inda não temos por aqui, pelo menos em exibição pública, a categoria dos olivochatos, plêiade pretensamente capaz de distinguir ao primeiro contato com o azeite até mesmo o sobrenome da avó do produtor – a exemplo do que ocorre com os enochatos com relação aos vinhos. Mas eles vêm por aí. Basta aguardar. Será o efeito menos agradável de um fenômeno saudável: o brasileiro, definitivamente, descobriu os prazeres de consumir os melhores azeites extravirgens do planeta.
Nas contas do International Olive Council (IOC), com sede em Madri, já estamos entre os dez maiores consumidores mundiais – na décima colocação, é bem verdade. São 72 mil toneladas por ano. “Em 2000, o Brasil consumia 40 mil toneladas anuais”, lembra o francês Jean-Louis Brajol, diretor-executivo do IOC. Portanto, um avanço de 80%. Paulo Freitas, 63 anos, engenheiro de alimentos e assagiatore di olio – o equivalente a sommelier – formado pela ONAOO, a mais tradicional escola do gênero na Itália, coteja: “O panorama do azeite no Brasil me parece similar ao do vinho há 20 anos, quando a bebida começou a se popularizar e a ser reconhecida pelas diferenças entre as uvas e regiões produtoras”. De fato, há outros sortidos sintomas dessa efervescência.
Em agosto, a Casa Santa Luzia, o elegante empório paulistano com 87 anos de vida, promoveu, em seu mezanino, uma semana de palestras e degustação de azeites. “Foi um sucesso com lotação completa”, conta Fernanda Oruê, gerente de marketing da empresa. “Quem compareceu pôde ver surpresas como a harmonização de azeite com sorvetes.”
A Casa Santa Luzia dispõe em suas prateleiras de 137 rótulos de extravirgens, de nove países (23 marcas portuguesas, 21 italianas, oito espanholas, quatro gregas, quatro libanesas, quatro chilenas, três uruguaias, uma argentina e uma brasileira). Ali estão preciosidades como o italiano Manni, produzido na Toscana, próximo a Montalcino – sim, a cidade dos vinhos Brunello –, com as azeitonas Olivastra Seggianese. É vendido em duas embalagens de 100 ml, ao preço de R$ 334. Outro paladino da extrema qualidade vem da mesma região e tem o nome Biondi-Santi – nada menos que a família criadora do Brunello. A garrafa de 750 ml sai por R$ 315. Manni e o Biondi-Santi são os azeites mais caros à venda no país.
Enquanto a Casa Santa Luzia aumenta sua variedade de rótulos, São Paulo celebra suas primeiras lojas especializadas. É o caso da Rua do Alecrim. Começou com vendas on-line. Como o nome faz supor, tinha as especiarias como carro-chefe. Em setembro, está inaugurando sua primeira loja física, no bairro da Vila Mariana. Desta vez, os azeites afloram como o prato principal, com cinco dezenas de rótulos – do espanhol Oro Bailén (R$ 125) ao marroquino Desert Miracle (R$ 65). “É o produto com o maior potencial de evolução em vendas”, diz Arnaldo Comin, um dos sócios. No futuro, ele pretende criar um bar de azeites. “Visitei alguns no norte da Itália, onde são frequentadíssimos. Teriam tudo para repetir o êxito em São Paulo.”
O pioneirismo no agora concorrido universo do azeite já rendeu dividendos à família gaúcha Aued, da empresa Olivas do Sul. Em 2004, eles dispunham de 12 hectares ociosos em Cachoeira do Sul, a 198 quilômetros de Porto Alegre. Foi quando Gabriel, um dos dois filhos de José Alberto Aued, o proprietário, voltou de uma viagem a Turquia entusiasmado com o cultivo de azeitonas e propôs ocupar as terras vagas plantando oliveiras elaborando extravirgens. “Muita gente nos desestimulou”, lembra Daniel Aued, irmão de Gabriel. “Tentativas anteriores de fazer azeite de qualidade haviam sido frustrantes no país.”
O extravirgem exige absoluto rigor na confecção. São necessárias entre 1,3 mil e 2 mil azeitonas para se obter 250 ml do óleo. Elas percorrem quatro etapas mecânicas de produção, sem nenhum procedimento químico, para isolar o azeite, que só é considerado extravirgem se não apresentar defeitos sensoriais – por mínimos que sejam – e exibir um índice de acidez abaixo de 0,8%. Apesar dessas severas restrições, os Aued foram à luta. Para isso, recorreram ao professor Clésio Gianello, da Faculdade de Agronomia da UFRG (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), doutor em ciência do solo pela Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. “Eles nos aconselhou a plantar as variedades espanholas Arbequina e Arbosana, que são mais adaptáveis”, revela Daniel.
Em 2006 a Olivas do Sul deu início ao plantio. Quatro anos depois, processou o primeiro azeite extravirgem brasileiro. Se, de início, houve alguma resistência contra um produto nacional, o preconceito foi se dissipando ano a ano. A safra mais recente – a quinta –, em um terreno de agora 25 hectares, rendeu 15 mil litros, vendidos em menos de 15 dias. “Haveria demanda para uma produção 15 vezes maior”, contabiliza Aued, que pretende chegar a 150 hectares até 2017.
