governança Alimentar proposto pela KACFS usaria esses dados para responsabilizar os principais atores e garantir o alinhamento dentro de um marco global unificado — transformando retórica em resultados.
Prevenir a Queda na Fome
A resposta global atual à fome permanece amplamente reativa, entrando em ação apenas após o agravamento das crises. Mas a prevenção é mais inteligente, mais econômica e mais humana. “A proteção social é fundamental para abordar múltiplas dimensões da pobreza e melhorar os resultados nutricionais”, afirma a Comissão. “Ela também pode desempenhar um papel vital na mitigação de conflitos.”
A Comissão pede uma mudança: investir na construção da paz como uma estratégia central de segurança alimentar — e não apenas em ajuda emergencial quando o conflito já se transforma em fome. Isso significa apoiar organizações locais que já atuam em contextos frágeis e tornar o direito à alimentação uma prioridade política, não apenas moral.
O acesso à comida não deve depender de geografia, renda ou estabilidade da economia nacional. Governos e atores internacionais precisam estabelecer redes de proteção que realmente alcancem quem mais precisa — especialmente mães, crianças e os mais vulneráveis.
Como declarou Kofi Annan: “As verdadeiras fronteiras de hoje não são entre as nações, mas entre poderosos e impotentes, livres e acorrentados, privilegiados e humilhados. Hoje, nenhum muro pode separar uma crise humanitária ou de direitos humanos em uma parte do mundo de uma crise de segurança nacional em outra.”
A proteção social já demonstrou seu poder. Um estudo revelou que ajudou a evitar 1,01 bilhão de casos de subnutrição em 46 países de baixa e média renda. Na África, um aumento de 10% nos preços dos alimentos foi associado a um aumento de 0,7 ponto nos casos de violência contra civis — mas medidas antipobreza durante crises como a da COVID-19 reduziram esse risco em 0,2 ponto.
O relatório da KACFS propõe proteções sociais universais e sensíveis à nutrição — ancoradas em forte compromisso político e apoiadas por um Mecanismo de Proteção da Segurança Alimentar que atue precocemente — antes que as crises alimentares se agravem — desencadeando apoio coordenado das Agências Baseadas em Roma.
Planejar o Futuro — de Forma Inclusiva
À medida que conflitos, instabilidade climática e cortes no financiamento global intensificam a pressão sobre os sistemas alimentares, os formuladores de políticas são instados a adotar estratégias de longo prazo para proteger a segurança alimentar e nutricional.
O relatório da KACFS afirma que “as transformações em larga escala provocadas por conflitos, mudanças climáticas, tecnologia e urbanização estão reformulando e intensificando a pressão sobre as estruturas de governança”, e que a arquitetura global precisa evoluir para enfrentar esses desafios. O relatório defende uma mudança para políticas mais inteligentes e coordenadas, que antecipem riscos — em vez de correr para contê-los.
O setor privado, argumenta a Comissão, tem um papel desproporcionalmente grande a desempenhar. Empresas de alimentos, de multinacionais a pequenos negócios, têm capital e alcance para influenciar tudo, desde dietas até cadeias de suprimento. Com os incentivos e mecanismos de responsabilização certos, o setor poderia ajudar a ampliar tecnologias sustentáveis, fortalecer mercados regionais e construir resiliência nos sistemas alimentares.
O Grupo de Trabalho do Setor Privado (PSWG) foi lançado em preparação para a recente cúpula Nutrition for Growth (N4G) em Paris — codirigido pela Access to Nutrition Initiative (ATNI), Global Alliance for Improved Nutrition (GAIN) e pelo Fórum de Paris pela Paz — para alinhar empresas, governos e sociedade civil em torno de soluções escaláveis para a má nutrição.
Agricultores familiares, que somam mais de 525 milhões no mundo, estão no centro da produção de alimentos. Mas frequentemente carecem de acesso a mercados, tecnologia e financiamento. Em partes da Europa, pequenas propriedades produzem mais da metade de certos alimentos; nos EUA, pequenas fazendas destinam até 95% de seus gastos à economia local. Ainda assim, apesar de seu papel central, muitos permanecem excluídos dos canais de inovação e formulação de políticas. “O sistema multilateral tem um papel crucial em amplificar as vozes dos agricultores familiares durante a definição de prioridades”, afirma a Comissão.
O relatório também mostra a necessidade de integrar mulheres e jovens nas políticas alimentares. Empoderar mulheres nos sistemas agroalimentares pode liberar US$ 1 trilhão (R$ 5,89 trilhões) em ganhos econômicos globais e reduzir a insegurança alimentar para 45 milhões de pessoas, segundo a Comissão. Com as mudanças climáticas, urbanização e desigualdade afetando desproporcionalmente os grupos marginalizados, o apelo é por soluções inclusivas, com base digital — e por um foco especial na preparação para o Ano Internacional da Mulher Agricultora, em 2026.
O Caminho para a Fome Zero
A Fome Zero — antes considerada uma meta alcançável — está cada vez mais distante. Faltando menos de cinco anos para 2030, mais de 733 milhões de pessoas ainda passam fome. Choques climáticos, conflitos, desigualdades crescentes e redução dos fluxos de ajuda interromperam o progresso, enquanto a governança fragmentada e o imediatismo político deixaram o sistema alimentar global perigosamente exposto.
“A Comissão pede uma reformulação ousada da governança alimentar global”, afirma a comissária Sara Roversi. “Diante de desafios crescentes para acabar com a fome, devemos priorizar soluções inclusivas, sustentáveis e responsáveis para garantir um futuro alimentar resiliente para todos. Isso exige envolvimento intergeracional, valorizando os papéis cruciais de jovens, agricultores e educadores na preservação do patrimônio vivo, ao mesmo tempo em que adotamos a tecnologia como aliada.”
O relatório da KACFS apresenta uma série de propostas, todas baseadas em uma única e urgente verdade — aquela que Kofi Annan sempre defendeu: alcançar a Fome Zero exige ação coletiva e compromisso com a equidade. Como afirmou Annan: “A solidariedade global é tanto necessária quanto possível. É necessária porque, sem um mínimo de solidariedade, nenhuma sociedade pode ser verdadeiramente estável, e nenhuma prosperidade é verdadeiramente segura.” O mundo não carece de alimentos — carece de justiça na forma como esses alimentos são distribuídos.
*Daphne Ewing-Chow é colaboradora da Forbes EUA. Jornalista especializada em sistemas alimentares e meio ambiente, já passou pelo The New York Times, The Sunday Times (Londres) e Entrepreneur Magazine, além do Programa Mundial de Alimentos, das Nações Unidas.