No ateliê no bairro do Horto Florestal, no Rio de Janeiro, uma profusão de tubos de tinta aguarda para rechear três telas inacabadas. Dispostos no segundo andar de uma das duas casas (e meia) que Beatriz Milhazes ocupa na mesma rua, os quadros irão integrar alguma das próximas mostras que ela tem pela frente – ou não, já que seu estilo é dar a eles o tempo que for necessário. Mas o suficiente, sempre, para terminá-los, seja em que prazo for. Foi-se a época em que a ânsia juvenil a fazia rasgar telas (e, consequentemente, dinheiro, quando ainda não adivinhava que viria a se tornar a artista brasileira e latino-americana viva mais valorizada no mercado mundial de arte) se achava que não estavam tão boas. Tempos distantes, sem dúvida, considerando-se que essa carioca nascida em 1960 já despontava como uma das artistas mais promissoras da chamada Geração 80 – caracterizada basicamente pelo compromisso de seus integrantes com a retomada da pintura – naquela própria década.
Mesmo que soubesse do valor futuro de cada pingo de cor saído de suas mãos, é provável que Milhazes não fizesse diferente: “Eu não tenho essa coisa de querer ganhar dinheiro. Faço o que me dá prazer”, diz essa mulher pequena e superativa, que faz ginástica e musculação todos os dias porque gosta e para aguentar o trabalho duro no ateliê. Produz suas telas imensas com apenas um assistente. Recentemente, teve um de seus maiores triunfos no Rio de Janeiro, com os cariocas fazendo filas de dobrar esquina para ver a exposição “Meu Bem”, sua primeira grande retrospectiva na cidade natal, que ocupou o Paço Imperial no segundo semestre do ano passado. Outra panorâmica de sua obra deverá ser aberta em setembro no recém-inaugurado Pérez Art Museum, em Miami. Milhazes já tem agendadas também duas mostras internacionais no ano que vem – na James Cohan, galeria que a representa em Nova York, e na White Cube de Hong Kong. Até o fim de julho, deve ser lançado ainda o documentário de José Henrique Fonseca, filmado entre 2011 a 2013, que irá mostrar sua rotina entre exposições e ateliês fora do Brasil – inclusive o que mantém na Pensilvânia, nos Estados Unidos, onde se dedica apenas à gravura, seu lado menos conhecido. Fica pronto também, até o fim do ano, o aguardado livro-catálogo de sua obra com o selo da alemã Taschen, uma das maiores editoras de arte do mundo.
Para Stephen Friedman, o dono da galeria londrina homônima que representa a artista na Inglaterra, o grande marco do desenvolvimento da carreira de Milhazes no exterior foi sua participação na Bienal de Veneza, em 2003. “Foi ali que ela se definiu como uma das artistas mais conhecidas e apreciadas da América Latina”, diz. Existe hoje também, observa o marchand, um olhar renovado sobre os artistas latino-americanos. “Obras como as de Mira Schendel e Lygia Clark têm sido alvo de grandes exposições em museus, o que alimenta ainda mais o interesse pela arte dessa parte do mundo”, diz Friedman. Segundo ele, há ainda uma atração particular, dentro desse interesse mais amplo, por artistas brasileiros, especialmente pintores como Milhazes. Entre os principais fatores do reconhecimento da obra da carioca ele destaca a ampla gama de influências e o mix de referências presentes em seu trabalho. “A exploração ousada e única da cor, além de sua rigorosa prática artística, impulsionaram Beatriz Milhazes como a mais procurada desses artistas.”