Tal plano foi reforçado por dois reconhecimentos internacionais. O azeite Olivas do Sul feito com Arbequina arrebatou, meses atrás, o segundo lugar na categoria frutado médio do Hemisfério Sul, na 16ª edição do prêmio L’Orciolo d’Oro. Além disso, viu-se incluído com a nota 83, no guia Flos Olei, do crítico Marco Oreggia. “Essa publicação equivale para os azeites aquilo que o guia de Robert Par-ker representa para os vinhos”, sintetiza Paulo Freitas.
Portanto, é hora de comemorar. Até porque novos extravirgens despontam, não só no Rio Grande do Sul, mas em um segundo polo: a Serra da Mantiqueira, distribuída entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Ali, 43 pequenos produtores criaram a Assoolive, a Associação dos Olivicultores dos Contrafortes da Mantiqueira. O apoio é mútuo. “Fazemos azeites bem artesanais e ainda em volume pequeno, muitas vezes para distribuição regional”, diz a produtora Cristina Vicentin, da marca Olik. “Estamos bastante otimistas. Algumas variedades se deram muito bem na altitude, como as espanholas Arbequina e Arbosana, a italiana Grappolo, a grega Koroneik e a brasileira Maria da Fé.”
As comparações entre azeites e vinhos têm plena justificativa. A começar por serem ambos criações milenares. Cerca de 6 mil anos atrás, os povos da Mesopotâmia já extraíam azeite. A alimentação ainda não seria, no entanto, a primeira serventia do óleo. No Egito dos faraós era utilizado no embalsamento de múmias. Outras civilizações recorreram ao azeite para embelezar cabelos, fabricar sabão ou como combustível para luminárias. A Medicina o utilizou como unguento ou cicatrizante. Nos rituais religiosos, ganhou a função de benzer crianças, bem como a de santificar objetos nos cultos e servir de unção aos enfermos. É citado 164 vezes na Bíblia, incluindo a passagem em que Cristo prega aos discípulos no Monte das Oliveiras. Também desponta nas páginas do Corão dos islâmicos e na Torá dos judeus. Tanto na Grécia Antiga quanto na Roma imperial, os ramos de oliveira tornaram-se símbolos de poder e de vitória.
Assim como as uvas viníferas, as azeitonas próprias para o azeite também têm preferência por latitudes com climas e condições de solo – o terroir – mais favoráveis ao crescimento sadio. No caso, entre os 30 e os 45 graus, em ambos os hemisférios. A produção, porém, está mais concentrada. Nada menos que 95% do azeite extravirgem vêm do Mediterrâneo. O maior produtor é a Espanha, com 45% do total. Seguem-se a Itália e a Grécia. Juntos, esses três países são responsáveis por 75% do volume.
Também como acontece com os vinhos, os azeites de determinadas regiões são protegidos pelas DOPs – as Denominações de Origem. Só na Espanha são 32. Do mesmo modo, há produtos monovarietais – ou seja, feitos com um único tipo de azeitona – ou combinando castas diferentes. Existem mais de 1.200 variedades de azeitona. Para o boulanger e apresentador de TV Olivier Anquier – que tem olivas até no nome –, o brasileiro está ficando mais detalhista ao escolher o azeite. Diz ele: “O consumidor descobriu que precisa deixar de se preocupar apenas com a acidez, para dar atenção às outras características”. Assim, os critérios tornam-se, na prática, sensoriais. Por exemplo: o quanto um azeite é frutado ou não, além dos níveis de amargor e de picância. Tal como no caso dos vinhos, passa-se, também, a identificar as diversidades regionais. O especialista Paulo Freitas exemplifica: “Na Itália, o azeite da Puglia, feito com a variedade Coratina, é muito robusto, enquanto o da Ligúria, elaborado com a Taggiasca, revela-se extremamente suave. Quer dizer, um mesmo país mostra muitas particularidades”.
Ao contrário dos vinhos, os extravirgens não têm potencial de guarda. Em outras palavras, devem ser consumidos tão logo envasados. Um ditado italiano resume: “Olio nuovo, vino vecchio”. Outra distinção: consumir azeite é um hábito ainda mais saudável do que o de beber vinho. E isso vai bem além do senso comum. O cardiologista Marcelo Sampaio, diretor clínico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, explica: “Para se prevenir contra a formação de placas de gordura nas artérias, as chamadas ateromas, recomenda-se não apenas evitar alimentos ricos em colesterol, mas acrescentar aqueles de gordura monoinsaturadas, com destaque para o azeite extravirgem”. De acordo com o médico, uma colher de sopa ao dia é o ideal.
Mais uma diferença fundamental em uma contraposição aos vinhos? Fácil. “Todos nós conhecemos quem não bebe vinho”, diz Paulo Freitas. Ele emenda com uma pergunta: “Você já viu alguém que não goste de azeite?”.