Entenda-se por “procura” não apenas aquela dos apreciadores de arte, mas sobretudo a dos investidores nesse mercado – duas coisas, aliás, tão entrelaçadas que é difícil distingui-las. Todos conhecem a repercussão mundial do nome de Beatriz Milhazes depois dos preços fabulosos alcançados por obras suas em leilões internacionais. A começar pelo quadro O Mágico, arrematado por US$ 1,049 milhão em 2008 na Sotheby´s de Nova York, valor que representou então um recorde de preço para uma artista brasileira viva. Logo Milhazes bateu o próprio recorde, com a venda da tela O Moderno por US$ 1,1 milhão em 2011 em Londres, em um leilão da Phillips de Pury & Company. E mais uma vez no fim de 2012, quando a tela Meu Limão foi arrematada por US$ 2,1 milhões em outro leilão da Sotheby´s.
É bom lembrar que a artista não viu a cor dessas cifras que fazem seu nome – e os olhos dos investidores – faiscarem por todo o planeta. Quando a obra já não pertence mais ao autor e vai a leilão, o retorno não é do criador, mas da criatura que a comprou e revendeu. O Mágico, por exemplo, havia sido adquirido em 2001 por um colecionador espanhol, por US$ 15 mil… É claro que, mesmo ficando de fora desses lucros estratosféricos, Beatriz Milhazes faz muito dinheiro com seu trabalho, representado no Brasil pela galeria paulista Fortes Vilaça e internacionalmente, além das galerias em Londres e Nova York, também pela Max Hetzler em Berlim. Mas sucesso, diz ela, é algo relativo. Humilde e totalmente pés no chão, com jeito um pouco tímido, a artista parece realmente não se importar com o valor atrelado ao seu nome mundo afora. Desde que se encontrou na pintura (abandonando de vez os planos de se tornar jornalista), como aluna da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, sua paixão é a arte. É por ela que vive entre temporadas em Londres, Pensilvânia e Rio de Janeiro (trabalhadora braçal, hoje foge dos verões cariocas por causa do calor, que já aguentou demais). Está mais preocupada, enfim, com as cores vibrantes que estampam suas telas do que com as “verdinhas”.
“O artista não tem essa visão da arte como negócio, porque ela não é negócio. Mas faz parte de um mercado, essa parte é bem dolorosa: você saber que às vezes o interesse [do comprador] está no valor atingido e não na obra”, diz Beatriz. Apesar dessa espécie de desgosto, ela controla as rédeas de sua carreira com plena consciência das questões financeiras envolvidas. Gosta de produzir internamente, mas sabe que seu mercado internacional é forte e defende melhores condições de impostos para as exportações. “Seria importante o governo pensar em soluções que contribuíssem com a divulgação da nossa arte”, comenta. Em desistir do Brasil, como muitos acreditavam que faria e os amigos estrangeiros a incentivavam a fazer, ela nunca pensou. “O Brasil é muito importante para mim, não abro mão do meu mercado aqui, espero que ele cresça e se estabeleça. Acho fundamental que o governo escute todas as classes, sem nenhum preconceito, e atente às necessidades dos artistas”, diz.
De sua primeira exposição, em 1984, na famosa coletiva “Como Vai Você, Geração 80?”, que reuniu mais de 120 artistas no Rio de janeiro, Milhazes já saiu representada por uma galeria. Havia vendido até então apenas um quadro na vida – dois anos antes, para uma amiga da mesma escola. “Acho que ela ainda tem o quadro, não revendeu”, acredita, otimista. Hoje, como mãe amorosa de suas telas – porque filhos não quis ter, apesar de um casamento que durou 10 anos com o artista e arquiteto Chico Cunha, de quem ainda é grande amiga e parceira em projetos de aquitetura –, Milhazes vê0 suas obras serem negociadas por cifras cada vez maiores nos leilões internacionais com uma ponta de arrependimento. E deixa a dica aos mais jovens. “É bom você ter seu acervo, obras que fiquem contigo, porque diante dessas revendas milionárias o próprio artista não consegue mais adquiri-las de volta.” Quer dizer, Milhazes não pode comprar Milhazes. “É uma coisa que às vezes dá muita vontade de fazer, não pela questão financeira, mas afetiva”, ela lamenta. Coração de mãe sofre.